São Paulo, domingo, 20 de setembro de 2009

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Síntese brasileira

EM TRECHO DE ENSAIO INÉDITO, ALBERTO TASSINARI DEFENDE QUE NUNO RAMOS CONJUGA DUAS TRADIÇÕES "DA BRASILIDADE TORTA", UMA "MACHADIA NA", OUTRA MAIS "EUCLIDIANA"

ALBERTO TASSINARI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A precariedade de muitas obras de Nuno Ramos -sua escolha por materiais conflitantes com os materiais perenes, sua escolha por líquidos, matérias viscosas ou empastadas- o aproximaria de Hélio Oiticica, o artista brasileiro que é sem dúvida sua grande referência.
Em Hélio Oiticica, porém, a precariedade que acabou impregnando sua trajetória e sua postura diante da arte é muito diferente da de Nuno.
Hélio, como Lygia Clark [1920-88], via no fim da pintura moderna o fim da pintura em geral. Não sendo mais possível pintar, a interioridade perdida que a pintura moderna ainda possuía é transposta por Hélio Oiticica para as cavidades de seus relevos espaciais, depois para os "bólides", caixas que convidavam os espectadores a revolvê-las, e, finalmente, para as instalações que pediam a entrada dos espectadores.
Esses interiores espacializados, mas ainda assim interiores, numa espécie de contrapintura, desembocaram, enfim, na união entre arte e vida, nos interiores em que ele mesmo vivia. Como essa união, se não for ato de um artista, se contiver apenas a experiência estética que a todos é dada, não unirá arte e vida, pois é ela mesma já parte da vida, então, no caso de um artista, a diferença acaba por vir pela estetização de sua própria vida.
Esse é o antigo tema do dandismo, inerente e tantas vezes produtivo na história da arte moderna, levado, aqui, às últimas consequências. Em Nuno Ramos, porém, de dandismo não há nada. Nem também de união entre arte e vida. Se algo o aproxima de Hélio Oiticica, é a ambição por uma arte que se deseja grande e não teme testar seus limites.

Ambição sem repressões
Em Hélio, porém, testar os limites da arte, da pintura em especial, era contrariá-la e até mesmo contrabandeá-la a outro gênero, como a música, por exemplo. Em Nuno, ao contrário, não há um teste dos limites da arte além de cada gênero. É a ambição estética sem repressões que Nuno busca em Hélio Oiticica e que seria difícil perceber em sua obra sem a antecedência histórica de Hélio Oiticica, revista por Nuno.
Nuno Ramos, por outro lado, é de uma época em que a pintura contemporânea, seja a pop, a minimalista, ou a de tantos outros movimentos, já se encontrava consolidada.
Se, ao testar seus limites, abriu caminho tanto para seus quadros (que estão entre o que há de melhor da produção pictórica dos últimos 20 anos) como para outros gêneros artísticos, nunca o fez de modo que um gênero abolisse o outro ou que a arte se pretendesse a própria vida.
Sua admiração pelos artistas dele contemporâneos, sejam pintores ou escultores, não é menor do que a ambição que destinou a seu projeto. Lendo seus ensaios sobre arte, e muitos deles sobre artistas próximos, chega-se mesmo a pensar que admira mais as obras desses do que a sua própria. Fato que, vindo de Nuno, de sua índole contestadora, mas temperada, não seria em nada surpreendente. E questão, bem pensada, meio sem sentido. Nuno Ramos mede as potências da arte porque sua obra, salvo engano, não pode mais poupá-lo de ser o que ela é.
Que tenha se embrenhado destemido com a experiência dos limites da arte, e com o encantamento ingênuo que espera ver daí brotar, talvez seja uma contradição numa personalidade tão acordada consigo mesma. Ou não. Para andar beirando perigos, e brincar com fogo, que se escolha o espírito mais sereno.
Serenidade que bem se percebe em seus sambas, pois Nuno é também compositor. Nas suas canções não há propriamente contravenção estética.
Seu paradigma, e sobre o qual tão bem escreveu, é Paulinho da Viola, o elo mais ligado ao samba tradicional de nossa canção contemporânea.
E, se pensarmos que Hélio Oiticica via no samba um elemento transgressor das artes plásticas, ainda que por uma mudança arbitrária de gêneros, com seus parangolés feitos para ver, mas também para vestir e dançar, inquieta que ambos os artistas caibam no "paideuma" de Nuno Ramos.
É que a canção brasileira, o samba em particular, é algo, no Brasil, não apenas de grande visibilidade e dimensão pública, diferente de outras artes, algo que não deve nada a outras correntes da canção moderna, nem mesmo às canções norte-americanas, e que só nelas encontra igual criatividade, como também é algo produzido pelo povo no seu sentido mais pleno, não populista, mas, para usar termos políticos, num sentido soberano, emancipado, onde o pobre canta, e se dá essa licença, versos que só Shakespeare ousaria, no que têm de óbvio e grande ao mesmo tempo.


Seus quadros são como Pollocks que gostaria de ver brotar do morro. Ainda houvesse morro. Ainda houvesse Pollocks


Sem limite
Quem ainda poderia dizer "as rosas exalam o perfume que roubam de ti" sem ser kitsch, a não ser uma canção brasileira ou um sonetista seiscentista?
No samba, assim, não há nada a testar, pois no samba não somos nunca aquém de nós mesmos, somos livres, incomparáveis, sem nenhuma autoridade exterior, estética ou ética -o escravo, ser periférico, torna-se, na canção, o senhor.
Já onde não somos de todo o que poderíamos ter sido, Nuno trabalha e alia, seja pelo exagero estilístico, à Euclydes da Cunha, seja pelo anarquismo estilístico, à Machado de Assis, essas duas tradições de brasilidade torta, porque, em seu lugar, certo como o sol nascerá, só o samba está.
A primeira dessas tradições prossegue pelas veredas de Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, José Celso, Glauber Rocha e o próprio Hélio Oiticica, para ficar apenas em alguns mais célebres; a segunda, cuja fleuma anárquica é mais rara, é a que vive em Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Niemeyer, nos poetas concretos, em João Cabral, na bossa nova, no tropicalismo musical.
No centro desse pêndulo está nosso artista -como dizer?-
central: Drummond. Tivéssemos um Drummond nas artes plásticas (e o candidato aqui seria Volpi, se pintor, ou Amilcar de Castro, se escultor) e a obra de Nuno teria sido outra, pois ela é inteira voltada para nosso deficit criativo (e também para o que se mostra dele nas ciências ou nas humanidades). Incorpora-o, dele perde e dele ganha o quanto der, num metabolismo em tudo imbuído de uma certa missão social, embora pareça uma obra tão idiossincrática.
Faz assim de sua trajetória a aventura mais aberta e generosa de nossas artes plásticas, com seus mais belos quadros se assemelhando, com certa intenção, parece-me, a carnavais, a carros alegóricos, a Pollocks que gostaria de ver brotar do morro. Ainda houvesse morro.
Ainda houvesse Pollocks.
Quem sabe.


ALBERTO TASSINARI é crítico de arte, autor de "O Espaço Moderno" (ed. Cosac Naify).
Este texto é um trecho do ensaio "O Caminho dos Limites", que integra o livro "Nuno Ramos", a ser lançado pela editora Cobogó.


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