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São Paulo, domingo, 20 de julho de 2003

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"A Produção Social da Loucura", de Ciro Marcondes Filho, busca fornecer as coordenadas gerais para uma psicanálise da comunicação de massa

A política do inconsciente

Vladimir Safatle
especial para a Folha

As relações entre psicanálise e teoria social sempre foram tensas. Desde Freud, a psicanálise não se contenta em ser apenas uma clínica da subjetividade, mas quer ser reconhecida também como teoria das produções culturais que procura desvendar a origem libidinal dos vínculos sociopolíticos e a estrutura pulsional das produções estéticas. Em seus piores momentos, isso deu no que atualmente se chama, com uma ponta de sarcasmo, de "psicanálise aplicada"; ou seja, um certo imperialismo psicanalítico que sempre interpreta a mutiplicidade dos fatos culturais à luz da repetição modular dos complexos de Édipo e das teorias sobre a sexualidade infantil. Em seus melhores momentos, o resultado foi uma tensão criativa responsável por algumas das páginas mais importantes da teoria social do século 20, como os "Elementos de Anti-Semitismo", de Adorno e Horkheimer, ou as "Contribuições para a Compreensão do Totalitarismo", de Claude Lefort. É no interior deste debate que o novo livro de Ciro Marcondes Filho procura se inserir. "A Produção Social da Loucura" tem como objetivo fornecer as coordenadas gerais para uma espécie de "psicanálise da comunicação". Objetivo que recupera o projeto de articulações entre psicanálise e teoria social, mas levando em conta que, atualmente, todos os processos de mediação social (política, trocas econômicas, relações familiares etc.) passam necessariamente pelo filtro codificador da mídia.


No caso de Lacan, há no livro vários preconceitos de leitura, a começar pela dicotomia história/estrutura


Teoria do poder
Assim, por meio da análise psicanalítica da comunicação de massa poderíamos compreender melhor o modo contemporâneo de exploração dos vínculos libidinais entre sujeito, estruturas sociais e produções da cultura. Uma exploração que nos leva necessariamente a uma teoria do poder ou, para falar com o autor, a uma "economia política do inconsciente", já que se trata de lançar luz sobre a tentativa de administração do inconsciente pelas práticas econômicas de consumo e pelo "discurso dominante de classe". A maneira como a ação das esferas sociais unificadas pela mídia produz "esquizofrênicos sociais" é o outro foco do projeto do autor que justifica o título do livro. Posto tal programa, renovam-se os caminhos para apreendermos modos de recepção, apropriações midiáticas de objetos culturais e o impacto subjetivo da sensorialidade das novas mídias. Mas neste livro Ciro Marcondes Filho privilegiou sobretudo um debate de natureza epistemológica. Ele é construído por meio da oscilação entre análise de problemas metapsicológicos, clínicos (estatuto da esquizofrenia) e o mapeamento das relações entre psicanálise e teoria social. Tal estratégia visa, principalmente, a livrar a psicanálise da comunicação daquilo que o autor chama de "um certo estruturalismo do discurso freudiano" partilhado por Jacques Lacan e cuja consequência maior seria a entificação de um pensamento que "privilegia o estático diante do histórico" com derivações políticas catastróficas. Ciro Marcondes Filho encontra guarida mais segura ao lado de Alfred Lorenzer, um autor injustamente mal estudado entre nós e que, juntamente com Jürgen Habermas, compreende sintomas como linguagem privatizada e figuras clínicas como patologias da comunicação. Também é louvável o cuidado do autor em recuperar outros pesquisadores esquecidos, mas não menos importantes para o debate, como Otto Fenichel e Gregory Bateson.

Lugares-comuns
Infelizmente, o mesmo não se pode dizer das críticas do livro a Freud e Lacan. No caso de Freud, elas retomam alguns lugares-comuns (pansexualismo, sonhos como realização de desejos, manejo da denegação como sugestão) sem inovar na abordagem. No caso de Lacan, vários são os preconceitos de leitura, a começar pela dicotomia história/estrutura.
Baseado nela, o autor afirma, por exemplo, que as reflexões lacanianas sobre a agressividade levam a uma "ontologização da violência", que, no limite, legitimaria "uma interpretação bastante conciliadora da violência totalitária". Tal afirmação simplesmente ignora que, em Lacan, a agressividade narcísica do eu contra o outro é fruto da "era histórica do eu" ("Escritos", pág. 284), uma era cujas coordenadas são claramente fornecidas pelos textos. Por outro lado, basta irmos à última seção do "Seminário 11" para vermos o que Lacan tem a dizer sobre o totalitarismo.
Na verdade, os conceitos lacanianos fundamentais na compreensão dos vínculos sociais e da sociedade de consumo são sumariamente deixados de lado e apenas comentadores básicos são citados, a despeito de uma abordagem direta dos textos. Não há nada sobre o objeto "a", fantasia fundamental, ato, teoria dos quatro discursos, valor de gozo ou Real como acontecimento. Assim, perde-se uma boa chance de articular Lacan e teoria social. O que não invalida o interessante projeto de uma psicanálise da comunicação.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP e organizador do livro "Um Limite Tenso - Lacan entre a Filosofia e a Psicanálise" (ed. Unesp).

A Produção Social da Loucura
245 págs., R$ 26,50
de Ciro Marcondes Filho. Paulus (r. Francisco Cruz, 229, CEP 04117-091, SP, tel. 0/xx/11/5575-7362).


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