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LIVROS
"Romance sem Palavras", de Carlos Heitor Cony, traz a vida brasileira
sob o período militar
A miséria do ciúme
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Quem não quer uma vida sem
palavras? Ou sem a necessidade
delas? Quem não quer o entendimento direto das coisas? Quem
não quer um diálogo seja de amizade ou de amor conduzido nos
tons imediatos do silêncio? E quem
não está preso seja na amizade ou
no amor às obliquidades e opacidades da fala? Quem não se perde
na sua decifração? "Palavras, palavras, palavras": quem não quer um
romance sem palavras? A interpretação dos livros, como a dos sonhos, é uma das tantas maneiras
de multiplicar o que foi cifrado; e
isso ainda é pouco, comparado à
decifração do passado, ou pior, à
decifração do passado num livro.
Ou, pior ainda, à decifração de um
amor do passado num livro. Amor,
passado e livro se confundem no
novo trabalho de Carlos Heitor
Cony, "Romance sem Palavras".
Descrito pelo autor como uma novela, seu tema é um romance, nos
dois sentidos: romance de amor e
romance literário, o romance que
conta a história de um romance.
Conta um romance de história,
também, episódios da vida brasileira sob a ditadura militar.
Os dois "tempos" em que o livro
se divide (como se fala de um jogo
em dois tempos) deixam-se recortar e invadir por outros, os pequenos capítulos se sucedendo em decupagem rápida, saltando entre os
anos como saltam de cena. Do presente em 1995, ponto de partida
para as excursões pela memória do
narrador Beto e ponto de chegada
surpreendente no final do romance, a narrativa nos transporta, desde logo, para uma cela de prisioneiros políticos 20 anos antes. Foi
lá que se deu o primeiro encontro
entre Beto e "um troço de carne ferida" jogado a seus pés, o "enigma" Jorge Marcos, que se tornaria
seu melhor amigo.
Que esse enigma faça parte de
um triângulo amoroso e que o
triângulo vá sendo enquadrado em
novas geometrias afetivas ao longo
do tempo é, acima de tudo, o que
oferece ao autor a possibilidade de
fiar sua narrativa. Visto de outra
perspectiva, mais ambiciosa, o
enredado das paixões é também,
de modo indireto, uma forma de
acompanhar a realidade inacessível daquele passado, um momento
do Brasil que já parece tão distante.
O caráter artificial dos nomes, desde a musa "Iracema", nome de
guerrilheira, anagrama romântico
de "América", até o igualmente romântico e anagramático "Raul",
uma das "tantas reencarnações de
Che" daquela época, e até mesmo
"Beto", que pode ser hamletianamente invertido em "to be", num
livro que cita Shakespeare mais de
uma vez, reforça a condição de virtualidade desse livro tão voltado
para o entendimento humano do
que foi vivido.
O risco maior de Cony, aqui como em seus outros romances recentes, na sequência aplaudida de
"Quase Memória" (1995), "O Piano e a Orquestra" (1996) e "A Casa
do Poeta Trágico" (1997), é cortejar a sentimentalidade. Cada um
desses livros resiste a ela como pode. As quebras e saltos da narrativa
no "Romance sem Palavras" são
uma forma de contrabalançar essas comoções,
que não deveriam ser lidas
como centro
do livro, nem
muito menos
da experiência.
Certa ênfase no
coloquialismo
tem o mesmo
propósito de
criar um contrapeso para as
afetações de sentimento. Nesses
momentos, a sabedoria literária de
Cony fraqueja pela própria coragem: o naturalismo assumido de
palavras como "cara" ou "sacanear" soa artificial. Cony é um encantador, não desencantador, de
palavras; e sua mágica é tão mais
simples e convincente quando faz
de lugares como "Fonte da Saudade" ou "um dos prédios mais antigos de Higienópolis" nomes de sítios
mitológicos,
locais fantásticos onde se
passa uma vida
mais alta, mais
intensa -uma
vida, precisamente, da literatura.
Que o livro
seja de natureza mais modesta que
os anteriores não diminui seu grau
de comprometimento. A busca de
um sentido retrospectivo é uma
paixão de toda essa "geração desperdiçada", observando agora,
com desprezo, resignação ou contentamento, o país que poderia ter
sido e o que se tem. Esses ex-guerrilheiros, hoje professores, advogados, investidores da bolsa, representam, uns para os outros, as
imagens do que de mais forte se
quis e se fez e do quanto sobrou
-tão pouco- de tanta paixão e
tanto sacrifício.
A retrospecção é também um
exercício espiritual dos amorosos,
confrontados aqui e ali com os signos do passado, semelhantes
àqueles "marcos antigos, cobertos
de limo, que a gente encontra
quando passeia... nos caminhos
abandonados". A "perda da mulher que durante um verão e que,
no clima exaltado que alimentava,
esperava reencontrar para ser e para sempre" é o que move o narrador a recriar o acontecido. Isso para, quem sabe, chegar, afinal, ao
que se passou. História e amor, no
caso, têm um movimento análogo:
ninguém, no livro, está inteiramente presente no presente. O
presente só se revela depois -e
pode trazer surpresas.
As pressões da narrativa constituem assim um modo de entrar na
opacidade do mundo. Mas Cony é
controlado e, no fundo, bem-humorado o suficiente para não acreditar de todo nessas iluminações. É
Iracema, não Beto, quem anuncia
que está escrevendo um "Romance
sem Palavras"; e nada nos impede
de ler o livro como obra dela, o que
levaria a uma interpretação muito
diferente do seu desenlace. São pelo menos dois romances, então, o
que se vai ler. E há um terceiro, ainda: o romance verdadeiramente
sem palavras, a história de um
amor escondido atrás dos outros,
aquilo que é "talvez, o maior sentido da vida", mas que, no caso, revela só a falta de sentido de tantas
outras vidas vividas na ilusão e no
erro.
Mais um romance sem palavras
se adivinha, também, fora do livro,
na sequência da história, que cada
leitor há de imaginar como puder.
O fingimento revela-se, no fim, como uma lei não só da ficção, mas
da compreensão, e da compreensão de si em particular. A miséria
do ciúme, epigrafada com frases de
"Othello" e do "Inferno" de Dante,
chegará então à apoteose ou ao zero, segundo o caráter ou a sorte de
cada um.
Todos nós, portanto, assim como o narrador e seus colegas de
trama, temos bom motivo para desejar o silêncio e a intuição completa. Ou então a música -a música sem palavras, um dos nossos
mitos da vida interior. Mas a última palavra fica, naturalmente, por
conta do autor. Nem Beto, nem
Iracema, nem Raul, nem Jorge
Marcos, mas ao mesmo tempo todos e nenhum, é ele quem vem
mais uma vez exercer seu papel sagrado e humano de compor histórias e nos ensinar a ler romances,
de palavras ou sem.
Arthur Nestrovski é professor titular de literatura da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, autor, entre outros, de "Ironias da Modernidade - Ensaios sobre Literatura e Música" (Ática).
E-mail: nestro@uol.com.br
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