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Antologia reúne 58 narrativas dos "Contos de Fadas", de Jacob e Wilhelm Grimm, uma das obras mais influentes da literatura alemã
Utopia na floresta
Marcus Mazzari
especial para a Folha
O primeiro lugar entre os livros alemães mais traduzidos cabe certamente aos "Contos de Fadas" dos irmãos Grimm. Mas é também aqui
que as traduções mais se confundem com "adaptações", a despeito da
rigorosa fidelidade com que Jacob e Wilhelm Grimm recolheram, numa Alemanha ocupada pelas tropas napoleônicas, 240 narrativas que desde a
Idade Média circulavam na tradição oral e as reuniram em dois volumes publicados em 1812 e 1815.
A esse gênero a língua alemã reserva o nome de "Märchen", que geralmente
se traduz com designações compostas: "fairy tales", "contes de fées", "contos de
fadas" ou das "carochinhas" e mesmo "contos maravilhosos", termo talvez
mais adequado, pois se os "Märchen" nem sempre apresentam fadas ou carochas, jamais podem prescindir da dimensão do maravilhoso.
Em seu sentido mais autêntico, esses contos nos falam da vitória de seres puros e frágeis (crianças, animais, jovens aflitos) sobre
poderes malignos encarnados por bruxas,
ogros, adultos cruéis e desnaturados. Mostram-nos um mundo em que as coisas acabam satisfazendo o nosso sentimento de
justiça e ética. Mas é também esse sentido
utópico que propicia o emprego irônico da
palavra "Märchen" em outros contextos:
"Alemanha -Um Conto de Inverno", intitulou Heine, em 1844, uma das mais importantes sátiras da literatura alemã e, quatro
anos depois, Marx e Engels postulavam, no
início do "Manifesto", a necessidade de
combater o "conto da carochinha sobre o
espectro do comunismo". Também os nazistas se apropriaram a seu modo do termo,
imputando a opositores do regime a "propagação de contos de atrocidades" ("Greulmärchen").
Para a literatura do século 20, os contos
dos Grimm constituem uma referência de
primeira ordem: ao cavalo falante Falada,
no pungente conto "A Moça dos Gansos",
alude Brecht num poema de 1931 sobre o esquartejamento de um cavalo por homens
famintos ("Ó Falladah, que aí estás pendurado"). Thomas Mann recorreu com frequência a esse gênero do maravilhoso e em
praticamente todos os romances de Günter
Grass os Grimm deixaram sua marca: o
exemplo mais expressivo é "O Linguado",
que desdobra em mais de 600 páginas o
conto, recolhido em dialeto pomerano, "O
Pescador e Sua Mulher"; mas também em
"A Ratazana", Grass se vale de personagens
como Joãozinho e Maria para denunciar as
catástrofes ecológicas do século 20, em particular a destruição das florestas.
A alma do povo
E, de
fato, em arcaicas florestas
repletas de mistérios, onde
"a raposa e a lebre se desejam boa-noite", desenrola-se a maior parte dessas narrativas em que os Grimm
vislumbraram a mais genuína manifestação da
"poesia da natureza", criação espontânea da coletividade. Na fecunda
polêmica com o poeta Achim von Arnim,
Jacob Grimm se empenhou ainda numa
distinção teórica entre contos "populares" e
"artísticos", os quais ostentariam as marcas
nítidas da elaboração subjetiva e individual.
Contos populares, ao contrário, têm o seu
habitat na tradição oral, em que ingressariam diretamente da alma do povo, e por isso exigem do compilador a mais estrita fidelidade, que Jacob exemplifica a Arnim mediante uma imagem: se, ao quebrar um ovo,
não é possível evitar que um pouco da clara
fique na casca, fidelidade no sentido proposto seria manter a gema intacta, da mesma forma como o essencial da narrativa
oral deve passar incólume para a forma escrita.
Foi com esse espírito que os irmãos
Grimm realizaram uma das obras mais importantes do romantismo e de toda a literatura alemã: entre os contos que foram pesquisando e anotando ao longo dos anos,
avultam em primeiro lugar aqueles mais
propriamente "maravilhosos", como "O
Príncipe-Sapo" ou "O Férreo Henrique",
"A Bela Adormecida" etc.; vários outros são
protagonizados por animais e se aproximam das "fábulas"; há também contos mais
burlescos ("João Sortudo", "O Alfaiatezinho Valente") e outros de cunho religioso,
que revelam afinidades com "legendas", "A
Criança de Maria", "São José na Floresta",
por exemplo.
Com 58 peças, o recente volume publicado pela editora Iluminuras oferece uma
amostra bastante representativa da obra
dos Grimm, ainda que se possa sentir falta
de histórias como a do jovem que saiu pelo
mundo para conhecer o medo ou a do afilhado da Morte que se torna médico famoso. Eventuais omissões não são, infelizmente, o que de mais grave se pode dizer dessa
antologia que carece sobretudo daquela fidelidade que norteou os esforços filológicos
de Wilhelm e Jacob Grimm. Trata-se de
uma edição bem cuidada, com texto fluente, mas feita provavelmente a partir da primeira tradução inglesa (1823), de Edgar
Taylor, sendo que a seleção
dos contos é praticamente a
mesma da edição da Penguin
Popular Classics.
Acontece que já essa tradução pioneira sucumbiu a um
equívoco que os contos vêm
suscitando desde a sua publicação, isto é, conterem passagens consideradas talvez demasiado escabrosas para o público infantil,
as quais precisam ser suprimidas ou adaptadas.
Se a tradução brasileira -já que era para
traduzir do inglês- tivesse usado pelo menos a edição fidedigna da Pantheon Books,
de Margaret Hunt e James Stern, teria evitado tantas intervenções arbitrárias, como,
por exemplo, suprimir a figura do diabo
(substituindo-a por um gigante) e todos os
elementos infernais da bela história "O Diabo com os Três Cabelos Dourados". Em
"Cinderela" omitiu-se o final, em que as
pombas arrancam os olhos das irmãs invejosas e intrigantes da heroína. Mortes como
a do lobo ("Chapeuzinho Vermelho") ou da
madrasta ("Branca de Neve") sempre ocorrem no original de maneira mais cruel do
que é apresentado ao leitor, e em "Rumpelstilzchen" o acesso de raiva desse homenzinho enfezado chega a tal extremo que ele
rasga o próprio corpo ao meio puxando a
perna esquerda.
Versão light dos contos
A versão brasileira silencia também sobre o casal de gêmeos que Rapunzel concebe numa das vezes em que o príncipe ascende à torre com a
ajuda de suas longas tranças. Os exemplos
poderiam continuar, mas já terão demonstrado que se trata de uma versão light dos
contos de Grimm. Pode ser legítimo que
adultos queiram sonegar às crianças os momentos mais drásticos das histórias, e isso
talvez explique a ausência, nessa antologia,
de peças como "A Menina sem Mãos", "Os
Doze Corvos" ou mesmo "Joãozinho e Maria", com as referências à fome, à mãe desnaturada que solta os filhos na floresta para
serem devorados pelas feras e à bruxa cujo
prato predileto são tenras criancinhas ao
forno. Crueldades, porém -e as coleções
de Perrault e Andersen também não as dispensam-, parecem ser da própria essência
dos contos maravilhosos e valorizam tanto
mais a mensagem afirmativa que se passa às
crianças.
Expurgos e adaptações inviabilizaram assim a oportunidade de oferecer ao público
brasileiro uma edição digna do rigor filológico com que Jacob e Wilhelm Grimm recolheram essas pequenas maravilhas da "poesia da natureza", as quais vieram a se tornar
patrimônio de toda a humanidade.
Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária na
USP e autor do livro "Romance de Formação em Perspectiva Histórica - "O Tambor de Lata" de Günter
Grass" (Ateliê Editorial).
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