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Síntese brasileira
EM TRECHO DE ENSAIO INÉDITO, ALBERTO TASSINARI DEFENDE QUE NUNO RAMOS CONJUGA DUAS TRADIÇÕES "DA BRASILIDADE TORTA", UMA "MACHADIA NA", OUTRA MAIS "EUCLIDIANA"
ALBERTO TASSINARI
ESPECIAL PARA A FOLHA
A precariedade de
muitas obras de
Nuno Ramos -sua
escolha por materiais conflitantes
com os materiais perenes, sua
escolha por líquidos, matérias
viscosas ou empastadas- o
aproximaria de Hélio Oiticica,
o artista brasileiro que é sem
dúvida sua grande referência.
Em Hélio Oiticica, porém, a
precariedade que acabou impregnando sua trajetória e sua
postura diante da arte é muito
diferente da de Nuno.
Hélio, como Lygia Clark
[1920-88], via no fim da pintura moderna o fim da pintura
em geral. Não sendo mais possível pintar, a interioridade
perdida que a pintura moderna
ainda possuía é transposta por
Hélio Oiticica para as cavidades de seus relevos espaciais,
depois para os "bólides", caixas
que convidavam os espectadores a revolvê-las, e, finalmente,
para as instalações que pediam
a entrada dos espectadores.
Esses interiores espacializados, mas ainda assim interiores, numa espécie de contrapintura, desembocaram, enfim, na união entre arte e vida,
nos interiores em que ele mesmo vivia. Como essa união, se
não for ato de um artista, se
contiver apenas a experiência
estética que a todos é dada, não
unirá arte e vida, pois é ela
mesma já parte da vida, então,
no caso de um artista, a diferença acaba por vir pela estetização de sua própria vida.
Esse é o antigo tema do dandismo, inerente e tantas vezes
produtivo na história da arte
moderna, levado, aqui, às últimas consequências. Em Nuno
Ramos, porém, de dandismo
não há nada. Nem também de
união entre arte e vida. Se algo
o aproxima de Hélio Oiticica, é
a ambição por uma arte que se
deseja grande e não teme testar
seus limites.
Ambição sem repressões
Em Hélio, porém, testar os limites da arte, da pintura em especial, era contrariá-la e até
mesmo contrabandeá-la a outro gênero, como a música, por
exemplo. Em Nuno, ao contrário, não há um teste dos limites
da arte além de cada gênero. É a
ambição estética sem repressões que Nuno busca em Hélio
Oiticica e que seria difícil perceber em sua obra sem a antecedência histórica de Hélio Oiticica, revista por Nuno.
Nuno Ramos, por outro lado,
é de uma época em que a pintura contemporânea, seja a pop, a
minimalista, ou a de tantos outros movimentos, já se encontrava consolidada.
Se, ao testar seus limites,
abriu caminho tanto para seus
quadros (que estão entre o que
há de melhor da produção pictórica dos últimos 20 anos) como para outros gêneros artísticos, nunca o fez de modo que
um gênero abolisse o outro ou
que a arte se pretendesse a própria vida.
Sua admiração pelos artistas
dele contemporâneos, sejam
pintores ou escultores, não é
menor do que a ambição que
destinou a seu projeto. Lendo
seus ensaios sobre arte, e muitos deles sobre artistas próximos, chega-se mesmo a pensar
que admira mais as obras desses do que a sua própria. Fato
que, vindo de Nuno, de sua índole contestadora, mas temperada, não seria em nada surpreendente. E questão, bem
pensada, meio sem sentido.
Nuno Ramos mede as potências da arte porque sua obra,
salvo engano, não pode mais
poupá-lo de ser o que ela é.
Que tenha se embrenhado
destemido com a experiência
dos limites da arte, e com o encantamento ingênuo que espera ver daí brotar, talvez seja
uma contradição numa personalidade tão acordada consigo
mesma. Ou não. Para andar
beirando perigos, e brincar
com fogo, que se escolha o espírito mais sereno.
Serenidade que bem se percebe em seus sambas, pois Nuno é também compositor. Nas
suas canções não há propriamente contravenção estética.
Seu paradigma, e sobre o qual
tão bem escreveu, é Paulinho
da Viola, o elo mais ligado ao
samba tradicional de nossa
canção contemporânea.
E, se pensarmos que Hélio
Oiticica via no samba um elemento transgressor das artes
plásticas, ainda que por uma
mudança arbitrária de gêneros,
com seus parangolés feitos para ver, mas também para vestir
e dançar, inquieta que ambos
os artistas caibam no "paideuma" de Nuno Ramos.
É que a canção brasileira, o
samba em particular, é algo, no
Brasil, não apenas de grande visibilidade e dimensão pública,
diferente de outras artes, algo
que não deve nada a outras correntes da canção moderna,
nem mesmo às canções norte-americanas, e que só nelas encontra igual criatividade, como
também é algo produzido pelo
povo no seu sentido mais pleno, não populista, mas, para
usar termos políticos, num sentido soberano, emancipado,
onde o pobre canta, e se dá
essa licença, versos que só Shakespeare ousaria, no que têm
de óbvio e grande ao mesmo
tempo.
Seus quadros são como Pollocks que gostaria de ver brotar do morro. Ainda houvesse morro. Ainda houvesse Pollocks
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Sem limite
Quem ainda poderia dizer
"as rosas exalam o perfume que
roubam de ti" sem ser kitsch, a
não ser uma canção brasileira
ou um sonetista seiscentista?
No samba, assim, não há nada a
testar, pois no samba não somos nunca aquém de nós mesmos, somos livres, incomparáveis, sem nenhuma autoridade
exterior, estética ou ética -o
escravo, ser periférico, torna-se, na canção, o senhor.
Já onde não somos de todo o
que poderíamos ter sido, Nuno
trabalha e alia, seja pelo exagero estilístico, à Euclydes da Cunha, seja pelo anarquismo estilístico, à Machado de Assis, essas duas tradições de brasilidade torta, porque, em seu lugar,
certo como o sol nascerá, só o
samba está.
A primeira dessas tradições
prossegue pelas veredas de Oswald de Andrade, Gilberto
Freyre, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, José Celso, Glauber Rocha e o próprio Hélio Oiticica, para ficar apenas em alguns mais célebres; a segunda,
cuja fleuma anárquica é mais
rara, é a que vive em Manuel
Bandeira, Mário de Andrade,
Niemeyer, nos poetas concretos, em João Cabral, na bossa
nova, no tropicalismo musical.
No centro desse pêndulo está
nosso artista -como dizer?-
central: Drummond.
Tivéssemos um Drummond
nas artes plásticas (e o candidato aqui seria Volpi, se pintor, ou
Amilcar de Castro, se escultor)
e a obra de Nuno teria sido outra, pois ela é inteira voltada para nosso deficit criativo (e também para o que se mostra dele
nas ciências ou nas humanidades). Incorpora-o, dele perde e
dele ganha o quanto der, num
metabolismo em tudo imbuído
de uma certa missão social, embora pareça uma obra tão idiossincrática.
Faz assim de sua trajetória a
aventura mais aberta e generosa de nossas artes plásticas,
com seus mais belos quadros se
assemelhando, com certa intenção, parece-me, a carnavais,
a carros alegóricos, a Pollocks
que gostaria de ver brotar do
morro. Ainda houvesse morro.
Ainda houvesse Pollocks.
Quem sabe.
ALBERTO TASSINARI é crítico de arte, autor de
"O Espaço Moderno" (ed. Cosac Naify).
Este texto é um trecho do ensaio "O Caminho
dos Limites", que integra o livro "Nuno Ramos",
a ser lançado pela editora Cobogó.
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