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LIVROS
Antologia reúne 35 textos sobre a cidade escritos no período colonial
Múltiplas faces do Rio de Janeiro
MANOLO FLORENTINO
especial para a Folha
Nada há de mais volúvel do que
homens e países. Cegos em incessantes reiterações, mentimos, nós
e eles, com borgiana razão, várias
vezes por dia. Igualmente a cada
ser, também os países são donos de
um turbilhão de faces -todas elas
simultâneas e verdadeiras. Quanto
menos por isso, o livro organizado
por Jean Marcel Carvalho França,
"Visões do Rio de Janeiro Colonial", é de suma importância. Trata-se de uma antologia que permite aos historiadores nacionais ter
em mãos, em língua portuguesa e
sóbria edição, 35 preciosas fontes
sobre a cidade, algumas de difícil
acesso até para os especialistas.
De quebra, brinda-nos com um
delicioso passeio por inúmeras
imagens sobre o Rio de Janeiro
-todas elas faces de um mesmo
rosto-, construídas por viajantes
europeus que desembarcaram no
porto carioca ao longo de quase
300 anos. A tradução do organizador buscou ser mais cuidadosa do
que as de alguns estudiosos anteriores. Além disso, cada narrativa é
precedida de uma pequena nota
biográfica sobre seu autor, o período de sua estada no Rio de Janeiro
e a contextualização geral da viagem. Por último -supremo cuidado-, privilegiaram-se os testemunhos vindos a público ainda em
vida dos autores, especialmente os
que foram editados sob os cuidados dos mesmos. Tal critério cedeu
lugar apenas àquelas edições que,
posteriores, mostraram-se mais
completas do ponto de vista descritivo.
É certo que os textos selecionados foram produzidos fundamentalmente no século 18 (quase 80%
deles) e que 9 entre cada 10 dos viajantes editados são originários da
Europa norte-ocidental -alemães, holandeses, franceses e sobretudo britânicos. A ninguém deve surpreender, pois, os fortes ecos
de uma sensibilidade plasmada
pela moral protestante vigente, expressa, por exemplo, em diversos
relatos sobre as mulheres cariocas,
"mais fáceis na concessão de seus
favores do que as dos países civilizados". A cimentar semelhante
juízo, uma velha prática colonial:
mulheres de condições diversas,
postadas nas janelas de intermináveis tardes, a atirar buquês de flores sobre os passantes. Prefeririam
pedras os assombrados protestantes? Pode ser. Mas o certo é que a
atmosfera de profundas mutações
pelas quais passava a Europa norte-ocidental ao longo do Setecentos também está presente nas concepções marcadamente "modernas" (isto é, fora de lugar) de muitos desses viajantes acerca do significado do trabalho no mundo colonial brasileiro.
Ainda quando centradas no século 18, há que lembrar serem essas narrativas originárias de representantes de diversas camadas sociais, de comerciantes a clérigos,
de altos funcionários civis e militares a aventureiros, passando por
poetas frustrados. Há até mesmo o
caso de um célebre batedor de carteiras, George Barrington, irlandês
autodeclarado de nobre estirpe
que, por ocasião de sua viagem rumo à prisão na Austrália, permaneceu na cidade, então certamente
maravilhosa, entre maio e abril de
1791. Eis aí, no limite, um dos filões
mais preciosos de "Visões do Rio
de Janeiro Colonial": oferecer-nos
um amplo e rico panorama acerca
das representações anglo-saxãs sobre o Rio pré-joanino.
Mas nem tudo era preconceito,
obviamente, e alguns viajantes
transformaram suas penas em um
refinadíssimo instrumento de análise. Deles, o mais preciso parece-me ter sido o secretário da Embaixada enviada por Jorge 3º à China
em 1792. Em fins desse ano, carentes de água e mantimentos, os navios da missão diplomática britânica atracaram na baía da Guanabara, onde, apesar da curta estadia,
sir George Leonard Staunton produziu uma pequena pérola de visionarismo político. Nela captura-se o ambiente vigente entre os círculos dos poderosos da colônia no
período posterior à queda do marquês de Pombal, já claramente tendente ao estilhaço da dominação
metropolitana.
Segundo Staunton, por então aí
predominava a idéia de que "ou
Portugal transferia para o Brasil a
sede do Império ou deveria deixar
que o país, servindo-se dos meios
que a natureza lhe deu, seguisse o
seu caminho sem ser obrigado a
submeter-se ao peso de um cetro
distante (...) A coragem dos habitantes do Brasil cresce de dia para
dia. A impaciência em relação ao
jugo colonial tem aumentado muito". Enfim, é possível que, para
uma futura antropologia das representações européias sobre o
Rio de Janeiro, o trabalho de Jean
Marcel transforme-se em obra de
referência. Sobretudo se for possível ver concretizar-se a sua idéia de
proximamente trazer a público um
segundo volume, com descrições
da cidade produzidas entre 1800 e
1808, além de mais 18 narrativas
que, com o mesmo objetivo, foram
escritas por viajantes do século 16
ao 18; que bem poderiam vir acompanhadas de ilustrações nos tons
originais.
A OBRA
Visões do Rio de Janeiro Colonial - Organização de Jean
Marcel Carvalho França. Ed. José
Olympio (r. da Glória, 344, 4º andar,
CEP 20241-180, RJ, tel. 021/509-6939). 265 págs. R$ 23,00.
Manolo Florentino é professor de história na
Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor
de "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).
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