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+(c)ultura
A música me salvou
Jazzista seminal,
Keith Jarrett
explica como
a dedicação
ao piano
o ajudou a superar
o divórcio e a fadiga crônica
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JOHN BUNGEY
Foi um retorno digno de
um herói. "Keith, você
é um gênio, você é
Deus", gritou alguém
enquanto amainavam
os aplausos ensurdecedores no
Festival Hall [em Londres]. A
plateia até aceitou com bom
humor a usual admoestação
quanto a evitar pigarros.
Foi assim que transcorreu o
concerto solo de Keith Jarrett
em dezembro do ano passado,
seu primeiro no Reino Unido
em 17 anos. É verdade que ele
visita o país regularmente com
seu trio [com Jack DeJohnette,
na percussão, e Gary Peacock,
no contrabaixo], mas nada se
equipara à intensidade, ao fervor e à adulação da plateia que
costumam caracterizar suas
épicas apresentações solo, totalmente improvisadas.
Elas ganharam fama com "O
Concerto em Colônia", lançado
em 1975 e que acumulou 4 milhões de cópias vendidas. Em
suas boas noites, a plateia tem a
oportunidade de assistir ao
pianista enquanto conjura,
aparentemente do nada, um
universo musical em que os espíritos de Bach e do bebop,
Monk e Mozart se misturam.
Os preços dos ingressos para
seus shows na Europa continental começam em 150 [cerca de R$ 430] -e disparam.
Mas o que os fieis presentes
ao espetáculo não sabiam ao
deixar a sala rumo à noite de
inverno era que Jarrett estava
tocando em estado de profunda perturbação emocional. "A
caminho de Londres, cheguei
perto de um colapso nervoso",
afirma. Rose Anne, sua mulher
há 30 anos, o havia deixado
pouco antes da data do show.
Fora do palco, Jarrett, 64
-que, com Wynton Marsalis, é
uma das mais influentes figuras do jazz-, é um homem zeloso de sua privacidade, que vive em uma casa à beira de um
lago em Nova Jersey [EUA].
Sua resposta à separação foi
mergulhar no trabalho. Ele pediu a seus agentes que marcassem concertos sem muito aviso
prévio, e as apresentações no
Festival Hall e em Paris (que
também consta do novo álbum
ao vivo, "Testament") foram
organizadas rapidamente.
Mas por que espetáculos solo, que são a forma de espetáculo mais fatigante do ponto de
vista físico e psicológico?
"Um dos motivos é que me
vejo arremessado ao meu trabalho de uma maneira nova,
devido às questões pessoais
que ocorreram... A crise emocional desperta certas conexões musicais novas. Às vezes,
quando as emoções estão à flor
da pele, você subitamente descobre uma paleta que não estava usando e deseja expor".
Antes de cada show improvisado, o pianista diz que precisa
libertar sua mente de quaisquer pensamentos musicais.
"Se eu tiver uma ideia daquilo
que pretendo fazer, antes de
chegar ao piano, isso é ruim".
Mas o concerto de Londres
foi uma estranha exceção. "Alguma voz tola em minha cabeça estava me dizendo que eu tinha de tocar determinada coisa, e tudo o que eu sabia quanto
a isso era que tinha a ver com
tríades em ré bemol."
Menino prodígio
Em 1996, Jarrett sofreu um
surto da síndrome de fadiga
crônica, que paralisou sua carreira por dois anos. Ele diz estar
completamente recuperado e
acrescenta: "Bem, tive sorte.
Muita gente termina abandonada pela mulher quando começa a sofrer dessa doença".
Não surpreende que Jarrett
tenha decidido se dedicar ainda
mais à música. Sua arte sempre
o definiu. Foi um menino prodígio, que executava Mozart,
Debussy e composições próprias aos oito anos.
Sua autoconfiança sempre
foi completa -muitas vezes
apesar de críticas de que se leva
a sério demais, lança material
demais, ou ao repertório de caretas e grunhidos que também
acompanha a música. (Muito
mais críticos afirmam que ele é
o maior músico de jazz vivo.)
Jarrett conta sobre seus primeiros dias no Village Vanguard, a famosa casa de jazz em
Nova York. "Havia 13 pessoas
na audiência, e Ax Gordon [o
fundador da casa] uma vez me
disse que a minha banda tinha
ritmo, e perguntou por que não
tocávamos com mais suingue,
porque lotaríamos a casa. E eu
respondi que tinha certeza de
que nosso som iria pegar, mas
não de uma maneira que não tivesse integridade."
Ainda ouve o seu trabalho de
maior sucesso de vendas, "O
Concerto em Colônia"?
"Não, há muitas notas supérfluas. Há uma transcrição (e o
YouTube está repleto de músicos que tentam reproduzir a
peça), mas as pessoas que tocam não compreendem que
não gosto do concerto na forma
que tem. Se voltasse a gravá-lo
usando a partitura, as pessoas
não se conformariam com o
número de notas que eliminaria". Ele ri. "Mas isso não vai
acontecer."
Risco emocional
Em um momento como o
que ele vive, a aclamação de
desconhecidos deve ser duplamente sedutora. Em suas notas
na capa do novo CD, Jarrett diz
que o ano passado ensinou
muito a ele sobre a natureza
humana. "As pessoas são profundas, as pessoas são criaturas
com pouco a que se apegar."
Para Jarrett, tocar pode ser
uma viagem a um "território de
risco emocional", mas também
representa um salva-vidas.
A íntegra deste texto saiu no "Times".
Tradução de Paulo Migliacci.
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