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PONTO DE FUGA
Aura
JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York
Quantos surrealistas são necessários para trocar uma lâmpada? Três: um para acalmar o
javali e os outros dois para encher a banheira com ferros de
passar roupa. Daniel Filipacchi
é um dos melhores editores italianos, e Nesuhi Ertegun, filho
do embaixador turco nos EUA,
produzia discos de jazz. Ambos
nutriram intensa paixão pelo
surrealismo. Amigos fraternos,
constituíram, no pós-guerra,
duas coleções fenomenais, com
escolhas muito mais audaciosas do que as de qualquer instituição oficial.
O museu Guggenheim as reúne pela primeira vez. São 700
obras; o catálogo é enorme, em
dois volumes. Pessoas sensíveis
e chiques abominam o "mau
gosto" figurativo de Dalí, Delvaux ou Clovis Trouille. Mas,
para os que têm a felicidade de
não serem chiques, a subida
pela espiral do Guggenheim é
pulsante de seduções. As séries
de Tanguy, com seus primeiros
e delicadíssimos ensaios, os
Magritte essenciais, os Brauner, os maravilhosos Bellmer e
Ernst sucedem-se, e é difícil arrancar-se da contemplação de
um para imergir em outro. As
combinatórias originais inventadas pelos surrealistas tiveram
um efeito perverso: imagens
marcantes, elas foram reproduzidas, divulgadas e imitadas
"ad nauseam".
Reduzidas muitas vezes a um
signo apenas, perdem os poderes picturais que permitiriam a
magia. Banalizadas, elas enfraquecem e podem provocar o
repúdio sumário de um olhar
superficial. Mas os originais
carregam, intacta, a primitiva
força.
GENTLEMAN - A galeria
Brent Sikkema, no Chelsea, expõe obras de Yinka Shonibare,
artista negro nascido em Londres e criado na Nigéria. Ele faz
intuir, com donaire, complicados descompassos que existem
nas questões de identidade cultural. Fotografias, de enorme
formato e impressionante qualidade, reconstituem cenas elegantes em ambientes do século
passado. Evocando o "Rake's
Progress", de Hogarth, desdobram-se numa sequência que
se intitula "Diário de um Dândi
Vitoriano". Como o herói da
história, personagem central e
superior, é o próprio artista,
suas características raciais perturbam o esperado pela ironia
equívoca. Se denuncia a divisão
britânica de casta, introduz
também o possível desejo de
substituir o colonizador nas
formas mais requintadas de
sua civilização. Além das fotos,
confecciona trajes completos
daqueles tempos: casacas, vestidos, mostrados em manequins se servindo de "batik" tecido na Indonésia, favorito dos
africanos. Em vez de ir buscar
"raízes" em ilusórias tradições
fabricadas, Shonibare avança
pela questão da identidade
com os melhores instrumentos: a contradição e a ambiguidade.
AZUL-NOITE - Wilhelm
Kempf (1895-1991), supremo
intérprete de Beethoven e de
Brahms, teve uma carreira
pouco igualada entre os pianistas. Seus discos revelam-no,
tenso e incandescente, num
discurso sonoro feito de suspenses e de inesperados. Porém, seu talento como compositor foi ocultado pela celebridade do intérprete. "Arte Nova
Classics" gravou duas de suas
peças de câmara, um trio e um
quarteto. São espantosas e dignas dos melhores criadores.
ALL" AMERICANA - No verão, há óperas gratuitas no
Central Park, ao ar livre. Sobre
o gramado, as pessoas fazem
piquenique com cachorros e
crianças, tomando vinho branco como toque fino. A apresentação ao vivo é meramente simbólica e poderia ser substituída
por um CD, já que é transmitida por alto-falantes e ninguém
está lá mesmo para ouvir de fato. Conversas, risos e brincadeiras não param um só instante. Puccini ou Donizetti servem
de vago fundo sonoro. É simpático, e todos voltam para casa convencidos de que passaram um belo momento de cultura.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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