São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

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Dois livros publicados na Inglaterra e EUA estudam o consumismo na era vitoriana
Nas esquinas de Londres

por Matthew Sweet

Sexo e compras. Há mais coisas sendo escritas sobre esses assuntos hoje do que todo o sínodo de romancistas de aeroporto dos anos 80 jamais conseguiu. Agora que o consumo se tornou o paradigma preferido da política oficial e da pesquisa acadêmica, eles sabem que é seguro escapar da biblioteca para um pouco de terapia varejista (desculpem -pesquisa da semiologia da vitrine, a sociologia dos movimentos do carrinho de supermercado, a hermenêutica da peixaria da Sainsbury) sem serem acusados de frívolos por seus colegas mais austeros. Assim, Elaine Showalter, professora de literatura inglesa na Universidade Princeton (EUA), confessou para a revista "Vogue" seu amor pelas lojas de departamento e excursionou pela Top Shop em benefício do "London Review of Books". A professora Erika Diane Rappaport, da Universidade de Califórnia, passou meses nos arquivos da Selfridges caçando material para demonstrar que os produtos de toalete nas lojas de departamento vitorianas foram um importante catalisador no crescimento do movimento sufragista feminino (com a liberdade para fazer compras, diz a tese, veio a liberdade para passar mais tempo na cidade em reuniões públicas).

Observar e vasculhar
E agora dois novos estudos entram na cesta: "Carried Away" (Faber & Faber, 281 págs., 12,99 libras), de Rachel Bowlby, uma virtuosística história cultural do consumo nos séculos 19 e 20, e "Victorian Babylon" (Yale University Press, 256 págs., US$ 35), de Lynda Nead, um relato menos cintilante da cultura de rua no século 19 com ênfase nas atividades das consumidoras.
Lidos juntos, eles formam uma narrativa sobre os atos de vasculhar, adquirir, observar e se encontrar nas esquinas, de 1850 até hoje. É uma história que coloca uma questão moral: o consumo é libertação ou escravidão? Os consumidores são agentes ativos, reformulando o entorno por meio de suas decisões de compra, ou herbívoros inconscientes, esturjões cercando cardumes de linguados? Bowlby oferece exemplos de ambas as perspectivas, baseando-se em Joanna Trollope, Émile Zola, "Stepford Wives" (As Esposas de Stepford, de Ira Levin) e -numa bem-embalada demonstração das atitudes de gênero sobre as liquidações de janeiro- Rupert, o Urso ("Puxa, que estranho!", reflete Rupert. "Nunca vi mamãe, a sra. Carneiro e a sra. Castor tão excitadas"). Os argumentos de Nead são mais previsíveis, mas ela usa seu livro para destrinchar alguns clichês mais aborrecidos que moldam nossos conceitos da rua comercial vitoriana. Os bandos de vendedores de bolos, realejos e garotas perfumadas que povoam os dramas de época da BBC são entregues a domicílio. As mulheres andam desacompanhadas pelas ruas sem serem acusadas pela Sociedade para a Supressão do Vício, mesmo quando estão bisbilhotando livrarias suspeitas.

Clichê vitoriano
Mas Nead não se dispõe a renunciar ao grande clichê dos estudos vitorianos -o de que as pessoas do século 19 eram assoladas por estranhas ansiedades culturais de que estamos livres hoje. "Depois de 1867, o temor de que a cultura barata e comercial criasse uma população operária criminalizada se instalou completamente no imaginário vitoriano", ela escreve. Ela afirma que, quando os livreiros da rua Holywell armaram bancas de livros na calçada, eles criaram "um ambiente em que as distinções entre rua e loja, passante, meros curiosos e compradores, foram apagadas". Se isso preocupava os vitorianos, é um milagre que tantos deles pareçam ter comprado na feira de Shadwell sem ser acometidos de sangramento nasal espontâneo. Mas, apesar dos esforços de Nead para manter à distância os vitorianos e suas maneiras curiosas, ela não consegue suprimir a familiaridade cultural e topográfica da Londres vitoriana. Milhões de nós ainda ocupamos as ruas que ela descreve. Passageiros são descarregados pelos mesmos túneis do metrô, lendo muitos dos mesmos jornais e romances. Colônias de designers gráficos e programadores de HTML se estabeleceram nos corpos de unidades industriais e internatos vitorianos. Os sem-teto dormem sob os mesmos arcos de ferrovia e nos mesmos vestíbulos ocupados por seus antecessores do século 19 (os edifícios mais recentes são construídos sem recessos onde seria possível abrigar-se). A Londres vitoriana continua lá. Tudo o que se precisa para explorá-la é um passe de transporte por um dia. De maneira surpreendente, o mundo dos shopping centers, supermercados e grandes lojas de periferia pelos quais se desloca o estudo de Bowlby parece incomparavelmente mais espectral. Há vários motivos para isso. Em parte porque a arquitetura desses lugares é uma mercadoria tão dispensável quanto seus carregamentos de produtos ao consumidor; em parte porque a maneira de comprar tipicamente vitoriana -em pequenas lojas, produtos feitos sem os processos biológicos e químicos de que estamos aprendendo a desconfiar- está sendo entusiasticamente recuperada pelo movimento de alimentação orgânica. De modo marcante, a descrição feita por Bowlby de modernismos brilhantes e mortos como as lojas Keedoozle de Clarence Saunders -supermercados "robotizados" em que os clientes usavam chaves para abrir vitrines e ter suas compras encaminhadas até eles em esteiras rolantes- parecem muito mais arcaicas que os livreiros da rua Holywell e os vendedores de comida de Cremorne Gardens de Nead. Também porque a percepção de Bowlby da confusa mistura de satisfação, zumbificação, folguedo e tédio no ato de comprar a impede de recorrer à generalização fácil. Nead, por outro lado - já que o cenário vitoriano confortavelmente distante lhe permite empregar as declarações grandiosas que os historiadores gostam de aplicar ao passado-, tateia ao redor em busca de figuras magistralmente improváveis: "Londres no século 19 era imaginada como uma Babilônia vitoriana... A Londres vitoriana era definida por meio de uma semiótica de gás..." (impossível reconciliar, a menos que as luzes de gás fossem os flatos queimados de algum fantasma de Nabucodonosor). O livro de Bowlby oferece menos certezas. Ela não se vexa por sua própria ambivalência em relação ao tema das compras e sua adequação à análise acadêmica nem teme se envolver nas dificuldades e incoerências que a ambivalência gera. E isso é responsável por uma abordagem muito mais aberta do tema -embora ela saliente, de modo contrito, que as compras só surgiram como legítimo campo de estudos depois que os homens admitiram que também apreciam o ato.

Ritual do dia-a-dia
Mas o motivo mais básico para a estranha desmaterialização de particularidades concretas que ocorre no livro de Bowlby é sua implicação de que as compras são um dos rituais ocultos do dia-a-dia. Para ela, existem forças primitivas em jogo nos corredores de iluminação crua: a magia simpática das amostras grátis, o poder totêmico da lata de lixo, o movimento sagrado do carrinho metálico. E em nenhum outro lugar ficam mais evidentes as maneiras como os executivos anglo-americanos da publicidade desenvolveram estratégias de marketing para as então colônias. Um manual de 1916 enumerava as cinco cores que mais atrairiam os "selvagens": vermelho, amarelo, laranja, azul e verde.
Uma pesquisa posterior aconselhava os que pretendiam vender mercadorias nesses territórios a levar em conta que a mente primitiva não apreciava a disjunção entre a imagem de uma lata e seu conteúdo. Um publicitário da época da guerra advertiu que a tentativa de vender as vantagens do modo de vida britânico por meio de imagens de críquete talvez não funcionasse junto aos que pudessem se sentir excluídos dessas cenas, por exemplo: "Mineiros ingleses, trabalhadores agrícolas e desempregados, pretos, escuros, índios, polinésios e outros, aos quais foram impostos calças, Bíblias, indústrias e outros itens da tradição britânica... O modelo do século passado não venderá".
Como hoje as compras são o modelo estrutural aplicado de maneira mais enérgica a todo tipo de interação social e cultural -hoje os professores podem falar de seus alunos como "clientes" sem perder o emprego-, esse jingle do início do século 20 sobre a comercialização da Grã-Bretanha tem ressonância num evento muito mais recente: o que todos nós fizemos nas últimas eleições. É muito fácil reduzir a decisão eleitoral a uma opção entre a imagem de críquete e uma imagem de algo chamado nova Grã-Bretanha (muito vago, mas sem dúvida disponível numa variedade de vermelhos, amarelos, laranjas, azuis e verdes que agradam aos selvagens). É um argumento fácil demais.

Leia mais sobre a era vitoriana

Entre vários lançamentos sobre a era vitoriana, quatro novos estudos se destacam. Um deles, "Queen Victoria - A Personal History" (Rainha Vitória - Uma História Pessoal, 557 págs., 25 libras, ed. Harper Collins), de Christopher Hibbert, é uma biografia baseada nos diários e cartas da rainha, traçando um perfil das relações familiares de Vitória, sobretudo com o marido Alberto. Em "Farewell in Splendour - The Death of Queen Victoria and Her Age" (Adeus no Esplendor - A Morte da Rainha Vitória e de Sua Era, 294 págs., 19,99 libras, ed. Sutton), Jerrold Packard faz uma crônica da semana em que se deu a morte e o funeral da rainha. Tal episódio é também o mote de Tony Rennell em "Last Days of Glory - The Death of Queen Victoria" (Os Últimos Dias de Glória - A Morte de Rainha Vitória, 326 págs., 12,99 libras, ed. Viking), que compara a comoção pública em torno das mortes de Vitória e da princesa Diana (1961-1997): uma se ligaria às noções de "família" e de "orgulho nacional", e a outra, ao culto à "felicidade" e "auto-expressão" individualistas. Já em "The Victorian Celebration of Death" (A Celebração Vitoriana da Morte, 330 págs., 20 libras, ed. Sutton), James Stevens Curl analisa a "ternura" típica, na era vitoriana, da relação dos vivos com os mortos.


Matthew Sweet é escritor e irá lançar neste ano "Inventing the Victorians", pela editora inglesa Faber and Faber. O texto acima foi publicado originalmente no "The Independent".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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