São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 2009

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+(c)ultura

A música me salvou


Jazzista seminal, Keith Jarrett explica como a dedicação ao piano o ajudou a superar o divórcio e a fadiga crônica

JOHN BUNGEY

Foi um retorno digno de um herói. "Keith, você é um gênio, você é Deus", gritou alguém enquanto amainavam os aplausos ensurdecedores no Festival Hall [em Londres]. A plateia até aceitou com bom humor a usual admoestação quanto a evitar pigarros.
Foi assim que transcorreu o concerto solo de Keith Jarrett em dezembro do ano passado, seu primeiro no Reino Unido em 17 anos. É verdade que ele visita o país regularmente com seu trio [com Jack DeJohnette, na percussão, e Gary Peacock, no contrabaixo], mas nada se equipara à intensidade, ao fervor e à adulação da plateia que costumam caracterizar suas épicas apresentações solo, totalmente improvisadas.
Elas ganharam fama com "O Concerto em Colônia", lançado em 1975 e que acumulou 4 milhões de cópias vendidas. Em suas boas noites, a plateia tem a oportunidade de assistir ao pianista enquanto conjura, aparentemente do nada, um universo musical em que os espíritos de Bach e do bebop, Monk e Mozart se misturam.
Os preços dos ingressos para seus shows na Europa continental começam em 150 [cerca de R$ 430] -e disparam.
Mas o que os fieis presentes ao espetáculo não sabiam ao deixar a sala rumo à noite de inverno era que Jarrett estava tocando em estado de profunda perturbação emocional. "A caminho de Londres, cheguei perto de um colapso nervoso", afirma. Rose Anne, sua mulher há 30 anos, o havia deixado pouco antes da data do show.
Fora do palco, Jarrett, 64 -que, com Wynton Marsalis, é uma das mais influentes figuras do jazz-, é um homem zeloso de sua privacidade, que vive em uma casa à beira de um lago em Nova Jersey [EUA].
Sua resposta à separação foi mergulhar no trabalho. Ele pediu a seus agentes que marcassem concertos sem muito aviso prévio, e as apresentações no Festival Hall e em Paris (que também consta do novo álbum ao vivo, "Testament") foram organizadas rapidamente.
Mas por que espetáculos solo, que são a forma de espetáculo mais fatigante do ponto de vista físico e psicológico?
"Um dos motivos é que me vejo arremessado ao meu trabalho de uma maneira nova, devido às questões pessoais que ocorreram... A crise emocional desperta certas conexões musicais novas. Às vezes, quando as emoções estão à flor da pele, você subitamente descobre uma paleta que não estava usando e deseja expor".
Antes de cada show improvisado, o pianista diz que precisa libertar sua mente de quaisquer pensamentos musicais.
"Se eu tiver uma ideia daquilo que pretendo fazer, antes de chegar ao piano, isso é ruim".
Mas o concerto de Londres foi uma estranha exceção. "Alguma voz tola em minha cabeça estava me dizendo que eu tinha de tocar determinada coisa, e tudo o que eu sabia quanto a isso era que tinha a ver com tríades em ré bemol."

Menino prodígio
Em 1996, Jarrett sofreu um surto da síndrome de fadiga crônica, que paralisou sua carreira por dois anos. Ele diz estar completamente recuperado e acrescenta: "Bem, tive sorte.
Muita gente termina abandonada pela mulher quando começa a sofrer dessa doença".
Não surpreende que Jarrett tenha decidido se dedicar ainda mais à música. Sua arte sempre o definiu. Foi um menino prodígio, que executava Mozart, Debussy e composições próprias aos oito anos.
Sua autoconfiança sempre foi completa -muitas vezes apesar de críticas de que se leva a sério demais, lança material demais, ou ao repertório de caretas e grunhidos que também acompanha a música. (Muito mais críticos afirmam que ele é o maior músico de jazz vivo.) Jarrett conta sobre seus primeiros dias no Village Vanguard, a famosa casa de jazz em Nova York. "Havia 13 pessoas na audiência, e Ax Gordon [o fundador da casa] uma vez me disse que a minha banda tinha ritmo, e perguntou por que não tocávamos com mais suingue, porque lotaríamos a casa. E eu respondi que tinha certeza de que nosso som iria pegar, mas não de uma maneira que não tivesse integridade."
Ainda ouve o seu trabalho de maior sucesso de vendas, "O Concerto em Colônia"?
"Não, há muitas notas supérfluas. Há uma transcrição (e o YouTube está repleto de músicos que tentam reproduzir a peça), mas as pessoas que tocam não compreendem que não gosto do concerto na forma que tem. Se voltasse a gravá-lo usando a partitura, as pessoas não se conformariam com o número de notas que eliminaria". Ele ri. "Mas isso não vai acontecer."

Risco emocional
Em um momento como o que ele vive, a aclamação de desconhecidos deve ser duplamente sedutora. Em suas notas na capa do novo CD, Jarrett diz que o ano passado ensinou muito a ele sobre a natureza humana. "As pessoas são profundas, as pessoas são criaturas com pouco a que se apegar."
Para Jarrett, tocar pode ser uma viagem a um "território de risco emocional", mas também representa um salva-vidas.


A íntegra deste texto saiu no "Times".
Tradução de Paulo Migliacci.


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