São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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MEMÓRIA
O sociólogo Maurício Tragtenberg deixou legado de independência e humanismo
Um intelectual libertário

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Soube da morte de Maurício Tragtenberg 15 dias depois. Uma grande figura, cultíssima, simples, desprovida de qualquer formalidade burocrática. Às vezes eu tinha impressão de que Maurício andava pelado como Adão, sempre com um cigarro na boca e os dois braços carregados de livros. Leitor infatigável. Mas não era um especialista chato; ao contrário, ele se interessava por muitas coisas nas ciências humanas. Fui seu colega na Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Era uma delícia conversar com Maurício. Eu me lembro das conversas sobre Wilhelm Reich na metade dos anos 70, principalmente sobre a relação do fascismo com a libido pequeno-burguesa. Maurício adorava a expressão reichiana "peste emocional", indo além da abordagem economicista do advento do fascismo na Itália e na Alemanha.
É difícil classificá-lo ideologicamente; talvez tenha sido um marxanárquico-trotskista-weberiano, ou, digamos assim: um intelectual libertário. Autodidata e obcecado pelo horror burocrático. Crítico do burocratismo mental. Dotado de uma generosidade que não é comum entre os professores universitários. Seu aluno, Afrânio Mendes Catani, hoje professor na USP, não se esquece, comovido, do dia, em 1973, em que Maurício deu-lhe de presente "Economia e Sociedade", o livro clássico de Max Weber, edição Fundo de Cultura, dois volumes. É um achado extraordinário, sobretudo depois que a sociologia como aparelho burocrático tomou o poder no Brasil, a expressão mauriciana "delinquência acadêmica", sempre lembrada pelo seu amigo Antônio Rago Filho, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
O mandarinato midiático-acadêmico transformou a vida universitária em trampolim pessoal para a ascensão social e política, favorecendo o espírito patoteiro e mesquinho, sabotador de muita gente boa com talento, gente podada por não fazer parte das siglas empresariais e dos nefandos institutos de planejamento e pesquisa.
Maurício Tragtenberg percebeu com argúcia analítica a configuração burocrático-intelectual do capitalismo selvagem subsoviético, do qual a "delinquência acadêmica" é um dos epifenômenos: a carreira professor-deputado-ministro-senador etc. A cooptação empresarial converte o professor num burocrata carreirista e acomodado, o qual contribui para reprimir a autonomia do pensamento e o estilo individual, substituindo-os pelo conformismo gregário das curriolas. Amigo do trotskista Sacheta, apaixonado pela figura de Leon Trotski, no entanto Maurício Tragtenberg, remando contra a maré das opiniões dominantes, defende a tese de que a repressão à revolta dos 15 mil marinheiros de Kronstadt (1918) e a militarização dos sindicatos levam Trotski a criar as condições favoráveis para a contra-revolução de Stálin.
Maurício Tragtenberg foi, junto com o jornalista Cláudio Abramo, de quem era amigo, um estudioso da Revolução Russa, dando aulas notáveis sobre a crítica do fenômeno burocrático, trazendo à discussão o legado teórico do anarquismo, conhecedor profundo do drama de Nestor Inanovich Makhno, o líder revolucionário da Ucrânia que foi preso com o esmagamento da insurreição de Kronstadt, considerada o marco da degenerescência da Revolução Russa, na qual a burocracia se tornará o árbitro na luta entre proletariado e burguesia. Colega dele na PUC de São Paulo, o professor Antônio Pedro Tota contou-me que Maurício, na velhice, devorador de livros, fuçador dos sebos, bibliófilo incorrigível, já não lia mais nada que trouxesse a marca do "vient de paraître", preferindo ler ou reler os alfarrábios clássicos e antigos. Nascido em 1931, Maurício gostava de se identificar com auto-ironia: "Sou um judeu não muito católico". O fato é que, longe de qualquer traço psicológico provinciano, tão comum ao etos intelectual de São Paulo, Maurício Tragtenberg manteve-se lúcido e independente, avesso ao coro conivente de rebanho e às bestas que andam aos lotes, como dizia o romântico José de Alencar.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Espaço e Tempo), entre outros.




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