São Paulo, Domingo, 20 de Junho de 1999
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Ficção reinterpreta ciência

JESUS DE PAULA ASSIS
especial para a Folha

Dizer que cinema e ciência caminham juntos no século 20 é verdadeiro. Mas é igualmente trivial. Tudo neste século caminha com o progresso científico, tudo é pautado pelos avanços técnicos supostamente propiciados pela ciência e, ao mesmo tempo, tudo é registrado e reinterpretado na tela do cinema. Mas ocasiões como o lançamento do tardio "Episódio 1" de "Star Wars" fazem o tema retornar, e é preciso, nesses momentos, examinar se essa relação é, de alguma forma, relevante para a situação do filme.
Primeiro ponto: verossimilhança. Uma obra de ficção científica deve ser cientificamente fidedigna? Isso é relevante para a qualidade da obra? As respostas são, claro, não e não. Existem obras de ficção científica absolutamente precisas do ponto de vista do conhecimento científico vigente. E absolutamente insossas.
A ficção científica moderna é fundada com uma obra totalmente impossível: "A Máquina do Tempo", de H. G. Wells, de 1895 (de passagem, o ano zero do cinema; mas isso é só coincidência). Jules Verne, leitor de Wells, dizia apenas: "Ele mente".
Tudo bem, "mentia". Mas, enquanto Verne permaneceu preso ao gênero da aventura, Wells criou uma nova forma de escrever que, em seu caso, podia aspirar a arte.
Segundo ponto: "Star Wars" é ficção científica (FC)? Bem, aí as respostas vão depender de definições de gênero. Sim, se a classificação for taxionômica, pois então é FC tudo o que tratar de outros planetas, de naves, de robôs etc. Não, se a classificação for genérica: trata-se de um épico, e o fato de ser movido a plutônio pouco importa.
Esses pontos são importantes para balizar qualquer crítica, pois desde logo fica dado que o rigor científico em FC é questão ociosa e que "Star Wars", apesar de R2-D2, não pode ser pensado apenas como mais um exemplar de cinema de um gênero de entretenimento.
Enquanto a FC européia sempre foi mais séria e pretensiosa, explorando grandes temas urbanos, usando o gênero como veículo para reflexão social, com autores como Wells e Orwell, por exemplo, a FC norte-americana sempre foi mais aventuresca, mais movimentada, mais juvenil. E, sendo os EUA os grandes produtores de cinema de FC, é natural que o gênero no cinema sempre tenha explorado mais a ação que a reflexão. Nada contra, bem entendido. Ação é bom e, na verdade, cinema de FC europeu tende a ser muito discursivo e entediante.
Mas ação pura e simples cansa. Já há 50 anos, ninguém mais suportava ver Flash Gordon ser capturado e em seguida fugir e contra-atacar uma dezena (literalmente) de vezes num mesmo filme. Era preciso evoluir, inserir um pouco de ingredientes europeus na ação pura e simples norte-americana. E a fórmula pareceu funcionar. O próprio George Lucas estréia no cinema, em 1971, com "THX-1138", uma antiutopia futurística na qual um cidadão discordante é perseguido até o limite de créditos da polícia.
É a suprema ironia: é proibido discordar e isso é severamente punido. Mas, se a perseguição sai mais cara que um certo limiar, então tudo bem, o Estado não mais se preocupa com o criminoso. No fim de contas, ser liberado assim é mais triste que ser preso. Enfim, um filme excepcional.
Mas a tendência reflexiva dura pouco, pois dois diretores/produtores percebem o quanto o cinema é ação e o quanto o público ansiava não por Flashs Gordons mais inteligentes, mas apenas por filmes igualmente simples, mas mais bem produzidos. Na FC, 1977 é o ano de "Star Wars", de George Lucas. No ramo da aventura, 1981 é o ano de "Os Caçadores da Arca Perdida", de Steven Spielberg.
Desde então, a FC passa a produzir em duas vertentes: filmes mais conservadores, de alto custo, como os da série "Star Wars" e "Star Trek" baratos, com pretensões cult e mesmo artísticas. Destes, "Blade Runner" é um exemplar destacado. Outro candidato recente a cult é "Matrix".
Esses filmes são cientificamente rigorosos? Não. Não existem viagens no tempo, naves não podem fazer barulho no vácuo e espécies diferentes não poderiam conviver sem um alto grau de disseminação de doenças (nesse caso, a precisão exigiria que os personagens de "Star Wars" passassem o filme todo espirrando). E daí? Quem quiser ciência deve ir à universidade, não ao cinema.


Jesus de Paula Assis é redator free-lance e editor.


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