São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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Se há uma característica que chama a atenção na Nigéria, é a abundância de conflito; se nós temos conflitos de menos, eles os têm em excesso, principalmente os étnicos e religiosos
Nigéria, um Estado, muitas nações

Reprodução
Foto sem título de Touhami Ennadre


por José Murilo de Carvalho

Mais populoso país africano -cerca de 110 milhões de habitantes-, a Nigéria só teve 11 anos de governo civil desde a independência da Inglaterra em 1960. O país vive hoje sua Quarta República, inaugurada em maio do ano passado, sob a presidência de um general da reserva, Olusegun Obasanjo, que já foi chefe de Estado entre 1976-79. As ditaduras militares que se sucederam por quase 40 anos foram das mais corruptas e predatórias que se conhecem. A última e pior de todas foi chefiada pelo general Sani Abacha entre 1993 e 1998. Terminou com a morte do ditador, ao que se diz quando se divertia na companhia de duas prostitutas. A investigação em curso sobre a roubalheira durante seu governo já chegou à cifra de US$ 4 bilhões, depositados em 130 contas bancárias ao redor do mundo. A devastação causada pelos generais é visível por toda parte. Falta água, a energia elétrica desaparece várias vezes ao dia, os telefones obedecem ao padrão "brasileiro", os prédios públicos estão deteriorados. Fiz uma conferência num auditório universitário cujas portas tinham sido roubadas. Um país em que o petróleo representa 95% das exportações importa combustível porque as refinarias funcionam com 60% da capacidade. Mas os generais não dispensavam a pompa do mando e usaram parte do dinheiro do petróleo para construir no centro do país uma capital luxuosa por onde circulam os ricos e poderosos. Abuja, a Brasília nigeriana, inaugurada no início da década, já está cercada de favelas e cidades-satélite, como a nossa Brasília, além de manter o governo e a burocracia distantes da população, como também faz a nossa.

Ativista e brigão
No entanto o povo nigeriano surpreende por algumas características que não lembram ditaduras militares. Além de alegre e extrovertido, é falador, brigão, ativista, militante. Discute a propósito de tudo, principalmente religião e política. As ditaduras, apesar de mais nocivas, calaram-no menos do que calaram o nosso povo. Se há uma característica que chama a atenção no país, é a abundância de conflito. Se nós temos conflitos de menos, eles os têm em excesso. Sobressaem os conflitos étnicos e religiosos. Os três principais grupos étnicos são os ibos, os iorubas e os haussas. Os iorubas são conhecidos dos brasileiros pela forte marca que imprimiram em nossa cultura, graças a sua presença entre os escravos trazidos para a Bahia. Mas a diversidade étnica da Nigéria vai muito além dos três grupos. Calcula-se que existam no país umas 250 minorias étnicas com suas próprias línguas, costumes e tradições. As religiões principais são a maometana, no norte, e as cristãs, no sul, com alguma sobrevivência animista. O islamismo foi introduzido pelos árabes a partir do século 12, o cristianismo, pelos europeus a partir do 15. Recentemente, houve uma invasão do pentecostalismo, exatamente como entre nós. O auge do conflito étnico se deu entre 1967 e 1970, quando Biafra, território dominado pelos ibos, proclamou sua independência. Seguiu-se uma guerra civil de dois anos e meio, que terminou com a derrota dos separatistas. No momento, a grande ameaça à unidade do país é o conflito religioso. Vários Estados do norte, de predominância haussa, introduziram a "sharia", a lei islâmica, entrando em conflito com a legislação penal do país e com o caráter secular do Estado, garantido pela constituição. Em termos práticos, a medida significa que nesses Estados os ladrões terão as mãos cortadas, os adúlteros e adúlteras serão apedrejados, os bêbados espancados, os assassinos decapitados. O ladrão de uma vaca já perdeu a mão.

País dividido
O resto do país protestou contra a medida, assim como protestaram os cristãos, a imprensa e várias organizações defensoras dos direitos civis. O presidente, um cristão ioruba, não ousa enfrentar a questão, enquanto o vice, um haussa muçulmano, parece encorajar os Estados do norte. Várias matérias aparecem diariamente nos principais jornais do país ("The Guardian", "Punch", "This Day") discutindo a questão e alertando para um perigo de o país partir-se ao meio ao longo da linha religiosa.
Nigéria, um Estado, muitas nações

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