São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2007

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Bolívar em várias versões

Há uma imensa distância entre o ícone otimista e antiame-ricano construído por Hugo Chávez e o Bolívar histórico, pragmático e ambíguo, que viveu no século 19

MARIA LÍGIA COELHO PRADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A A figura de Simon Bolívar (1783-1830) tem sido invocada pelo presidente venezuelano, Hugo Chávez, como legitimadora de seus projetos políticos.
Bolívar é apresentado como inspirador, patrono e protetor do regime chavista e como primordial idealizador da "nova" América Latina integrada e unida na luta contra o imperialismo norte-americano. Abre-se um diálogo entre presente e passado, inventando-se um fio condutor que deseja impor uma continuidade histórica.
Bolívar nasceu numa família rica, recebeu educação de inspiração liberal, foi general vitorioso da guerra pela independência da América do Sul, assumiu altos cargos políticos e morreu tuberculoso, auto-exilado, sem fortuna e poder. Desde o século 19, construiu-se um verdadeiro culto ao "Libertador". Ao "maior herói nacional", foram sendo incorporados qualificativos, tais como: "caminhante e guia", "gênio perfeito", "homem predestinado a serviço da Providência", "libertador do continente", "criador das repúblicas americanas", "pai dos cidadãos livres". Colocada no "altar sagrado da Pátria", sua memória foi mitificada e penetrou no imaginário social venezuelano.
Bolívar deixou muitos escritos, sobre temas políticos diversos, carregados de idéias que variaram conforme os problemas e as dificuldades do momento histórico. O regime chavista, para efeitos de propaganda, tem se apropriado de certas frases e excertos de Bolívar, transformando-os em "lemas da liberdade", enquanto silencia sobre afirmações mais polêmicas.
Por exemplo: a democracia, tema muito discutido no século 19. Bolívar defendeu posições contrárias à ampla participação política popular. Na famosa Carta da Jamaica, de 1815, na qual faz uma lúcida análise da situação de cada uma das regiões da América do Sul, escreve sobre a Venezuela: "Em Caracas, o espírito de partido teve sua origem nas sociedades, assembléias e eleições populares, e esses partidos nos levaram à escravidão. Assim como a Venezuela tem sido a república americana que mais tem aperfeiçoado suas instituições políticas, também tem sido o mais claro exemplo da ineficácia da forma democrática e federal a nossos nascentes Estados".
Os traços autoritários dos discursos de Bolívar vão se acentuando na proporção do seu temor ao que chamou de "anarquia social". Em 1819, no Congresso de Angostura (na Venezuela), Bolívar entende que o Senado, em vez de ser eletivo, deveria ser hereditário.
Nesse mesmo discurso, diz que "a liberdade indefinida e a democracia absoluta são os escolhos onde foram arrebentar-se as esperanças republicanas". Em 1825, em pronunciamento diante do Congresso Constituinte da Bolívia, propõe a presidência vitalícia para o país. "O presidente da República nomeia o vice-presidente, para que administre o Estado e o suceda. Por essa providência, evitam-se as eleições, que produzem a grande calamidade das repúblicas, a anarquia, que é o luxo da tirania e o perigo mais imediato e terrível dos governos populares." Teria Chávez se inspirado em Bolívar para tentar passar a lei que permitirá constantes reeleições do presidente?
Entretanto, as posições autoritárias de Bolívar não devem ser tomadas simplesmente como algo "típico" da América Latina. O "medo do povo" era comum tanto na Europa quanto nas Américas. Bolívar era um liberal e, como tal, defendia a necessidade da manutenção da ordem como garantidora da segurança social e acreditava na legitimidade da propriedade privada como base da organização da sociedade.
Não há menção às injustiças das desigualdades sociais ou da dominação dos poderosos sobre os mais fracos e nenhuma possibilidade de seus escritos carregarem algo de um socialismo "avant la lettre". Como foram elaborados num período de grandes mudanças, suas avaliações e propostas variaram conforme o momento. Na já citada Carta da Jamaica, expressa sua esperança, afirmando desejar que na América do Sul se forme "a maior nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas do que pela sua liberdade e glória".
Entretanto, no fim da vida, em 1830, frustrado, concluía, em uma de suas últimas cartas, que da sua experiência política tirara "poucos resultados certos": "a América era ingovernável" e "servir a uma revolução era arar no mar".
Por outro lado, Bolívar plantou uma idéia que permanece atual. Lançou a possibilidade de construção de uma unidade latino-americana e esse "sonho" ganhou novas roupagens com o passar das gerações. Enfim, entre o Bolívar apresentado por Chávez -otimista, coerente, defensor da liberdade, da democracia e das causas sociais e precursor do anti-imperialismo- e o Bolívar histórico -pragmático, controverso, ambíguo e até mesmo contraditório- existe notável distância. Parece-me fundamental ter clareza a respeito do terreno político sobre o qual Hugo Chávez vem plantando suas "raízes históricas".


MARIA LÍGIA COELHO PRADO é professora de história da América na USP e autora, entre outros, de "América Latina no Século 19" (Edusp)


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