São Paulo, Domingo, 20 de Junho de 1999
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PONTO DE FUGA

Aura

JORGE COLI
especial para a Folha, em Nova York

Quantos surrealistas são necessários para trocar uma lâmpada? Três: um para acalmar o javali e os outros dois para encher a banheira com ferros de passar roupa. Daniel Filipacchi é um dos melhores editores italianos, e Nesuhi Ertegun, filho do embaixador turco nos EUA, produzia discos de jazz. Ambos nutriram intensa paixão pelo surrealismo. Amigos fraternos, constituíram, no pós-guerra, duas coleções fenomenais, com escolhas muito mais audaciosas do que as de qualquer instituição oficial.
O museu Guggenheim as reúne pela primeira vez. São 700 obras; o catálogo é enorme, em dois volumes. Pessoas sensíveis e chiques abominam o "mau gosto" figurativo de Dalí, Delvaux ou Clovis Trouille. Mas, para os que têm a felicidade de não serem chiques, a subida pela espiral do Guggenheim é pulsante de seduções. As séries de Tanguy, com seus primeiros e delicadíssimos ensaios, os Magritte essenciais, os Brauner, os maravilhosos Bellmer e Ernst sucedem-se, e é difícil arrancar-se da contemplação de um para imergir em outro. As combinatórias originais inventadas pelos surrealistas tiveram um efeito perverso: imagens marcantes, elas foram reproduzidas, divulgadas e imitadas "ad nauseam".
Reduzidas muitas vezes a um signo apenas, perdem os poderes picturais que permitiriam a magia. Banalizadas, elas enfraquecem e podem provocar o repúdio sumário de um olhar superficial. Mas os originais carregam, intacta, a primitiva força.

GENTLEMAN - A galeria Brent Sikkema, no Chelsea, expõe obras de Yinka Shonibare, artista negro nascido em Londres e criado na Nigéria. Ele faz intuir, com donaire, complicados descompassos que existem nas questões de identidade cultural. Fotografias, de enorme formato e impressionante qualidade, reconstituem cenas elegantes em ambientes do século passado. Evocando o "Rake's Progress", de Hogarth, desdobram-se numa sequência que se intitula "Diário de um Dândi Vitoriano". Como o herói da história, personagem central e superior, é o próprio artista, suas características raciais perturbam o esperado pela ironia equívoca. Se denuncia a divisão britânica de casta, introduz também o possível desejo de substituir o colonizador nas formas mais requintadas de sua civilização. Além das fotos, confecciona trajes completos daqueles tempos: casacas, vestidos, mostrados em manequins se servindo de "batik" tecido na Indonésia, favorito dos africanos. Em vez de ir buscar "raízes" em ilusórias tradições fabricadas, Shonibare avança pela questão da identidade com os melhores instrumentos: a contradição e a ambiguidade.

AZUL-NOITE - Wilhelm Kempf (1895-1991), supremo intérprete de Beethoven e de Brahms, teve uma carreira pouco igualada entre os pianistas. Seus discos revelam-no, tenso e incandescente, num discurso sonoro feito de suspenses e de inesperados. Porém, seu talento como compositor foi ocultado pela celebridade do intérprete. "Arte Nova Classics" gravou duas de suas peças de câmara, um trio e um quarteto. São espantosas e dignas dos melhores criadores.

ALL" AMERICANA - No verão, há óperas gratuitas no Central Park, ao ar livre. Sobre o gramado, as pessoas fazem piquenique com cachorros e crianças, tomando vinho branco como toque fino. A apresentação ao vivo é meramente simbólica e poderia ser substituída por um CD, já que é transmitida por alto-falantes e ninguém está lá mesmo para ouvir de fato. Conversas, risos e brincadeiras não param um só instante. Puccini ou Donizetti servem de vago fundo sonoro. É simpático, e todos voltam para casa convencidos de que passaram um belo momento de cultura.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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