São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2001

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"Guimarães Rosa", de Cleusa Rios Pinheiro Passos, investiga as personagens femininas na obra do ficcionista
Tramas e desenredos

Giovanna Bartucci
especial para a Folha

É verdade, distanciados agora por algumas décadas, podemos constatar modificações processadas na crítica literária brasileira. Ao abandono dos critérios de literariedade, ressaltando a desvinculação do caráter fechado e auto-suficiente do texto literário, acrescentam-se os discursos das ciências humanas, tais como os da antropologia, sociologia, entre outros; e, ainda, da psicanálise. Tal procedimento termina por incidir no caráter essencialista e universalista subsumido no caráter auto-suficiente do texto literário -investe-se, assim, na ampliação do conceito de texto.
Assim é que, acentuadas as discussões de ordem teórica e metodológica e seus operadores conceituais, o que vemos agora é a revalorização da história e o exercício da prática interdisciplinar e cultural. É nesse sentido que, atualmente, há uma relação que se pauta pela coordenação e "contaminação" entre diferentes discursos. Em outras palavras, diferentes enunciados não se encontram subordinados, uns em relação aos outros, por meio de traços hierárquicos, mas, heterogêneos, se imbricam e se diferenciam.
Assim é "Guimarães Rosa - Do Feminino e Suas Histórias", livro de Cleusa Rios Pinheiro Passos. Dialogando com críticos diversos, Passos se ocupa em desvelar e pontuar a enorme complexidade das personagens femininas na ficção rosiana, uma vez que as mesmas "não constituem perfis estanques ou polarizações redutoras". Como destaca a autora, "há uma espécie de tensão que atua, explícita ou implicitamente, na conformação de cada uma (das personagens femininas), produto da ambiguidade fundamental da escritura do autor, sempre a se mover entre a realidade e o devaneio, o cotidiano prosaico e a magia".
Embora na ficção rosiana "a presença feminina se (faça) mais discreta, restrita ao amor e à família, à memória e à manutenção da oralidade tradicional das contadoras de "causos", particulares às comunidades rurais de diferentes civilizações (...), sua configuração do feminino revela peculiaridades que estão longe de se mostrar desprezíveis para a abrangente compreensão do intricado universo do escritor". Assim, para Passos, "a plasmação das personagens femininas pode encontrar múltiplas e insuspeitadas fontes".
É nessa medida que a psicanálise, fundamentalmente de perspectiva lacaniana, é utilizada aqui: como "apoio teórico" na tentativa de adentrar o universo rosiano, "uma vez que se trata da configuração de mulheres, seus afetos, prazeres e males e, em particular, dos efeitos da diferença que as marcam em cada narrativa". A autora, no entanto, nos alerta para o fato de que "a prioridade estará em aproximações críticas, nascidas do encontro com experiências ficcionais". "Ao contrário de parte da crítica psicanalítica, não se buscará fazer apenas valer o encontro do inconsciente da leitora (Passos) com as sugestões do texto, e, sim, pontuar liames ancorados nele e por ele preponderantemente tecidos." A consigna de Passos é a de que "o alvo não está nas adequações entre certo manancial teórico (aspectos da psicanálise) e histórico e a escritura rosiana, pois, sutilmente, esta desloca aqueles saberes, fazendo-os girar -como diria Barthes-, relativizando-os; o trabalho se centrará na articulação do texto com a cultura e seu modo de reorganizá-la".
Assim, é nesse sentido que repensar a questão da prática interdisciplinar, como querem alguns críticos, em termos de simultaneidade temporal e não apenas da coexistência espacial entre idéias, representa um avanço, permitindo a abertura para a relação interdisciplinar segundo uma ordem transversal e "contaminadora" em que se relativizam os princípios da anterioridade e posterioridade das descobertas. No entanto, se se trata de interpretar a literatura como produto capaz de suscitar questões de ordem teórica ou problematizar temas de interesse atual sem necessariamente se restringir a um público específico, tal procedimento também termina por iluminar, naturalmente, apoios teóricos que findam por se mostrar desnecessários.
Sejamos claros: se Freud "oficialmente" compreende a obra de arte basicamente como um substituto do que foi o brincar infantil (1908), uma vez que aproxima o artista -aqui o escritor criativo- da criança que, ao brincar, cria um mundo próprio reajustando seus elementos de uma forma que lhe agrade, mantendo, com isso, uma nítida separação entre seu mundo de fantasia e a realidade, não podemos deixar de pontuar que tal compreensão aproxima tal modalidade estética a características do princípio do prazer, trazendo consigo um caráter regressivo e infantil.
Sendo assim, embora o suporte psicanalítico propicie ganhos ao literário, coexistindo com elementos do mito, religiosidade, tradição literária etc., a originalidade do texto rosiano provém, como destaca a a autora, da impossibilidade de "pensar (Rosa) sem o renomado trabalho verbal, produto de uma língua a um tempo conhecida e estranha, apontada desde "Sagarana" como linguagem popular e inventiva, contagiada por elementos do universo mítico". No entanto Passos observará que, ao se preocupar com lapsos, chistes e mecanismos oníricos, Freud "acabou por assinalar procedimentos também integrantes dos fios da organização literária". Mas, se "a presença do desejo, algo atuante e dissimulado na escritura, não deve ser descartada", o testemunho do desejo em obra se dá fundamentalmente a partir da fala engendrada no cerne da experiência psicanalítica, junto a um outro que escute, que se cale, que pontue, que interprete. Afinal, com Passos -e talvez por isso mesmo seja por vezes desnecessário o "apoio teórico psicanalítico"- apreendemos que a "verdade", na ficção rosiana, "já está, de alguma forma, inscrita, cabendo-lhe recontá-la de acordo com a própria história e garantindo, pela reescritura, marcas pessoais e autoria".
Assim, se a leitura da obra de arte é pouco explorada a partir da perspectiva do já conhecido dualismo pulsional freudiano entre pulsões de vida e de morte (1920), será essa mesma pulsão de morte, uma vez que não se articula ao registro da linguagem, que imporá ao sujeito a necessidade de inscrição no registro da simbolização. Daí, talvez, a relevância da "experiência literária": ao mesmo tempo em que as coisas são inalcançáveis pela arte, se institui um lugar no qual se torna possível, por meio da criação artística, encontrar, na inscrição da pulsão no registro da simbolização e sua reordenação do circuito pulsional, uma economia outra que possibilite o trabalho de criação, de produção de sentido e de ligação.

Leia mais sobre Rosa

Além de "Do Feminino e Suas Histórias", há outros três lançamentos sobre a obra de João Guimarães Rosa (1908-67). A ed. Mandarim publica, da diplomata e crítica Heloisa Vilhena de Araújo, os livros "Palavra e Tempo" (256 págs., R$ 28,00) e "As Três Graças" (328 págs., preço não definido). Pela ed. Unesp saiu "Guimarães Rosa - Magma e Gênese da Obra" (288 págs., R$ 25,00), da crítica Maria Célia Leonel. Em "Palavra e Tempo", que sai nesta semana, Araújo justapõe a obra de Guimarães Rosa às do escritor inglês Lewis Carroll (1832-98) e do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) -supondo-as vias de expressão da "palavra mítica", que funda o tempo e o mundo. Já em "As Três Graças", a autora analisa os laços entre o romance "Grande Sertão: Veredas" (1956) e os contos de "Tutaméia" (1967) como ocasiões de Rosa exercitar uma linguagem que vê no "sem sentido" frestas de um mundo além do cotidiano. O estudo de Leonel, por sua vez, constata nos poemas de "Magma", premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1936 (mas publicado só em 1997, pela Nova Fronteira), a origem de temas e recursos da fase madura da escrita rosiana.


Giovanna Bartucci é psicanalista e ensaísta, autora de "Borges - A Realidade da Construção" (Imago) e organizadora de "Psicanálise, Cinema e Estéticas de Subjetivação" (Imago), entre outros.


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