São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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PONTO DE FUGA

O corpo do artista

JORGE COLI
especial para a Folha em Nova York

É possível conceber duas categorias de pintores: os mentais e os corporais. Na primeira, entram aqueles que atribuem uma precisão implacável ao desenho nítido, à pincelada estudada. Tomam um tempo lento, refletido, e a retificação pensada do traço faz parte do processo criador. Van Eyck, Poussin, Ingres, Mondrian trabalhavam assim. Na segunda, o gesto nasce de impulsos internos e sua trajetória é comandada por um frêmito corporal. O braço alarga-se, a mão agitada corre na frente da consciência e qualquer correção posterior é sentida como uma fraqueza. Os primeiros têm a pretensão de tudo controlar pelo pensamento; os segundos confiam nas intuições do corpo, próprias a conduzir e revelar coisas que a mente não concebe. Tintoretto, Turner, Matisse incluem-se neste modo, que Pollock levou ao apogeu. Sua atual retrospectiva, no MoMA (Museu de Arte Moderna), revela, desde os desenhos iniciais, o contorno largo que pulsa. Não há hesitação, porque o essencial já está ali e rapidamente atingirá sua plenitude. Pollock, lançando tinta sobre a tela no chão, conta com a inércia física, singular e autônoma, que prolonga o gesto criando tramas organizadas em ritmos. Prefere os formatos retangulares, em frisa, onde o percurso do olhar determina-se pela sequência das manchas e pelas pulsações cromáticas. As pinturas de Pollock são irmãs legítimas da música e da dança.

LUXO - Concerto histórico da The Julliard School, homenageando os 90 anos de Elliot Carter, que estava presente para ouvir o seu "Double Concerto", estreado em 1961. Obra crispada, ela é um dos marcos da música daquela época. Mas a novidade foi "Sur Incises", de Pierre Boulez (1996), apresentada pela primeira vez nos EUA. Havia algo já suntuoso na própria disposição dos instrumentos: no fundo a percussão xilofones, gongos, sinos; na frente, três pianos alternados com três harpas, expondo suas formas elegantes e os lustros dos vernizes. A arquitetura precisa da música era disfarçada pelas ressonâncias que fundiam-se e envolviam tudo: pedais incessantes, vibrações metálicas, numa evidente preocupação com a materialidade sonora. Nada do Boulez austero dos tempos do serialismo. Ritmos frenéticos, cascada de arpejos, um clima inesperado, podendo evocar Liszt. Verdadeiro prazer sensual, rico, pouco abstrato, arrebatando o público. Sons que estariam à vontade entre os veludos, espelhos e dourados dos grandes teatros de ópera, esses mesmo que, em 1968, Pierre Boulez dizia ser necessário destruir com bombas.

CÉU - Pollock insere-se no mito do artista atormentado, levado por morte precoce, brutal e dramática, do qual Basquiat seria um avatar recente. A arte de Pollock, no entanto, pouco traz de torturado ou agressivo. Sua vibração poderosa combina força e leveza. Ele talvez tenha sido um dos poucos grandes pintores de nosso século a produzir obras que, sem perder a energia, definem-se pela beleza. Não expressivas, nem inquietantes, nem espirituais, nem irônicas. Obras belas -francamente, plenamente, belas.

BISTURI - "Gods and Monsters", filme de Bill Condon produzido por Clive Barker, reinventa os últimos dias de James Whale, diretor inglês muito requintado que criou, em Hollywood, o monstro de Frankenstein. Numa época mais repressiva do que hoje, Whale declarava-se "gay". Em 1957, descobriram-no afogado na piscina de sua casa. "Gods and Monsters" lembra o admirável "Love and Death on Long Island", de Kwietniowsky, dois filmes fascinantes que, esperemos, cheguem ao Brasil.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com





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