|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
É tudo história
Coletânea discute o papel do cinema como fonte da pesquisa histórica a partir do legado do francês
Marc Ferro
RUBENS MACHADO JR.
ESPECIAL PARA A FOLHA
Sobre modismos franceses, o ensaísta Jean-Louis Leutrat [professor da Universidade
de Paris 3] contava
aos alunos uma anedota que
lhe parecia muito divertida,
embora poucos rissem. Dizia
que, a partir dos anos 70, os
textos de Marc Ferro [da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris] sobre cinema e história são tomados
como método em larga escala,
não só em trabalhos universitários como na crítica especializada.
Não demorou muito para
surgirem os primeiros reparos,
e os adeptos acabaram por fazer um balanço no qual se
apontavam limites: o método
só produziria bons resultados
se aplicado no campo do documentário. Alguns anos depois,
alguns "metodólogos" trariam
uma precisão maior: não era
sobre os documentários em geral que as propostas de Ferro
traziam a sua melhor contribuição, mas sim sobre um caso
particular deles, o cinejornal.
E novas revisões iriam dar
conta de que o método só traria
mesmo bons resultados se aplicado aos cinejornais rodados
na Segunda Guerra Mundial
[1939-45]. Por fim, pesquisas
mais recentes apontaram que o
acerto se restringiria à produção alemã e soviética, isto é, o
material de origem sobre o
qual Ferro havia construído
seu modelo de análise.
Descontada a maledicência,
que no caso não é pouca, Leutrat nos parece, sob vários aspectos, coberto de razão. Seu
viés quer restituir o interesse
da análise fílmica capaz de buscar a singularidade do filme,
que se eclipsa há décadas.
Em terras de Montaigne e
Descartes, as metodologias e o
ensaísmo vivem em conflito. A
injustiça com Marc Ferro e
seus seguidores é ignorar que
teriam sido capazes de reformular os métodos mediante
novos objetos ao longo das últimas décadas, abusos à parte.
Isso já a partir do próprio
Ferro, primeiro historiador a
montar um verdadeiro laboratório de pesquisas na universidade interessado em usar o cinema como fonte histórica.
Depois da guerra
Tal quadro pode ser agora
melhor discutido com o lançamento desta coletânea, "Cinematógrafo", em parte voltada à
homenagem do mestre, aliás,
em plena atividade, com seu artigo abrindo o volume, no qual
comenta a questão hoje aguda
da apropriação e dos direitos de
imagem, desde uma perspectiva política ao longo do século
[passado].
Partindo de uma moldura-homenagem, o livro ultrapassa
bastante o campo cultivado por
Ferro, apesar da estrutura sintomática, compreendendo três
alentadas partes: uma primeira
dedicada às considerações teóricas; depois uma concentrada
nas representações da Segunda
Guerra Mundial; e uma parte
final, que se interessa por questões mais recentes do período
pós-guerra.
Acabam incorporadas linhas
diversas de investigação sobre
os problemas de cinema-história. E com pouco poderia até
ser considerado um panorama
significativo da pluralidade
atual, se incluísse nomes inevitáveis hoje na França, como
[Antoine] de Baecque e [Christian] Delage, e algo análogo no
Brasil, já que se tratava de contemplar o intercâmbio entre os
dois países no Ano da França
no Brasil.
A tradução pioneira de autores há muito consolidados na
área, como Pierre Sorlin, Michèle Lagny, Sylvie Dallet e
Sylvie Lindeperg, já justifica de
imediato a importância do volume, mesmo com a tradução
um tanto irregular, mantendo
certo padrão geral cultivado,
mas com escorregões sobretudo na área mais específica do
léxico cinematográfico.
Os temas, concentrados no
cinema soviético e no alemão
da Segunda Guerra Mundial
-que mereceu um artigo de
Sheila Schvarzman sobre a
abordagem brasileira do Holocausto-, se espalham em várias direções: Espanha de Franco, revoluções de Cuba e México, cidade pós-moderna, Hollywood contemporânea, recepção, ensino, teoria crítica.
Imagens múltiplas
Dos autores selecionados pelos organizadores Jorge Nóvoa,
Soleni Fressato e Kristian Feigelson, destaco o desafio que
nos reserva o veterano Pierre
Sorlin ao nos introduzir em
suas novas pesquisas sobre a
televisão.
Enfrenta ali, perplexo, as diferenças de pesquisar com o cinema e com a TV, as matrizes
divergentes de temporalidade
implicadas no material televisivo, até hoje pouco discutidas, e
as armadilhas positivistas que
enxerga tanto para o trabalho
mais tradicional da crônica como para o discurso mais reflexivo do historiador.
Mas a leitura deveras obrigatória nos parece ser o artigo de
Michèle Lagny, tanto pela
grande exposição do quadro
plural de linhas de pesquisa que
se servem do "cinema como
fonte de história" como pelas
considerações críticas que de
fato abrangem quase todos os
colegas, claro, incluídos também os do presente volume.
Ela propõe no final de seu
texto que o historiador atuante
na área ou bem deveria se tornar um especialista de cinema,
ou colaborar "estreitamente
com os historiadores de cinema
e os teóricos do filme".
Parece intuir, com isso, o
problema que se oculta no
enorme divórcio observado entre os textos dos historiadores
ou cientistas sociais e os do crítico ou ensaísta especializado
em cinema, pela patente ausência de diálogo. "Não há ruptura
absoluta entre estes especialistas e a história que se pode fazer com o cinema", argumenta
Lagny.
Os procedimentos são no
fundo muito próximos e o benefício seria mútuo. Com efeito, quando o cientista social
não trabalha nem cita o crítico
de cinema, suspeita-se que ao
menos uma das partes esteja
equivocada.
RUBENS MACHADO JR. é professor de cinema
na Escola de Comunicações e Artes da USP.
CINEMATÓGRAFO - UM OLHAR SOBRE A HISTÓRIA
Organizadores: Jorge Nóvoa, Soleni
Biscouto Fressato e Kristian Feigelson
Tradução: vários tradutores
Editoras: Ed. Unesp /Ed. da Universidade Federal da Bahia (tel. 0/xx/71/
3263-6164)
Quanto: R$ 64 (496 págs.)
Texto Anterior: Síntese brasileira Próximo Texto: +lançamentos Índice
|