São Paulo, domingo, 20 de setembro de 2009

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É tudo história

Coletânea discute o papel do cinema como fonte da pesquisa histórica a partir do legado do francês Marc Ferro

RUBENS MACHADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA

Sobre modismos franceses, o ensaísta Jean-Louis Leutrat [professor da Universidade de Paris 3] contava aos alunos uma anedota que lhe parecia muito divertida, embora poucos rissem. Dizia que, a partir dos anos 70, os textos de Marc Ferro [da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris] sobre cinema e história são tomados como método em larga escala, não só em trabalhos universitários como na crítica especializada.
Não demorou muito para surgirem os primeiros reparos, e os adeptos acabaram por fazer um balanço no qual se apontavam limites: o método só produziria bons resultados se aplicado no campo do documentário. Alguns anos depois, alguns "metodólogos" trariam uma precisão maior: não era sobre os documentários em geral que as propostas de Ferro traziam a sua melhor contribuição, mas sim sobre um caso particular deles, o cinejornal.
E novas revisões iriam dar conta de que o método só traria mesmo bons resultados se aplicado aos cinejornais rodados na Segunda Guerra Mundial [1939-45]. Por fim, pesquisas mais recentes apontaram que o acerto se restringiria à produção alemã e soviética, isto é, o material de origem sobre o qual Ferro havia construído seu modelo de análise.
Descontada a maledicência, que no caso não é pouca, Leutrat nos parece, sob vários aspectos, coberto de razão. Seu viés quer restituir o interesse da análise fílmica capaz de buscar a singularidade do filme, que se eclipsa há décadas.
Em terras de Montaigne e Descartes, as metodologias e o ensaísmo vivem em conflito. A injustiça com Marc Ferro e seus seguidores é ignorar que teriam sido capazes de reformular os métodos mediante novos objetos ao longo das últimas décadas, abusos à parte.
Isso já a partir do próprio Ferro, primeiro historiador a montar um verdadeiro laboratório de pesquisas na universidade interessado em usar o cinema como fonte histórica.

Depois da guerra
Tal quadro pode ser agora melhor discutido com o lançamento desta coletânea, "Cinematógrafo", em parte voltada à homenagem do mestre, aliás, em plena atividade, com seu artigo abrindo o volume, no qual comenta a questão hoje aguda da apropriação e dos direitos de imagem, desde uma perspectiva política ao longo do século [passado].
Partindo de uma moldura-homenagem, o livro ultrapassa bastante o campo cultivado por Ferro, apesar da estrutura sintomática, compreendendo três alentadas partes: uma primeira dedicada às considerações teóricas; depois uma concentrada nas representações da Segunda Guerra Mundial; e uma parte final, que se interessa por questões mais recentes do período pós-guerra.
Acabam incorporadas linhas diversas de investigação sobre os problemas de cinema-história. E com pouco poderia até ser considerado um panorama significativo da pluralidade atual, se incluísse nomes inevitáveis hoje na França, como [Antoine] de Baecque e [Christian] Delage, e algo análogo no Brasil, já que se tratava de contemplar o intercâmbio entre os dois países no Ano da França no Brasil.
A tradução pioneira de autores há muito consolidados na área, como Pierre Sorlin, Michèle Lagny, Sylvie Dallet e Sylvie Lindeperg, já justifica de imediato a importância do volume, mesmo com a tradução um tanto irregular, mantendo certo padrão geral cultivado, mas com escorregões sobretudo na área mais específica do léxico cinematográfico.
Os temas, concentrados no cinema soviético e no alemão da Segunda Guerra Mundial -que mereceu um artigo de Sheila Schvarzman sobre a abordagem brasileira do Holocausto-, se espalham em várias direções: Espanha de Franco, revoluções de Cuba e México, cidade pós-moderna, Hollywood contemporânea, recepção, ensino, teoria crítica.

Imagens múltiplas
Dos autores selecionados pelos organizadores Jorge Nóvoa, Soleni Fressato e Kristian Feigelson, destaco o desafio que nos reserva o veterano Pierre Sorlin ao nos introduzir em suas novas pesquisas sobre a televisão.
Enfrenta ali, perplexo, as diferenças de pesquisar com o cinema e com a TV, as matrizes divergentes de temporalidade implicadas no material televisivo, até hoje pouco discutidas, e as armadilhas positivistas que enxerga tanto para o trabalho mais tradicional da crônica como para o discurso mais reflexivo do historiador.
Mas a leitura deveras obrigatória nos parece ser o artigo de Michèle Lagny, tanto pela grande exposição do quadro plural de linhas de pesquisa que se servem do "cinema como fonte de história" como pelas considerações críticas que de fato abrangem quase todos os colegas, claro, incluídos também os do presente volume.
Ela propõe no final de seu texto que o historiador atuante na área ou bem deveria se tornar um especialista de cinema, ou colaborar "estreitamente com os historiadores de cinema e os teóricos do filme".
Parece intuir, com isso, o problema que se oculta no enorme divórcio observado entre os textos dos historiadores ou cientistas sociais e os do crítico ou ensaísta especializado em cinema, pela patente ausência de diálogo. "Não há ruptura absoluta entre estes especialistas e a história que se pode fazer com o cinema", argumenta Lagny.
Os procedimentos são no fundo muito próximos e o benefício seria mútuo. Com efeito, quando o cientista social não trabalha nem cita o crítico de cinema, suspeita-se que ao menos uma das partes esteja equivocada.


RUBENS MACHADO JR. é professor de cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP.

CINEMATÓGRAFO - UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA

Organizadores: Jorge Nóvoa, Soleni Biscouto Fressato e Kristian Feigelson
Tradução: vários tradutores Editoras: Ed. Unesp /Ed. da Universidade Federal da Bahia (tel. 0/xx/71/ 3263-6164)
Quanto: R$ 64 (496 págs.)


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