|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O círculo vicioso da África é: por ser um continente tão subdesenvolvido,
não pode fazer mais do que sobreviver e, como não pode
senão sobreviver, é cada vez mais subdesenvolvido
A África na era da Internet
por Manuel Castells
E então?", pergunta-me o presidente sul-africano
Thabo Mbeki, "o que teríamos de fazer na África?". Enquanto procuro as palavras, meu olhar se
perde através da vidraça de seu gabinete, nos jardins do edifício da União, símbolo do apartheid durante muitos anos e hoje sede do governo que representa a
última esperança africana. Resmungo meu solilóquio
de praxe para esses casos ("eu não tenho respostas, apenas perguntas") e espremo minhas meninges para extrair alguma idéia útil. Uma idéia que vá além da resignação à maldição estrutural da África, condenada pelo
passado de colonialismo, pelo presente de globalização
e pelo futuro de Internet.
Mas o que se pode fazer na África? Produzir para
quem, se as pessoas são tão pobres que não podem consumir? Exportar? A África já exporta, proporcionalmente a seu PIB (Produto Interno Bruto), muito mais
do que os países ricos. Mas exporta aquilo que ela tem:
produtos agrícolas e matérias-primas cujo valor relativo é cada vez menor em comparação com os produtos
de alta tecnologia e com os serviços, que são a base das
nossas economias. Já não é mais possível viver dessas
exportações na nossa economia, embora elas bastem
para que uma pequena elite mantenha sua opulência por meio da apropriação exclusiva desses parcos recursos. Fazer a revolução? Já se fizeram muitas revoluções,
de muitas ideologias, cada qual mais mortífera que a
outra para os corpos e as almas de seus atores e povos.
Fechar as fronteiras e construir economias estatizadas?
Isso já foi tentado por muitos países africanos, em várias modalidades ideológicas, que só conseguiram empobrecer ainda mais. De fato, quando Moçambique
abandonou esse modelo e se integrou à economia mundial (com base na exportação de camarão e no turismo),
melhorou sua sorte a olhos vistos. Mas logo chegou a
um teto, um teto tecnológico, um teto educacional. Pois
como pode uma economia se integrar a um sistema global que funciona com base na informação e na tecnologia sem infra-estrutura de comunicações e sem recursos humanos? É como se se tivesse tentado a industrialização sem eletricidade.
Portanto também a África precisa da Internet. Não
como objeto de consumo, mas de produção e de desenvolvimento. De um turismo de alto valor apoiado na difusão de informação via Internet. De uma agricultura
orgânica, ao mesmo tempo de exportação e de subsistência, apoiada nas informações de insumos e mercados. De uma nova indústria integrada às redes mundiais de produção, administradas por meio da Internet.
De um sistema de saúde apoiado na combinação do
atendimento primário pessoal com a informação especializada fornecida à distancia e em tempo real. E, acima
de tudo, de um sistema de educação e de formação profissional capaz de ensinar e não apenas de armazenar
crianças, apoiado no treinamento e reciclagem contínua dos professores, com um sistema de orientação
acadêmica centrada na Internet.
O círculo vicioso da África é: por ser um continente
tão subdesenvolvido, não pode fazer mais do que sobreviver e, como não pode senão sobreviver, é cada vez
mais subdesenvolvido. Daí provêm a violência, a criminalidade, o ódio étnico e as guerras civis. E também a
epidemia de Aids. Trata-se de um círculo vicioso que só
pode ser rompido, teoricamente, de duas maneiras.
Voltando atrás, a formas autóctones de auto-subsistência, a sociedades tradicionais, ecologicamente sustentáveis. Ou integrando-se a fundo no modelo de desenvolvimento global e informático, com base na competitividade e na economia de mercado aberta.
Minhas simpatias pessoais tendiam para o primeiro
caminho: o de voltar à identidade africana. Isso até eu
perceber que já é tarde demais. Um dos mitos sobre a
África é o de que se trata de um continente rural, quando na realidade tem a taxa de urbanização mais alta do
mundo. O que projeta, para 2020, a concentração de
mais de dois terços da população africana nas cidades.
Cidades onde não há outra forma de subsistência além
de uma economia desenvolvida e seus desperdícios. E,
mais, nem as elites nem os jovens aceitariam agora um
retorno ao passado. Por isso o comunitarismo tradicional é hoje uma via morta, normalmente defendida por
intelectuais ocidentais ou ocidentalizados que pontificam instalados no Primeiro Mundo.
Se pudéssemos recuar na história, provavelmente a
África teria podido construir seu próprio modelo nos
anos 60, como propunha Seku Turé. Mas a geopolítica
dos blocos destruiu essa possibilidade. Depois da crise
provocada pelo endividamento dos anos 80 e pela devastação econômica das políticas de austeridade do
Fundo Monetário Internacional, à África só restam
duas alternativas reais: viver da caridade internacional
(cada vez mais reticente) ou entrar para competir a sério no jogo tecno-econômico global. De fato, a caridade
bem entendida poderia favorecer a competitividade da
África. Porque é preciso começar pelo perdão à dívida
dos países pobres -no fundo, uma forma de caridade
pública, pois quem acabará pagando a conta somos
nós, contribuintes, e não as instituições financeiras.
Mas um modelo de desenvolvimento sustentável, nos
planos econômico e ecológico, requer muito mais do
que isso. Requer uma injeção de recursos econômicos,
tecnológicos e educacionais que permita à África dar
um salto qualitativo, entrando na era da Internet sem
ter de repetir todos os passos da era industrial. Para tanto são necessários recursos que só podem sair de onde
estão: dos países ricos e das empresas multinacionais.
Eles poderiam se engajar nesse projeto não só por razões éticas (que tampouco devem ser descartadas) ou
geopolíticas (pensando na estabilidade do mundo futuro), mas estritamente econômicas. A longo prazo, o desenvolvimento africano ampliaria significativamente o
mercado mundial e integraria à economia global, de
forma dinâmica e segura, os recursos naturais e humanos do continente.
Criar mercados
A curto prazo, um financiamento
maciço do desenvolvimento da infra-estrutura tecnológica e dos recursos humanos (educação e saúde, em primeiro lugar) criaria mercados de forma imediata, tanto
para empresas africanas como para empresas de países
ricos. Essa espécie de Plano Marshall tecnológico Norte-Sul é algo sobre o qual venho falando e escrevendo há
mais de uma década, um dos muitos projetos idealistas
que mobíliam o desvão dos meus sonhos fracassados.
Algo de que voltei a falar há poucos meses em um discurso perante o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, seguindo a trilha de Kofi Annan, que propõe, em seu relatório para a Assembléia Geral da ONU,
marcada para setembro, um novo modelo de desenvolvimento compartilhado com base na tecnologia da informação. Um assunto de que também venho falando
nos salões da União Européia, sempre que sou convidado. E do qual falo, sobretudo, com meus alunos, que,
deferentes a minhas pequenas batalhas, ajudam-me a
mudar e a concretizar o conteúdo do sonho.
Disso falei, por fim, com Mbeki, rompendo minha habitual relutância em dar conselhos aos políticos. E o fiz
porque acredito que os países, os políticos, o mundo só
mudam quando não têm outro remédio. E talvez, neste
momento, na África e no mundo, esteja se consolidando o sentimento de que é insustentável criar um planeta
de Silicon Valleys interligados entre si, excluindo a
maioria da humanidade das redes de informação e riqueza. E, embora a Internet não se coma, não tardará o
tempo em que, sem uma economia baseada na Internet,
só restará comer o sopão caridoso. Mbeki me disse que
ele era da mesma opinião. E que, se houver uma iniciativa estratégica por parte do Norte, as coisas poderão mudar na África. É nisso que estamos empenhados.
Manuel Castells é professor de sociologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), e autor, entre outros, de "A Era da Informação
- Economia, Sociedade e Cultura" (Paz e Terra). O texto acima foi publicado originalmente no jornal "El País".
Tradução de Sergio Molina.
Texto Anterior: José Murilo de Carvalho: Nigéria, um Estado, muitas nações Próximo Texto: Fred Pearce: A falsa África Índice
|