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Bolívar em várias versões
Há uma imensa distância entre o ícone otimista e antiame-ricano construído por Hugo Chávez e o Bolívar histórico, pragmático e ambíguo, que viveu no século 19
MARIA LÍGIA COELHO PRADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
A figura de Simon
Bolívar (1783-1830)
tem sido invocada
pelo presidente venezuelano, Hugo
Chávez, como legitimadora de
seus projetos políticos.
Bolívar é apresentado como
inspirador, patrono e protetor
do regime chavista e como primordial idealizador da "nova"
América Latina integrada e
unida na luta contra o imperialismo norte-americano. Abre-se um diálogo entre presente e
passado, inventando-se um fio
condutor que deseja impor
uma continuidade histórica.
Bolívar nasceu numa família
rica, recebeu educação de inspiração liberal, foi general vitorioso da guerra pela independência da América do Sul, assumiu altos cargos políticos e
morreu tuberculoso, auto-exilado, sem fortuna e poder.
Desde o século 19, construiu-se um verdadeiro culto ao "Libertador". Ao "maior herói nacional", foram sendo incorporados qualificativos, tais como:
"caminhante e guia", "gênio
perfeito", "homem predestinado a serviço da Providência",
"libertador do continente",
"criador das repúblicas americanas", "pai dos cidadãos livres". Colocada no "altar sagrado da Pátria", sua memória foi
mitificada e penetrou no imaginário social venezuelano.
Bolívar deixou muitos escritos, sobre temas políticos diversos, carregados de idéias
que variaram conforme os problemas e as dificuldades do
momento histórico.
O regime chavista, para efeitos de propaganda, tem se
apropriado de certas frases e
excertos de Bolívar, transformando-os em "lemas da liberdade", enquanto silencia sobre
afirmações mais polêmicas.
Por exemplo: a democracia,
tema muito discutido no século
19. Bolívar defendeu posições
contrárias à ampla participação política popular. Na famosa
Carta da Jamaica, de 1815, na
qual faz uma lúcida análise da
situação de cada uma das regiões da América do Sul, escreve sobre a Venezuela: "Em Caracas, o espírito de partido teve
sua origem nas sociedades, assembléias e eleições populares,
e esses partidos nos levaram à
escravidão. Assim como a Venezuela tem sido a república
americana que mais tem aperfeiçoado suas instituições políticas, também tem sido o mais
claro exemplo da ineficácia da
forma democrática e federal a
nossos nascentes Estados".
Os traços autoritários dos
discursos de Bolívar vão se
acentuando na proporção do
seu temor ao que chamou de
"anarquia social". Em 1819, no
Congresso de Angostura (na
Venezuela), Bolívar entende
que o Senado, em vez de ser
eletivo, deveria ser hereditário.
Nesse mesmo discurso, diz que
"a liberdade indefinida e a democracia absoluta são os escolhos onde foram arrebentar-se
as esperanças republicanas".
Em 1825, em pronunciamento diante do Congresso Constituinte da Bolívia, propõe a presidência vitalícia para o país.
"O presidente da República nomeia o vice-presidente, para
que administre o Estado e o suceda. Por essa providência, evitam-se as eleições, que produzem a grande calamidade das
repúblicas, a anarquia, que é o
luxo da tirania e o perigo mais
imediato e terrível dos governos populares."
Teria Chávez se inspirado
em Bolívar para tentar passar a
lei que permitirá constantes
reeleições do presidente?
Entretanto, as posições autoritárias de Bolívar não devem
ser tomadas simplesmente como algo "típico" da América
Latina. O "medo do povo" era
comum tanto na Europa quanto nas Américas. Bolívar era
um liberal e, como tal, defendia
a necessidade da manutenção
da ordem como garantidora da
segurança social e acreditava
na legitimidade da propriedade
privada como base da organização da sociedade.
Não há menção às injustiças
das desigualdades sociais ou da
dominação dos poderosos sobre os mais fracos e nenhuma
possibilidade de seus escritos
carregarem algo de um socialismo "avant la lettre".
Como foram elaborados
num período de grandes mudanças, suas avaliações e propostas variaram conforme o
momento. Na já citada Carta da
Jamaica, expressa sua esperança, afirmando desejar que na
América do Sul se forme "a
maior nação do mundo, menos
por sua extensão e riquezas do
que pela sua liberdade e glória".
Entretanto, no fim da vida,
em 1830, frustrado, concluía,
em uma de suas últimas cartas,
que da sua experiência política
tirara "poucos resultados certos": "a América era ingovernável" e "servir a uma revolução
era arar no mar".
Por outro lado, Bolívar plantou uma idéia que permanece
atual. Lançou a possibilidade
de construção de uma unidade
latino-americana e esse "sonho" ganhou novas roupagens
com o passar das gerações.
Enfim, entre o Bolívar apresentado por Chávez -otimista,
coerente, defensor da liberdade, da democracia e das causas
sociais e precursor do anti-imperialismo- e o Bolívar histórico -pragmático, controverso, ambíguo e até mesmo contraditório- existe notável distância. Parece-me fundamental ter clareza a respeito do terreno político sobre o qual Hugo
Chávez vem plantando suas
"raízes históricas".
MARIA LÍGIA COELHO PRADO é professora de
história da América na USP e autora, entre outros, de "América Latina no Século 19" (Edusp)
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