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MEMÓRIA
O sociólogo Maurício Tragtenberg deixou legado de independência e humanismo
Um intelectual libertário
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Soube da morte de Maurício
Tragtenberg 15 dias depois. Uma
grande figura, cultíssima, simples,
desprovida de qualquer formalidade burocrática. Às vezes eu tinha impressão de que Maurício
andava pelado como Adão, sempre com um cigarro na boca e os
dois braços carregados de livros.
Leitor infatigável. Mas não era um
especialista chato; ao contrário,
ele se interessava por muitas coisas nas ciências humanas. Fui seu
colega na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Era uma delícia
conversar com Maurício. Eu me
lembro das conversas sobre Wilhelm Reich na metade dos anos
70, principalmente sobre a relação
do fascismo com a libido pequeno-burguesa. Maurício adorava a
expressão reichiana "peste emocional", indo além da abordagem
economicista do advento do fascismo na Itália e na Alemanha.
É difícil classificá-lo ideologicamente; talvez tenha sido um marxanárquico-trotskista-weberiano,
ou, digamos assim: um intelectual
libertário. Autodidata e obcecado
pelo horror burocrático. Crítico
do burocratismo mental. Dotado
de uma generosidade que não é
comum entre os professores universitários. Seu aluno, Afrânio
Mendes Catani, hoje professor na
USP, não se esquece, comovido,
do dia, em 1973, em que Maurício
deu-lhe de presente "Economia e
Sociedade", o livro clássico de
Max Weber, edição Fundo de Cultura, dois volumes. É um achado
extraordinário, sobretudo depois
que a sociologia como aparelho
burocrático tomou o poder no
Brasil, a expressão mauriciana
"delinquência acadêmica", sempre lembrada pelo seu amigo Antônio Rago Filho, professor da
Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo.
O mandarinato midiático-acadêmico transformou a vida universitária em trampolim pessoal
para a ascensão social e política,
favorecendo o espírito patoteiro e
mesquinho, sabotador de muita
gente boa com talento, gente podada por não fazer parte das siglas
empresariais e dos nefandos institutos de planejamento e pesquisa.
Maurício Tragtenberg percebeu
com argúcia analítica a configuração burocrático-intelectual do capitalismo selvagem subsoviético,
do qual a "delinquência acadêmica" é um dos epifenômenos: a
carreira professor-deputado-ministro-senador etc. A cooptação
empresarial converte o professor
num burocrata carreirista e acomodado, o qual contribui para reprimir a autonomia do pensamento e o estilo individual, substituindo-os pelo conformismo gregário
das curriolas. Amigo do trotskista
Sacheta, apaixonado pela figura de
Leon Trotski, no entanto Maurício Tragtenberg, remando contra
a maré das opiniões dominantes,
defende a tese de que a repressão à
revolta dos 15 mil marinheiros de
Kronstadt (1918) e a militarização
dos sindicatos levam Trotski a
criar as condições favoráveis para
a contra-revolução de Stálin.
Maurício Tragtenberg foi, junto
com o jornalista Cláudio Abramo,
de quem era amigo, um estudioso
da Revolução Russa, dando aulas
notáveis sobre a crítica do fenômeno burocrático, trazendo à discussão o legado teórico do anarquismo, conhecedor profundo do
drama de Nestor Inanovich Makhno, o líder revolucionário da
Ucrânia que foi preso com o esmagamento da insurreição de Kronstadt, considerada o marco da degenerescência da Revolução Russa, na qual a burocracia se tornará
o árbitro na luta entre proletariado e burguesia. Colega dele na
PUC de São Paulo, o professor Antônio Pedro Tota contou-me que
Maurício, na velhice, devorador
de livros, fuçador dos sebos, bibliófilo incorrigível, já não lia mais
nada que trouxesse a marca do
"vient de paraître", preferindo
ler ou reler os alfarrábios clássicos
e antigos. Nascido em 1931, Maurício gostava de se identificar com
auto-ironia: "Sou um judeu não
muito católico". O fato é que, longe de qualquer traço psicológico
provinciano, tão comum ao etos
intelectual de São Paulo, Maurício
Tragtenberg manteve-se lúcido e
independente, avesso ao coro conivente de rebanho e às bestas que
andam aos lotes, como dizia o romântico José de Alencar.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor
de ciências sociais da Universidade Federal de
Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Espaço e Tempo), entre outros.
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