São Paulo, Domingo, 20 de Junho de 1999
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POLÊMICA

A torre de marfim

JOSÉ ANÍBAL
especial para a Folha

O Mais! da semana passada teve um grande mérito: fez cair a máscara do que existe de reacionário na universidade brasileira. Fez isso ao publicar agressivo artigo da professora Maria Sylvia Carvalho Franco, que, sob o pretexto de defender uma idéia de universidade, apenas exibiu sua mesquinhez, desprezo pela cidadania e compromisso com o corporativismo.
Discutir o papel da universidade é fundamental para a sociedade e participo desse debate com o interesse de cidadão, a responsabilidade de parlamentar e o dever de secretário de Estado. Ao partir para agressões verborrágicas, a professora procura desqualificar-me e desacreditar propostas que são minhas e do governador Mário Covas. No final, é ela quem se desqualifica como participante inteligente do debate, mas isso não impedirá que mereça uma resposta, o que não aconteceria se eu fosse quem ela pensa que sou.
Como disse, a professora representa com estardalhaço o que há de mais resistente ao debate na universidade. Trata-se do setor que deseja manter as instituições de ensino superior e pesquisa como torres de marfim, impenetráveis para o que consideram reles cidadãos. É o setor que tem aversão a ouvir a sociedade, que resiste a usar o conhecimento para melhorar sua existência.
Passemos adiante e entremos no debate que interessa.
Em primeiro lugar, parece-nos fazer cada vez menos sentido dividir a ciência em "pura" e "aplicada". Qual o mal em empregar ciência e pesquisa no desenvolvimento socioeconômico do ser humano? Isso por acaso impedirá que cientistas dedicados às mais diversas áreas possam trabalhar para expandir as fronteiras do conhecimento? É claro que não.
Diz a professora que "os caminhos da imediatez no campo do saber e da técnica são nulos". Pesquisas sobre doenças e medicamentos, portanto, devem ser inúteis no entender de nossa furibunda "intelectual". Ou haverá algo de mais imediato do que a saúde das pessoas?

Investigação científica
Tomemos ainda o exemplo do Projeto Genoma, pelo qual a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), mantida pelo governo estadual, colocou o Brasil no mapa internacional da pesquisa genética de ponta. Isso somente foi possível graças à reconhecida competência de pesquisadores e laboratórios paulistas, especialmente da USP. Trata-se de investigação científica da melhor qualidade, que, em tempo, trará grandes benefícios às pessoas. É apenas um caso em que a pesquisa que poderíamos chamar de "pura" caminha ao lado dos resultados concretos para o cidadão.
Como disse na entrevista ao "Jornal da Unicamp", considero como nosso grande desafio aproximar a universidade do setor produtivo. Apenas mentes distorcidas pelo corporativismo podem entender essa colocação como a condenação da pesquisa exploradora, da investigação, da ampliação do saber. Isso pode perfeitamente ser feito ao mesmo tempo em que a sociedade recebe os benefícios dos recursos que destinou à universidade. Não são ações excludentes, e sim complementares.
Aproximar a pesquisa da produção também não significa uma conspiração contra o ensino superior público e gratuito. Pelo contrário, serve para fortalecê-lo.
Neste ano, a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a Universidade Estadual Paulista (Unesp), o Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT), a Fapesp, o Centro de Educação Tecnológica Paula Souza e as três faculdades vinculadas receberão cerca de R$ 2,3 bilhões vindos dos impostos pagos pelos cidadãos, aqueles mesmos que dão arrepios à professora.
Portanto uma das melhores maneiras de a universidade retribuir ao contribuinte é assumir papel central no aperfeiçoamento de técnicas, processos e produtos que fazem parte da vida das pessoas. Insisto: sem prejuízo de pesquisas e trabalhos "puros" e sem menosprezar o papel da universidade como centro de discussão e difusão de idéias, de abertura de mentes, de alargamento de fronteiras.
Vale registrar a irritação de dona Maria Sylvia com o exemplo que dei sobre a "raspa de couro". O fato de o departamento de química da Unesp ter pesquisado resíduos sólidos e poder tornar disponíveis os resultados para o setor produtivo leva a professora a dizer que esse não é um problema nem da universidade, nem dos institutos de pesquisa, nem do município. Apenas do fabricante! Que visão autoritária e ignorante das questões colocadas pelo processo produtivo, que dizem respeito diretamente à sociedade.
Ainda na questão do setor produtivo, é preciso ressaltar que as grandes empresas conhecem a qualidade da maioria de nossos professores e pesquisadores. Sabem também da importância de formar parcerias com as instituições de excelência mantidas pelo poder público e de pagar por elas, sem dúvida. Esse é um caminho para universidades e institutos de pesquisa saírem a campo, melhorarem seus orçamentos e agregarem avanços a seus próprios bancos de conhecimento.
Como eu disse na referida entrevista, esqueçam a solução defendida pela professora e seus colegas da torre de marfim: encostar o corpo à sombra e cobrar o aumento da participação no ICMS pago pela população. Essa cota chega hoje aos 9,57% para as universidades.
Entretanto, voltando ao aspecto do desenvolvimento, se as grandes empresas conhecem o potencial da universidade, o mesmo não ocorre com as pequenas e médias, peças fundamentais no crescimento do Estado e do país. Nosso objetivo é agregar tecnologia e competitividade a esse setor. A receptividade a essa proposta tem sido das melhores nos contatos que tenho mantido com empresários, trabalhadores, acadêmicos e instituições de ensino e pesquisa.

Omissão inaceitável
Cabe aqui reafirmar um conceito que comentei no "Jornal da Unicamp" e que a professora distorceu deliberadamente, como de resto fez com toda a entrevista. Referi-me à formação tecnológica da indústria automobilística em São Paulo, assinalando que, no começo, os aspectos técnicos da atividade eram em boa medida copiados a partir da desmontagem de equipamentos trazidos do exterior.
Como assinalei, essa fórmula não funciona hoje. Não só é crime copiar software, como não criar condições para desenvolvê-lo é omissão inaceitável. Só terá inserção ativa no mundo globalizado quem produzir e desenvolver tecnologia.
Ouvi recentemente de um diplomata latino-americano que o Brasil é o único país emergente que tem condições de produzir e desenvolver tecnologia, atualmente. Dentro de nossas atribuições, essa prioridade estratégica terá todo o nosso apoio. Tenho certeza que a comunidade acadêmica realmente comprometida com o desenvolvimento do conhecimento concorda.
Ao mesmo tempo em que buscamos abrir novos canais tecnológicos com as empresas, notadamente pequenas e médias, conforme prioridade fixada pelo governador Mário Covas e como tem sido feito, por exemplo, pelo Ipen (Instituto de Pesquisa Energética e Nuclear) com 15 empresas incubadas em suas instalações na USP, estaremos estimulando a geração de empregos, coisa que certamente não está entre as preocupações de dona Maria Sylvia.
Chegamos a outro ponto crucial para os rumos da universidade pública: a questão dos inativos, que também abordei na entrevista ao "Jornal da Unicamp". O fato é que, hoje, a USP, por exemplo, gasta 30% de seu orçamento com aposentadorias, e esse índice é crescente. Quem tem responsabilidade pública deve olhar essa questão com seriedade, sob pena de termos instituições com grandes dificuldades em alguns anos.
O governo federal e o governo estadual, em conjunto com os reitores das universidades paulistas, estão analisando o que fazer. Na entrevista, disse que a construção de uma solução tem que ser admitida por todos. Caso contrário, caminhamos para um impasse.

A questão dos inativos
Em seu panfleto, a professora tenta ser dramática ao citar uma paranóica solução hitlerista para a questão dos inativos. Além do insulto, surge a leviandade de quem foge ao debate para destilar frustrações de sua vida acadêmica. O fato é que, ao escamotear uma situação concreta, nossa iracunda professora tenta apenas segurar o véu sobre uma das maiores vergonhas do poder público brasileiro: as aposentadorias privilegiadas mantidas com unhas e dentes por grupos que se escondem atrás do biombo dos "direitos adquiridos".
É lamentável ver alguém que ostenta títulos acadêmicos defender aposentadorias integrais de milhares de reais, obtidas em geral com pouca idade, enquanto os 18 milhões de aposentados pelo INSS precisam enfrentar o mês com R$ 200 em média.
Um dos raros comentários aproveitáveis no emaranhado de baboseiras e grosserias proferidas pela professora surge quando ela aponta a concentração de riqueza em nosso país, que seria combatida por meio do pagamento de aposentadorias dignas. Concordo: que tal acabarmos então com os privilégios que a senhora tanto defende, cara professora?
Quanto às negociações que, na cabeça de dona Maria Sylvia, estão associadas a chantagem e oportunismo -sobre questões que inquietam os corpos docente e discente das universidades-, afirmo que elas vão continuar, inclusive com relação aos hospitais universitários, que são referências para todas as regiões onde estão instalados.
São questões colocadas pelos senhores reitores, interlocutores amplamente legitimados por suas instituições. Referindo-se a mim como interlocutor, a professora diz que "negociar com tal personagem é vender barato a vida do espírito". "Vender", dona Maria Sylvia? Isso sim é linguagem chula e vulgar. Quem põe preço no espírito revela bem seu compromisso ético, moral e intelectual.
Para finalizar, já que a professora é dada a gracinhas com nomes históricos -fez isso com Aníbal, o cartaginês-, vale dizer que outra Maria, a Louca, tentou impedir o desenvolvimento do Brasil. Não será a sua xará, a Furiosa, que desvirtuará o debate sobre o desenvolvimento de São Paulo e a contínua revitalização de suas universidades.


José Aníbal, 51, é deputado federal pelo PSDB-SP e Secretário de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Econômico do Estado de São Paulo.


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