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Natal fora do tempo
Fundada sobre um mito cristão, festa se institucionalizou e exige hoje formas mais livres para comemorá-la
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16.dez.08/Reuters
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Funcionário de imobiliária monta decoração natalina na cidade de Wuhan, na China
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
Não sei se me entendem, mas devo
confessar que implico com o Natal.
A implicância
não se deve a razões religiosas.
O mito de um deus consubstanciado em homem, que desceu à terra para redimir a humanidade, tem uma inegável
beleza, embora nada indique
que a humanidade tenha criado juízo após o sacrifício do
Cristo.
Implico com o Natal por razões deste mundo, portanto
bem profanas. Quando novembro vai se findando, os sintomas da febre natalina se tornam visíveis numa cidade como São Paulo.
O trânsito, regido por Lúcifer, fica ainda mais demoníaco
e a distinção entre as horas
mais favoráveis e as de rush desaparece, pois tudo se torna
rush.
Os engarrafamentos aumentam espantosamente, pela circulação de um exército de mulheres, homens e crianças, engrossado pelas tropas que vêm
de fora, em busca dos shoppings elegantes ou das pechinchas da rua 25 de Março e dos
feirões do Brás.
O Natal se caracteriza, como
outras comemorações, por um
traço negativo, em grau mais
elevado do que as outras: a celebração obrigatória, com data
marcada. O comércio inventou
os dias das mães, dos pais, da
criança, dos namorados, dos
amigos e logo vai estender a lista para os amantes ou as amantes secretas e outras categorias.
Em qualquer dessas hipóteses, é possível evitar o ritual de
cumprimentos e presentes.
Meu exorcismo, para afastar as
pessoas, é curto e grosso: "Mais
um dia dos lojistas".
Frenesi
A data natalina está longe da
trivialidade desses dias, diretamente vinculados aos interesses comerciais. O mito cristão é
poderoso, é belo, mas impõe,
mais do que qualquer outro, a
observância de certos rituais.
Dentre eles, os presentes
ocupam um lugar central. Há
quem se encante com o frenesi
das compras, com o atravancamento das lojas e das ruas, com
a exigência de não se esquecer
de ninguém -o esquecimento
converte-se num pecado capital-, porém os presentes, ao
menos para mim, são um tormento a mais, em meio ao calor
dos últimos meses do ano.
Revejo minha lista e, antes
que alguém presenteado se sinta ofendido ao ler eventualmente estas linhas, declaro que
todos os meus presentes têm
razões de ser, motivados pelo
afeto sincero ou como uma
lembrança a alguém que foi
particularmente atencioso para comigo.
Mas me pergunto se não poderíamos trocar a dádiva institucionalizada por uma atitude
mais espontânea para quem dá
e mais inesperada para quem
recebe, a de oferecer presentes
ao longo do ano?
Outro aspecto, mais controvertido, refere-se à obrigação
de dar gorjetas (gorjetas honestas, convém lembrar) a pessoas
que nos atenderam pelos meses afora.
De um lado, esses agrados
têm muito sentido, pois representam uma oportunidade para gente desprivilegiada -com
os lixeiros e varredores de rua à
frente- aumentar um pouco
seus magros ganhos.
Mesmo assim, há motivo para irritações.
A lista de gorjetas, por mais
cuidadosa que seja, acaba sendo incompleta. Não por culpa
de quem a faz, mas por surgirem sempre figuras inesperadas, como os leitores da luz e da
água (remuneramos quem é
um elo de transmissão de contas salgadas?), de falsos entregadores de jornais ou de entregadores verdadeiros de jornais
gratuitos não solicitados, que
vão diretamente para o latão de
lixo seletivo?
Reformismo
Diante disso e de outras coisas mais, como a simbologia
dos trenós, das renas, do Papai
Noel pesadamente vestido, das
comidas próprias para o inverno e impróprias para o nosso
verão, não seria possível ao menos mudar uma parte dos hábitos, numa perspectiva reformista, ou escalonar o Natal ao
longo do ano, numa perspectiva revolucionária, autorizando
a escolha individual do mês favorito do Natal?
Desse modo, poderíamos
desconcentrar alegrias e aborrecimento e pronunciar frases
hoje impensáveis, do gênero:
"Meu Natal cai em setembro".
Estava quase fechando estas
impertinentes considerações
quando recolhi, no "Diário do
Conde Ciano, 1939-1943", genro de Benito Mussolini (ditador
da Itália fascista), referências
ao desprezo deste pelo Natal,
reveladas numa conversa de
dezembro de 1941.
Apesar de sua aproximação
tática com a Igreja Católica,
Mussolini disse a Ciano não entender por que Hitler ainda não
abolira o Natal, "essa festa que
celebra o nascimento de um judeu, cujas teorias debilitaram e
castraram o mundo".
"Cristo afetou especialmente
a Itália, pela capacidade demonstrada pelo papado de fraturar a sociedade italiana".
Como não quero ficar em tal
companhia, peço a quem me
seguiu até aqui na leitura que
esqueça, para sempre, o que eu
escrevi.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da
Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A
Revolução de 30" (Companhia das Letras).
borisfausto@uol.com.br
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