São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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LIVROS
Último volume da "História da Vida Privada no Brasil" trata de anos recentes no país
A nossa vida como ela é

Luciano Whitaker/Folha Imagem
Policial durante ocupação em favela no Rio de Janeiro, em outubro de 1993


MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

Com dez ensaios, mais de oitocentas páginas e perto de quinhentas ilustrações, este livro conclui um vasto projeto coordenado por Fernando Novais, que traça a história dos costumes, da família, do lazer, da religiosidade, da moradia e de quase tudo o mais que possamos incluir no campo, bastante vasto e indefinido, da "vida privada" no Brasil.
Tendo como subtítulo "contrastes da intimidade contemporânea", este volume contém, como observa a organizadora, uma armadilha. "Não há como surpreender o leitor com descrições pormenorizadas de costumes e práticas da privacidade, recortes que alimentam a curiosidade apenas quando se recua a séculos e momentos passados."
De fato, como evitar a impressão de que "já sabemos" tudo sobre a nossa vida cotidiana? O problema é evitado de diversas formas pelos ensaístas. Assim, fenômenos como a crise da família tradicional, o crescimento das separações, a diminuição do número de habitantes por domicílio são sistematizados por Elza Berquó com riqueza de dados estatísticos.
Alguns números terminam sendo surpreendentes. A taxa de desquites e divórcios quadruplicou de 1979 a 1994. A idade com que as pessoas se casam, entretanto, não se alterou, em média, nos últimos 25 anos. E, segundo os cálculos da autora, há 11,3 mulheres não-casadas para cada homem não-casado de 30 a 34 anos.
Ainda no capítulo dos números, o texto de Esther Hamburger sobre telenovelas assinala que o Brasil é o quarto país do mundo em número de televisores, só superado por Estados Unidos, Japão e Reino Unido. Entre 1990 e 1993, a média da audiência das novelas das sete e das oito da Globo caiu 11 pontos. E a novela das sete perdeu quase metade do Ibope entre 1989 e 1997. Mais do que pelos números, contudo, o ensaio vale por sua visão abrangente da história da TV no Brasil.
É também com uma ambição interpretativa mais ampla que se apresenta o longo estudo de Maria Lúcia Montes sobre as religiões brasileiras. Aparentemente, mais uma vez julgamos estar apenas diante do arquiconhecido; mas a articulação do texto e a variedade de informações ali contidas dissipam essa impressão. Questões como a do racismo e a da violência são tratadas de forma ao mesmo tempo matizada e aguda por Alba Zaluar e Lilia Schwarcz, respectivamente.
A opção por um tom mais informal, quase de cronista, se revela no texto de Boris Fausto sobre o cotidiano dos imigrantes e nas memórias sobre os setores de oposição ao regime militar, escritas por Maria Hermínia Tavares de Almeida e Luiz Weiss. Nesses textos, o leitor mais informado terá pouco a encontrar.
Tem-se muitas vezes a impressão, na verdade, de que o livro se destina mais aos historiadores daqui a cem anos do que ao leitor contemporâneo. O texto de Fernando Novais e João Manuel Cardoso de Mello, "Capitalismo Tardio e Sociabilidade Contemporânea", encerra no título uma promessa de interpretação teórica mais ampla; na verdade, oscila entre o empirismo extremado e uma diluição do frankfurtianismo. Leia-se, por exemplo, o seguinte trecho sobre os hábitos de consumo dos "trabalhadores comuns":
"Os padrões de higiene e limpeza foram incorporando algumas das inovações: a escova e a pasta de dente, o sabonete barato, o papel higiênico ainda que áspero..." E quem são os "trabalhadores comuns"? Os autores explicam, numa enumeração de tirar o fôlego: "Porteiros, pintores, encanadores, eletricistas, datilógrafos, embaladores...", (pulo um pouco) "merendeiras de escolas públicas e creches, vigias, mensageiros e office-boys (...), vendedoras de porta em porta dos produtos, o pioneiro Avon e posteriormente também Natura...".
Não caberia aqui citar mais exemplos de algo que passa, a rigor, pelo livro todo: a enumeração exaustiva, a rememoração casual como recurso narrativo, uma certa euforia diante do reconhecível.
Mas o grande ensaio deste volume -e não apenas deste volume: arrisco-me a dizer que mais do que um ensaio sobre a vida privada, é um grande ensaio sobre o Brasil- é o texto que estrategicamente encerra o livro, de autoria do sociólogo José de Souza Martins. À primeira vista, seu tema seria o menos sedutor: o cotidiano nas regiões de fronteira, nas frentes de expansão agrícola.
Por vários motivos, entretanto, o tema escolhido se revela crucial para a compreensão da sociedade brasileira. O mais interessante, talvez, é que Martins pode notar com grande inteligência tudo o que, nessas zonas de posseiros e de conquista, reproduz a história brasileira desde o descobrimento.
Do regime de propriedade da terra ao sotaque e à ortografia dos trabalhadores rurais, encontramos uma realidade que ilumina todo o passado e as contradições mais agudas da sociedade brasileira. Os conflitos entre a lei e o costume, entre o público e o privado, aparece sob um enfoque originalíssimo. A começar pela percepção do autor de que o clássico par de oposições público/privado não explica tudo. Outros conceitos podem ser contrapostos a essa oposição, como os do íntimo e do comunitário.
Sintetizo de forma rudimentar um texto brilhante. Não é só um exercício de antropologia, de sociologia e de história combinadas, mas tem quase um programa político implícito. Crítica social, atenção ao detalhe, ensaísmo e precisão fazem com que esse artigo valha pelo livro todo, apesar das diversas contribuições valiosas e da excelente iconografia que lhe dão peso e riqueza informativa.



A OBRA

História da Vida Privada no Brasil - Volume 4 - Organização de Lilia Moritz Schwarcz. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 856 págs. R$ 48,00.





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