São Paulo, Domingo, 20 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
Antologia reúne 35 textos sobre a cidade escritos no período colonial
Múltiplas faces do Rio de Janeiro

MANOLO FLORENTINO
especial para a Folha

Nada há de mais volúvel do que homens e países. Cegos em incessantes reiterações, mentimos, nós e eles, com borgiana razão, várias vezes por dia. Igualmente a cada ser, também os países são donos de um turbilhão de faces -todas elas simultâneas e verdadeiras. Quanto menos por isso, o livro organizado por Jean Marcel Carvalho França, "Visões do Rio de Janeiro Colonial", é de suma importância. Trata-se de uma antologia que permite aos historiadores nacionais ter em mãos, em língua portuguesa e sóbria edição, 35 preciosas fontes sobre a cidade, algumas de difícil acesso até para os especialistas.
De quebra, brinda-nos com um delicioso passeio por inúmeras imagens sobre o Rio de Janeiro -todas elas faces de um mesmo rosto-, construídas por viajantes europeus que desembarcaram no porto carioca ao longo de quase 300 anos. A tradução do organizador buscou ser mais cuidadosa do que as de alguns estudiosos anteriores. Além disso, cada narrativa é precedida de uma pequena nota biográfica sobre seu autor, o período de sua estada no Rio de Janeiro e a contextualização geral da viagem. Por último -supremo cuidado-, privilegiaram-se os testemunhos vindos a público ainda em vida dos autores, especialmente os que foram editados sob os cuidados dos mesmos. Tal critério cedeu lugar apenas àquelas edições que, posteriores, mostraram-se mais completas do ponto de vista descritivo.
É certo que os textos selecionados foram produzidos fundamentalmente no século 18 (quase 80% deles) e que 9 entre cada 10 dos viajantes editados são originários da Europa norte-ocidental -alemães, holandeses, franceses e sobretudo britânicos. A ninguém deve surpreender, pois, os fortes ecos de uma sensibilidade plasmada pela moral protestante vigente, expressa, por exemplo, em diversos relatos sobre as mulheres cariocas, "mais fáceis na concessão de seus favores do que as dos países civilizados". A cimentar semelhante juízo, uma velha prática colonial: mulheres de condições diversas, postadas nas janelas de intermináveis tardes, a atirar buquês de flores sobre os passantes. Prefeririam pedras os assombrados protestantes? Pode ser. Mas o certo é que a atmosfera de profundas mutações pelas quais passava a Europa norte-ocidental ao longo do Setecentos também está presente nas concepções marcadamente "modernas" (isto é, fora de lugar) de muitos desses viajantes acerca do significado do trabalho no mundo colonial brasileiro.
Ainda quando centradas no século 18, há que lembrar serem essas narrativas originárias de representantes de diversas camadas sociais, de comerciantes a clérigos, de altos funcionários civis e militares a aventureiros, passando por poetas frustrados. Há até mesmo o caso de um célebre batedor de carteiras, George Barrington, irlandês autodeclarado de nobre estirpe que, por ocasião de sua viagem rumo à prisão na Austrália, permaneceu na cidade, então certamente maravilhosa, entre maio e abril de 1791. Eis aí, no limite, um dos filões mais preciosos de "Visões do Rio de Janeiro Colonial": oferecer-nos um amplo e rico panorama acerca das representações anglo-saxãs sobre o Rio pré-joanino.
Mas nem tudo era preconceito, obviamente, e alguns viajantes transformaram suas penas em um refinadíssimo instrumento de análise. Deles, o mais preciso parece-me ter sido o secretário da Embaixada enviada por Jorge 3º à China em 1792. Em fins desse ano, carentes de água e mantimentos, os navios da missão diplomática britânica atracaram na baía da Guanabara, onde, apesar da curta estadia, sir George Leonard Staunton produziu uma pequena pérola de visionarismo político. Nela captura-se o ambiente vigente entre os círculos dos poderosos da colônia no período posterior à queda do marquês de Pombal, já claramente tendente ao estilhaço da dominação metropolitana.
Segundo Staunton, por então aí predominava a idéia de que "ou Portugal transferia para o Brasil a sede do Império ou deveria deixar que o país, servindo-se dos meios que a natureza lhe deu, seguisse o seu caminho sem ser obrigado a submeter-se ao peso de um cetro distante (...) A coragem dos habitantes do Brasil cresce de dia para dia. A impaciência em relação ao jugo colonial tem aumentado muito". Enfim, é possível que, para uma futura antropologia das representações européias sobre o Rio de Janeiro, o trabalho de Jean Marcel transforme-se em obra de referência. Sobretudo se for possível ver concretizar-se a sua idéia de proximamente trazer a público um segundo volume, com descrições da cidade produzidas entre 1800 e 1808, além de mais 18 narrativas que, com o mesmo objetivo, foram escritas por viajantes do século 16 ao 18; que bem poderiam vir acompanhadas de ilustrações nos tons originais.



A OBRA
Visões do Rio de Janeiro Colonial - Organização de Jean Marcel Carvalho França. Ed. José Olympio (r. da Glória, 344, 4º andar, CEP 20241-180, RJ, tel. 021/509-6939). 265 págs. R$ 23,00.



Manolo Florentino é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Em Costas Negras" (Companhia das Letras).


Texto Anterior: Polêmica - José Aníbal: A torre de marfim
Próximo Texto: Decio de Almeida Prado: Um vasto panorama da ópera mundial
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.