São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Registros de George Eliot contam pouco sobre a vida da escritora
Um diário nada íntimo

por Terry Eagleton

Terrivelmente doente. Acabei a cena entre Felix e Esther na prisão", escreveu George Eliot em seu diário em 1861. Mais adiante, ela afirma que sua "cabeça está fraca demais para trabalhar", mas ressalva que ainda assim acabou de ler "Romeu e Julieta". A combinação de doença e esforço é inconfundivelmente vitoriana. De 1854, quando fugiu para casar com o filósofo George Henry Lewes e começou a manter seus diários, até 1880, quando sua morte pôs fim a eles, Eliot parece ter sofrido permanentemente de dor de cabeça. Quando não estava de cama com enxaqueca, tinha problemas de bile, calafrios, depressão e desespero. Ela também se queixa dos dentes e de melancolia crônica. Lewes não está muito melhor; ele passa boa parte de seu tempo se sentindo bilioso, ainda que uma anotação involuntariamente cômica do diário registre que, depois de longa enfermidade, "ele agora voltou à sua habitual condição de delicadeza".

Atarefados
O casal parece se infectar mutuamente com desânimo ("ambos miseravelmente biliosos e com dor de cabeça") de maneira tão fácil quanto outras pessoas se infectariam com tifo. Mas, a despeito de tanta doença, eles cumprem vigorosamente um rol penoso de obrigações culturais com aquela sobrenatural resistência da Inglaterra vitoriana. Em um único dia de 1855, Eliot lê filosofia alemã, escreve uma carta, traduz Espinosa, visita um museu, lê literatura alemã, recebe convidados e ouve seu parceiro declamando "Júlio César". E isso num suposto feriado.
Se os estudiosos vitorianos talvez vissem no constante pesar de Eliot um mal do século familiar, a corrente freudiana pop moderna talvez o visse como culpa reprimida. Uma mulher cujos romances se baseiam em renúncia e negação do ego se torna concubina de um homem casado e flana pelas galerias de arte européias com um escritor que será apresentado mais tarde, em "Middlemarch", como o emancipado e boêmio Will Ladislaw. Lewes, debilitado pela exaustão em uma pensão belga, dificilmente serve como exemplo luminoso de liberação irrestrita. Cambaleando como dois velhos macambúzios pelas ruas de Munique e Dresden, na Alemanha, eles absorvem a cultura local com o senso férreo de dever que outras pessoas dedicariam a conversas com seus procuradores.
A vida que levam em Weimar e Berlim é um carrossel infinito de igrejas, galerias e museus entremeado de sessões de leitura de Shakespeare em voz alta um para o outro. Foi uma fuga romântica muito vitoriana. De volta à Inglaterra, Eliot registra uma visita ao museu de Oxford, onde passou "uma manhã interessante com o doutor Rolleston, que dissecou um cérebro para mim". Mesmo as excursões campestres precisam ser intelectualmente frutíferas, para evitar que a culpa cause estômagos virados e problemas de vista.
O que mais alimenta a culpa de Eliot é o fato de que ela é feliz. Está terrivelmente apaixonada por Lewes e desfruta, com ele, "da benção de um perfeito amor e união", e financeiramente o casal também não tem do que se queixar. O diário registra a conversão de Mary Ann Evans, filha de um administrador rural de Warwickshire, na escritora best seller George Eliot, capaz de conseguir adiantamento da ordem de 5.000 libras pelo seu romance "Felix Holt", bem mais do que a maioria dos romancistas modernos. Ela tem alguns investimentos sólidos em ações da Companhia da Índia Oriental, e a rainha Vitória mesma cobriu de elogios "The Mill on the Floss".
Mas Eliot era uma daquelas vitorianas típicas a quem elogios causam sofrimento. Procurando "uma ressurreição a mais das profundezas da melancolia", ela se admoesta severamente lembrando o amor e as benesses de que desfruta, mas a idéia parece apenas aprofundar sua angústia. Como boa vitoriana, ela não confia em si mesma ou em seu trabalho, que "rouba toda a alegria de minha vida que de outro modo seria feliz". E porque ela padece de uma espécie especialmente virulenta de escrúpulo moral vitoriano, encontra dificuldade para acreditar que algo tão inútil quanto escrever romances seja o caminho da santidade.
Horrorizada diante dos relatos da guerra franco-prussiana, ela se pergunta se está fazendo alguma coisa que "pese ao menos como um grão de areia diante da persistência de tamanhos males". Dorothea Brooke, em "Middlemarch", se verá forçada a abandonar os esquemas grandiosos que criou para redimir o mundo e terá de aceitar em lugar disso apenas os pequenos gestos de delicadeza permitidos a uma mulher politicamente impotente. Para Eliot, evangélica, o ímpeto de servir aos outros é quase patológico, mas na Inglaterra patriarcal o máximo que ela pode fazer é escrever prosa pastoral.
As editoras dos "Diários" expressam a esperança lânguida de que ele possa vir a servir como autobiografia de Eliot, mas há poucas autobiografias assim reticentes. Com decoro impecável, os diários não traem quase nada do tumulto emocional que ela viveu ao violar as convenções sociais para fugir com Lewes. Se ela evita confessar ao menos essas intimidades a um diário privado, torna-se evidente que esse decoro é completo. Ela registra a chegada de cópias de sua primeira obra de ficção publicada da mesma forma que poderia registrar a presença de um gato na soleira da porta. Comenta que Dickens jantou com eles, mas não revela o que ele disse. Ao concluir "Adam Bede", ela se permite um pequeno floreio emocional: "Júbilo!".
A vida dela com Lewes parece notavelmente pouco charmosa, e os dois se emocionam com "Ilfracombe", registram a chegada de uma carta enviada por um louco do Kansas e consideram um novo trabalho intitulado "A Origem das Espécies" notavelmente desinteressante. Na verdade, o casal parece não ter opiniões individuais, reagindo em lugar disso como uma espécie de relatório de comitê diante de tudo, de Espinosa à arte da Renascença. Suas viagens à Europa revelam um estranho traço de chauvinismo inglês, com o diário falando em "alguns belgas repulsivamente grosseiros e seus filhos parecidos com babuínos". Aquelas eram os dias, há muito perdidos, em que os turistas ingleses eram os cavalheiros, e os estrangeiros, os trogloditas. Mas Eliot, uma liberal convicta, admite que, em seus passeios por Antuérpia, "raramente se vê alguém cuja pele e trajes não sejam pelo menos tão limpos como os da classe média inglesa". É só o tom de surpresa que torna o cumprimento menos veemente.
A entrada no diário para um determinado dia de 1854 diz: "Nada de especial". Apenas se você for famoso um comentário banal como esse fica preservado para a posteridade. "Nada de especial" é o equivalente literário da lata de cerveja que Mick Jagger joga no lixo, disputada ferozmente por aqueles para quem o mais trivial gesto dos grandes é digno de culto. As editoras do volume em questão fizeram seu trabalho com tato e persistência admiráveis, mantendo as notas de pé de página no nível mínimo; mas muito do que Eliot tem a dizer é pouco importante. Se o que se deseja é um registro de sua vida interior, é melhor consultar sua ficção.


Terry Eagleton é professor de teoria literária na Universidade de Oxford e autor, entre outros, de "Teoria da Literatura" (Editora Martins Fontes) e "A Ideologia da Estética" (Jorge Zahar). O texto acima foi publicado originalmente no "The Independent".
Tradução de Paulo Migliacci.


Onde encomendar O livro "The Journals of George Eliot", organizado por Marret Harris e Judith Johnston e editado pela Cambridge University Press, pode ser encomendado, em SP, à livraria Fnac (tel. 0/ xx/ 11/3097-0022) e, no RJ, à livraria Leonardo da Vinci (tel. 0/xx/ 21/533-2237).



Texto Anterior: + cronologia
Próximo Texto: Nas esquinas de Londres
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.