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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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"A Ladeira da Memória", de José Geraldo Vieira, e "O Tronco", de Bernardo Élis, põem em contraste a alta burguesia cosmopolita e a sociedade feudal sertaneja

Estratégias ficcionais para dois brasis

Nelson de Oliveira
especial para a Folha

O do Sudeste e o do Centro-Oeste. Dois romances, duas cosmovisões. O primeiro, "A Ladeira da Memória", de José Geraldo Vieira, publicado em 1950 e agora na quarta edição (a primeira pela editora Planeta). O segundo, "O Tronco", de Bernardo Élis, lançado em 1956, já na nona edição. De um lado a alta burguesia metropolitana e cosmopolita, do outro as várias camadas da sociedade feudal sertaneja, dominada pelo coronel e seus jagunços. Ocupando os extremos de uma linha imaginária, os dois romances parecem querer se completar. O adágio sinuoso e levemente afetado do primeiro, feito de ruminações estéticas e preciosismos linguísticos, sobrepõe-se à marcha de faroeste do segundo, executada pela saraivada de balas de tocaias, assassinatos e cercos sangrentos. A herança refinada da belle époque e da art nouveau corria nas veias de José Geraldo Vieira. Nascido nos Açores, em 1897, veio com poucos meses para o Brasil. Formou-se em medicina -na sua tese acadêmica de formatura, intitulada "O Instinto Sexual", já apareciam as idéias de Freud- e foi pioneiro no uso do raio X entre nós. Morou na França e na Alemanha, mas, em 1941, motivado por crises diversas, exilou-se na provinciana Marília, no interior de São Paulo. Durante boa parte da vida dividiu-se entre a medicina, o ensino e a prática da literatura, a crítica de arte e a tradução, tendo vertido para o português obras de Joyce, Dostoiévski, Stendhal, Pirandello, Steinbeck, Mark Twain, entre outros. Fazia parte de seu procedimento ficcional lançar mão de fatos autobiográficos na composição das personagens. Tanto que Jorge, o protagonista de "A Ladeira da Memória", também é médico, romancista e tradutor.

Coloquialismo
Já nas veias de Bernardo Élis rolava a poeira do cerrado e o coloquialismo do povo. Nascido em Corumbá de Goiás (GO), em 1915, foi advogado e ativo agitador cultural, além de o primeiro escritor goiano na Academia Brasileira de Letras. Para Francisco de Assis Barbosa, que assina o prefácio de "O Tronco", Bernardo Élis, com seu livro de estréia, "Ermos e Gerais", de 1944, foi o responsável por um novo ciclo da ficção brasileira: o do sertanismo goiano-mineiro. Graças a Élis e a autores que depois vieram engrossar esse caldo, como Guimarães Rosa, Mário Palmério e José J. Veiga, a literatura do Centro-Oeste passou a competir em pé de igualdade com a do Nordeste. Para a elaboração do romance que o consagrou, também Bernardo Élis foi buscar material na realidade: os fatos principais da sua narrativa aconteceram em Goiás, nos idos de 1917 e 1918. De um lado a ladeira das lembranças, do outro a ferramenta de tortura. A trama dos dois romances é simples, quase retilínea não fosse a intercalação de recordações e divagações no fluxo linear de ambos. Aqui terminam as semelhanças. A representação da passagem do tempo difere de maneira curiosa, parece invertida: é lenta no romance metropolitano e rápida no romance sertanejo. Na primeira parte de "A Ladeira da Memória" o divertido desembargador Rangel, tio de Jorge, conta-lhe a forte experiência que foi retornar décadas depois ao sobrado do sogro, agora transformado em cortiço. A casa situava-se justamente na ladeira da Memória, em São Paulo. Esse retorno converteu-se para Jorge no símbolo do reencontro com o passado e na possibilidade de autopacificação.

Prosa intimista
O romance é a via-crúcis milimetricamente anotada de um homem aniquilado pela morte da mulher amada, Renata, vítima de tuberculose. Tudo é movimento, nada nem ninguém permanece muito tempo no mesmo lugar, porém trata-se de movimento em câmera lenta. O tempo presente, que não acaba nunca, é o da viagem à fazenda Camapuã, local paradisíaco onde os amantes passaram dias intensos. Esses dias, contemporâneos aos da Segunda Guerra Mundial, terminaram com a descoberta acidental da doença de Renata. Para Jorge, a viagem a Camapuã é de urgente reconciliação com o passado, porque, transcorridos muitos anos, o hotel fazenda já não existe mais. A prosa é intimista, acompanha o vaivém do discurso interior. Mas não é só isso. O narrador de José Geraldo Vieira joga o tempo todo com o interno e o externo, dedica-se à paisagem abstrata do espírito sem abrir mão do registro realista da paisagem concreta. Por isso [o crítico] Alfredo Bosi observou, décadas atrás, que a posição desse autor na literatura brasileira era marginal. Apesar de certo existencialismo, presente em romances como "A Quadragésima Porta", de 1943, "O Albatroz", de 1952, e neste "A Ladeira da Memória", situá-lo entre Lúcio Cardoso e Cornélio Pena seria um erro. Mais proveitoso é simplesmente opô-lo aos regionalistas, como outro caminho possível para a prosa urbana.

Batalha coletiva
Se até aqui tivemos a pacificação íntima, a partir de agora prevalecerá a batalha coletiva. Outra é a dinâmica do tempo no sertão de Goiás, onde se passa a trama de "O Tronco". Na vila São José do Duro, governada pela família Melo, os fatos acontecem à velocidade de bala. O romance de Bernardo Élis -filmado por João Batista de Andrade em 1999, com Antônio Fagundes e Letícia Sabatella- é seco, crispado, cheira a pólvora. A natureza épica da narrativa não está só no gênero literário: sendo o romance o épico contemporâneo.
Está principalmente no grande número de protagonistas e coadjuvantes reunidos pelo autor para narrar o confronto entre as tropas do governo e os jagunços do coronel Pedro Melo. Entre os dois fogos está Vicente Lemos, sobrinho de Pedro Melo mas também funcionário do governo: coletor de impostos enviado à vila do Duro para pôr fim às arbitrariedades. Porém tão arbitrários quanto o coronel, que acaba assassinado, são os soldados sob as ordens do incompetente juiz Carvalho. Uma vez iniciados os combates, a selvageria passa a prevalecer dos dois lados. Comandados por Artur Melo, filho de Pedro, a horda de jagunços cerca a vila. Por seu turno, os soldados aprisionam os membros da família Melo ao tronco e, quando a guerra parece perdida, fuzilam todos -esse o ponto alto do livro, apresentado de maneira hiper-realista, com a precisão de um estrategista do suspense.
A viagem ao passado, de Bernardo Élis, ecoa no extremo oposto da viagem de José Geraldo Vieira, e ambas se completam na ficção. Dois romances, duas crises brasileiras: a do indivíduo culto e a da coletividade bestializada.


Nelson de Oliveira é escritor, autor de, entre outros, "O Filho do Crucificado" (Ateliê Editorial) e "A Maldição do Macho" (ed. Record).

A Ladeira da Memória
352 págs., R$ 42,00 de José Geraldo Vieira. Ed. Planeta (r. Bernardino de Campos, 318, sala 53, CEP 04620-001, SP, tel. 0/xx/11/ 5543-7899).

O Tronco
276 págs., R$ 30,00 de Bernardo Élis. Ed. José Olympio (r. Argentina, 171, 1º andar, CEP 20921-380, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/ 21/ 2585-2060).



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