São Paulo, domingo, 20 de agosto de 2000


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O círculo vicioso da África é: por ser um continente tão subdesenvolvido, não pode fazer mais do que sobreviver e, como não pode senão sobreviver, é cada vez mais subdesenvolvido
A África na era da Internet

por Manuel Castells

E então?", pergunta-me o presidente sul-africano Thabo Mbeki, "o que teríamos de fazer na África?". Enquanto procuro as palavras, meu olhar se perde através da vidraça de seu gabinete, nos jardins do edifício da União, símbolo do apartheid durante muitos anos e hoje sede do governo que representa a última esperança africana. Resmungo meu solilóquio de praxe para esses casos ("eu não tenho respostas, apenas perguntas") e espremo minhas meninges para extrair alguma idéia útil. Uma idéia que vá além da resignação à maldição estrutural da África, condenada pelo passado de colonialismo, pelo presente de globalização e pelo futuro de Internet.
Mas o que se pode fazer na África? Produzir para quem, se as pessoas são tão pobres que não podem consumir? Exportar? A África já exporta, proporcionalmente a seu PIB (Produto Interno Bruto), muito mais do que os países ricos. Mas exporta aquilo que ela tem: produtos agrícolas e matérias-primas cujo valor relativo é cada vez menor em comparação com os produtos de alta tecnologia e com os serviços, que são a base das nossas economias. Já não é mais possível viver dessas exportações na nossa economia, embora elas bastem para que uma pequena elite mantenha sua opulência por meio da apropriação exclusiva desses parcos recursos. Fazer a revolução? Já se fizeram muitas revoluções, de muitas ideologias, cada qual mais mortífera que a outra para os corpos e as almas de seus atores e povos. Fechar as fronteiras e construir economias estatizadas? Isso já foi tentado por muitos países africanos, em várias modalidades ideológicas, que só conseguiram empobrecer ainda mais. De fato, quando Moçambique abandonou esse modelo e se integrou à economia mundial (com base na exportação de camarão e no turismo), melhorou sua sorte a olhos vistos. Mas logo chegou a um teto, um teto tecnológico, um teto educacional. Pois como pode uma economia se integrar a um sistema global que funciona com base na informação e na tecnologia sem infra-estrutura de comunicações e sem recursos humanos? É como se se tivesse tentado a industrialização sem eletricidade. Portanto também a África precisa da Internet. Não como objeto de consumo, mas de produção e de desenvolvimento. De um turismo de alto valor apoiado na difusão de informação via Internet. De uma agricultura orgânica, ao mesmo tempo de exportação e de subsistência, apoiada nas informações de insumos e mercados. De uma nova indústria integrada às redes mundiais de produção, administradas por meio da Internet. De um sistema de saúde apoiado na combinação do atendimento primário pessoal com a informação especializada fornecida à distancia e em tempo real. E, acima de tudo, de um sistema de educação e de formação profissional capaz de ensinar e não apenas de armazenar crianças, apoiado no treinamento e reciclagem contínua dos professores, com um sistema de orientação acadêmica centrada na Internet. O círculo vicioso da África é: por ser um continente tão subdesenvolvido, não pode fazer mais do que sobreviver e, como não pode senão sobreviver, é cada vez mais subdesenvolvido. Daí provêm a violência, a criminalidade, o ódio étnico e as guerras civis. E também a epidemia de Aids. Trata-se de um círculo vicioso que só pode ser rompido, teoricamente, de duas maneiras. Voltando atrás, a formas autóctones de auto-subsistência, a sociedades tradicionais, ecologicamente sustentáveis. Ou integrando-se a fundo no modelo de desenvolvimento global e informático, com base na competitividade e na economia de mercado aberta. Minhas simpatias pessoais tendiam para o primeiro caminho: o de voltar à identidade africana. Isso até eu perceber que já é tarde demais. Um dos mitos sobre a África é o de que se trata de um continente rural, quando na realidade tem a taxa de urbanização mais alta do mundo. O que projeta, para 2020, a concentração de mais de dois terços da população africana nas cidades. Cidades onde não há outra forma de subsistência além de uma economia desenvolvida e seus desperdícios. E, mais, nem as elites nem os jovens aceitariam agora um retorno ao passado. Por isso o comunitarismo tradicional é hoje uma via morta, normalmente defendida por intelectuais ocidentais ou ocidentalizados que pontificam instalados no Primeiro Mundo. Se pudéssemos recuar na história, provavelmente a África teria podido construir seu próprio modelo nos anos 60, como propunha Seku Turé. Mas a geopolítica dos blocos destruiu essa possibilidade. Depois da crise provocada pelo endividamento dos anos 80 e pela devastação econômica das políticas de austeridade do Fundo Monetário Internacional, à África só restam duas alternativas reais: viver da caridade internacional (cada vez mais reticente) ou entrar para competir a sério no jogo tecno-econômico global. De fato, a caridade bem entendida poderia favorecer a competitividade da África. Porque é preciso começar pelo perdão à dívida dos países pobres -no fundo, uma forma de caridade pública, pois quem acabará pagando a conta somos nós, contribuintes, e não as instituições financeiras. Mas um modelo de desenvolvimento sustentável, nos planos econômico e ecológico, requer muito mais do que isso. Requer uma injeção de recursos econômicos, tecnológicos e educacionais que permita à África dar um salto qualitativo, entrando na era da Internet sem ter de repetir todos os passos da era industrial. Para tanto são necessários recursos que só podem sair de onde estão: dos países ricos e das empresas multinacionais. Eles poderiam se engajar nesse projeto não só por razões éticas (que tampouco devem ser descartadas) ou geopolíticas (pensando na estabilidade do mundo futuro), mas estritamente econômicas. A longo prazo, o desenvolvimento africano ampliaria significativamente o mercado mundial e integraria à economia global, de forma dinâmica e segura, os recursos naturais e humanos do continente.

Criar mercados
A curto prazo, um financiamento maciço do desenvolvimento da infra-estrutura tecnológica e dos recursos humanos (educação e saúde, em primeiro lugar) criaria mercados de forma imediata, tanto para empresas africanas como para empresas de países ricos. Essa espécie de Plano Marshall tecnológico Norte-Sul é algo sobre o qual venho falando e escrevendo há mais de uma década, um dos muitos projetos idealistas que mobíliam o desvão dos meus sonhos fracassados. Algo de que voltei a falar há poucos meses em um discurso perante o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, seguindo a trilha de Kofi Annan, que propõe, em seu relatório para a Assembléia Geral da ONU, marcada para setembro, um novo modelo de desenvolvimento compartilhado com base na tecnologia da informação. Um assunto de que também venho falando nos salões da União Européia, sempre que sou convidado. E do qual falo, sobretudo, com meus alunos, que, deferentes a minhas pequenas batalhas, ajudam-me a mudar e a concretizar o conteúdo do sonho.
Disso falei, por fim, com Mbeki, rompendo minha habitual relutância em dar conselhos aos políticos. E o fiz porque acredito que os países, os políticos, o mundo só mudam quando não têm outro remédio. E talvez, neste momento, na África e no mundo, esteja se consolidando o sentimento de que é insustentável criar um planeta de Silicon Valleys interligados entre si, excluindo a maioria da humanidade das redes de informação e riqueza. E, embora a Internet não se coma, não tardará o tempo em que, sem uma economia baseada na Internet, só restará comer o sopão caridoso. Mbeki me disse que ele era da mesma opinião. E que, se houver uma iniciativa estratégica por parte do Norte, as coisas poderão mudar na África. É nisso que estamos empenhados.


Manuel Castells é professor de sociologia na Universidade da Califórnia, em Berkeley (EUA), e autor, entre outros, de "A Era da Informação - Economia, Sociedade e Cultura" (Paz e Terra). O texto acima foi publicado originalmente no jornal "El País".
Tradução de Sergio Molina.


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