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"O Filantropo", de Rodrigo Naves, propõe ao leitor uma charada
O olhar do absoluto detalhe
CRISTOVÃO TEZZA
especial para a Folha
Em suas 91 páginas e 38 textos,
"O Filantropo", primeiro trabalho ficcional do crítico de arte Rodrigo Naves, desafiará o leitor a
descobrir a charada: afinal, que livro é este? A bela capa traz, além
do título, nome do autor e nome
da editora, uma pequena régua
azul sobre fundo branco. É uma
boa pista: os textos de Rodrigo Naves são costurados a régua, centímetro a centímetro, peças isoladas
que parecem ter em comum apenas a lenta respiração de um narrador cansado e fragmentário, de
frases curtas, às vezes obcecado
pela ordenação do mundo, mas
cujo olhar se fecha assim que alguma imagem toma corpo; para recomeçar na página seguinte, em
outra face.
A questão do gênero talvez também angustie o leitor: descobrir,
afinal, qual o território literário
dos textos, em que mundo eles se
movem; em suma, descobrir em
que linguagem as palavras se agarram para dizer o que nos dizem.
Num momento, o texto será puramente notícia, como em "Eugène
Varlin (1839-71)", ou "Rosemiro
dos Santos (1944-91)"; mas a secura da informação ("Na Federação Paulista de Pugilismo sua ficha
acusa sessenta e quatro lutas entre
fevereiro de 1960 e julho de 1968",
ou "Eugène Varlin nasceu no dia
5 de outubro de 1839, na pequena
cidade francesa de Voisins, filho
de Aimè-Alexis e Heloise Varlin"), essa estrutura de verbete de
enciclopédia se contamina sutilmente de irrelevâncias ("E cuidava com grande carinho de umas
plantas que dispusera em volta das
árvores da rua") e intromissões
inexplicadas ("Na minha imaginação, levava uma vida pobre mas
decente"). Além disso, os textos
estranham-se uns aos outros. Como se a linguagem, aos pedaços,
perdido o fio da intenção, revelasse aqui a ali apenas os sinais de sua
ruína.
Às vezes, ela é um atravancamento exasperante de lugares-comuns, como no parágrafo da página 65: "Convicções inabaláveis",
"a amizade acima de tudo",
"lealdade sem limites", "sentido
de justiça aguçado", "amar perdidamente", "calma tão almejada" -como não transpira nem a
ironia, nem o pitoresco, o lugar-comum parece resvalar para o
lugar nenhum, exceto pela sutileza
do título, que dá a chave do texto:
"Princípios".
Em outros momentos, os melhores do livro, o sexo aparece
pervertido pelo olhar do absoluto
detalhe ("Há porém tal discrepância entre carícias e penetrações
que custa encontrar uma passagem que conduza de um lado a outro") e nesse horizonte Rodrigo
Naves alcança a tensão mais alta e
mais delicada, com certeza a ambição central do seu livro, plenamente realizada nos textos "Alvura" (a epifania diáfana de uma
freira que se toca) e "De Doze
Anos", em que uma espécie de
Humbert Humbert, o narrador de
"Lolita", metodicamente preleciona sobre a ausência de pêlos
pubianos ("De fato, a higiene é o
cerne da questão").
O grande perigo que o escritor
corre ao se aventurar pelo, digamos, "não-gênero", é entregar-se à chamada prosa poética,
quando muito frequentemente a
tensão se derrete em melodia e o
narrador perde a sua essência desconfiada. No caso de Rodrigo Naves, isso não acontece; os seus textos tocam, firmes, o sólido chão
prosaico, uma certa dicção de
conversa ("Dou bons conselhos.
Gosto de me ouvir dando bons
conselhos"; ou, em outro momento, "sou um homem feito, repito para mim mesmo").
Daí transparece uma intimidade
simples, que vai crescendo em estranhezas e achados na relação
-ou mais frequentemente na falta de relação aparente- entre
uma fala e outra. Uma relação
muitas vezes desproporcional entre a irrelevância do objeto e a ginástica do discurso: "À medida
que percebo o efeito de minhas palavras sobre meu interlocutor,
percebo que uma profunda serenidade toma conta de todo o meu
ser".
O resultado, como naquelas gravuras que se movem quando mudamos a direção do olhar, é uma
linguagem que, respeitando as vozes sedimentadas do mundo, tateia os seus limites sem alarde,
gestos largos ou ênfases. No prazer
da descoberta, o leitor atento viverá a mesma emoção contida do
narrador, quando diz: "Chegado
a esse ponto, de onde não mais se
vê o lugar de partida, resta apenas
tocar para a frente. Não ter para
onde voltar e saber que não é a
partir daqui que inicio". Ou então
repetirá, como em "Destino", a
alma da literatura: "O que me
trouxe aqui foi uma ordem antiga,
de que não detenho origem nem
destino".
A OBRA
O Filantropo - Rodrigo Naves.
Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72,
CEP 04532-002, SP, tel.
011/866-0801). 91 págs. R$
16,00.
Cristovão Tezza é escritor, autor de "Breve Espaço entre Cor e Sombra", "Trapo" e "Uma Noite
em Curitiba" (Editora Rocco), entre outros.
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