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QUAL AMÉRICA
Sob o seu aparente vazio de propostas políticas, o nacionalismo evoca ressonâncias históricas e um precioso ativo intercultural
EDUARDO GRAEFF
ESPECIAL PARA A FOLHA
A
escola de samba
Unidos da Vila Isabel ganhou o Carnaval do Rio de Janeiro de 2006 com
o enredo "Soy Loco por Ti,
América", destacando a figura
de Simon Bolívar. O governo
venezuelano patrocinou a escola por meio da companhia
petrolífera estatal PDVSA. O
ídolo do futebol argentino Diego Maradona deu a seguinte
entrevista à Folha (coluna Mônica Bergamo, 28/02/06) enquanto assistia ao desfile:
FOLHA - Você é amigo do
Hugo Chávez. E o que pensa do presidente Lula?
MARADONA - Lulaaaa. Lulaaa.
Eu amo o Lula. [Apontando para a tatuagem de Che Guevara
que tem no braço, grita] Lulaaaa.
FOLHA - Mas o Lula não é o Che
Guevara...
MARADONA - Se você não gosta
do Lula, a mim não importa. Eu
sim. [Abre os braços] Lulaaa,
Lulaaa! Eu sou Chávez, Fidel
Castro e Lula. Nós, que somos
Chávez, somos antiamericanos. Antiamericanos.
Maradona tampouco parece
se importar com as óbvias diferenças entre Fidel Castro, Hugo Chávez e Lula quando os
junta na mesma alegoria político-carnavalesca.
O espectro do "nacionalismo
esquerdista antiamericano"
voltou a pairar sobre a América
Latina depois de duas décadas
de adesão geral à democracia liberal e ao capitalismo de mercado. A onda esquerdista tem
pelo menos duas vertentes, segundo a maioria dos observadores. Lula ficaria na ala dos
"moderados", junto com Michelle Bachelet, do Chile, e Tabaré Vázquez, do Uruguai. Chávez e Evo Morales, da Bolívia,
seriam "radicais".
Lula repudia os rótulos de
antiamericano e esquerdista,
embora com a dose certa de
ambigüidade para dar alento
aos esquerdistas antiamericanos de seu partido. Contudo,
ele provavelmente não se recusaria a figurar junto de Castro,
Chávez, Morales e outros menos votados no bloco dos nacionalistas. Esquerdistas, em termos. Antiamericanos, uns
mais, outros menos. Mas, em
todo caso, nacionalistas: este
parece o mínimo denominador
comum dos líderes que assumiram o primeiro plano na América Latina no refluxo da onda
democrático-liberal.
O historiador Kenneth Maxwell rejeita a divisão entre uma
"boa" e uma "má" esquerdas latino-americanas. Em vez disso,
o que ele vê na região é "um mosaico de respostas específicas a
estruturas políticas decadentes, cada vez mais altos níveis
de desigualdade e exclusão social, tendências crescentes de
migração interna e externa, tudo misturado a uma impressionante capacidade de comunicação através de regiões geográficas e de classes e etnias"
(Mais!, 28/05/06).
Na falta de remédios ideológicos mais fortes para o mal-estar político-social, o nacionalismo parece a panacéia à mão,
inócua, mas reconfortante, como um chazinho caseiro. Inútil
descartá-lo como mercadoria
com prazo de validade vencido.
Se tantos líderes diferentes
apelam para ele, é porque fala
ao coração do povo. Convém
entender por que isso acontece
e como o nacionalismo pode
influenciar os rumos da América Latina.
Quais conteúdos o nacionalismo veicula por baixo de seu
aparente vazio de propostas
políticas específicas?
Nossa América e a outra
Historicamente, o nacionalismo latino-americano é, sim,
antiamericano, repelido e ao
mesmo tempo atraído pelo poder e a riqueza dos EUA.
O nome "América Latina" foi
adotado pela diplomacia de
Luís Bonaparte, na década de
1860, quando a França tentava
ganhar influência sobre os países americanos católicos e falantes de línguas latinas, em
contraposição à outra América,
protestante e anglo-saxã. O
apelo à latinidade teve pouca
repercussão na época. A inquietação com o "destino manifesto" expansionista dos
EUA, no entanto, marcou desde cedo o nacionalismo hispano-americano.
Acrescente-se a isso o fascínio pelo capitalismo americano, admirado por seu dinamismo e repudiado pela glorificação do dinheiro, das coisas materiais e efêmeras, em contraposição aos supostos valores
espirituais de "Nuestra América" (tema e título de um artigo
do cubano José Martí, de 1891).
O Brasil monárquico, mais
voltado para a Europa do que
para seus vizinhos de continente, basicamente ignorou essa
primeira onda antiamericana.
Em 1890 a nova República Federativa adotou o nome oficial
"Estados Unidos do Brasil" e se
aproximou dos Estados Unidos
da América, vistos como exemplo de progresso mais do que
ameaça.
A segunda onda antiamericana varreu a América Latina a
partir da década de 1960, no
contexto da Guerra Fria. Inspirada pela Revolução Cubana e
pelo repúdio às tentativas dos
EUA de abafá-la, ela se propagou rapidamente, na velocidade dos novos meios de transporte e comunicação, e alcançou todos os países, inclusive o
Brasil. O apoio dos EUA às ditaduras militares que se instalaram na região acabou de assimilar esquerdismo, nacionalismo e antiamericanismo.
O Estado acima da nação
Menos ou mais do que esquerdista, no sentido de socialista, o nacionalismo latino-americano é um nacional-estatismo.
Na Europa, a formação dos
Estados modernos no século 19
foi precedida em mais de 400
anos pela emergência de nacionalidades enquanto comunidades de língua amalgamadas pela imprensa. Nas Américas, as
novas nações nasceram no berço das estruturas de Estado
preexistentes, herança de quatro séculos de colonização. Isso
explica por que o império hispano-americano se fragmentou no processo da independência, cada unidade administrativa dando origem a um Estado separado, apesar da comunidade de língua. O Brasil não
se desintegrou porque o herdeiro do trono português, D.
Pedro 1º, tomou a frente da independência e trouxe consigo,
mais ou menos inteira, a máquina administrativa-militar
colonial.
Pelo resto do século 19, entrando pelo 20, o Estado será o
baluarte do nacionalismo latino-americano. Sua vanguarda é
a burocracia estatal. Dela o nacionalismo assimila a visão basicamente patrimonialista,
avessa à competição sem chegar a ser anticapitalista, e politicamente paternalista, receosa
da mobilização das camadas
populares. Sua grande bandeira
econômica é a propriedade estatal dos recursos naturais no
território nacional como escudo contra a cobiça estrangeira.
O Estado protecionista-intervencionista, mais do que a empresa privada, foi o principal
agente da industrialização da
América Latina de 1930 a 1980.
O nacional-desenvolvimentismo é herdeiro direto dessa tradição, embora voltado para a
inclusão social e política das
massas urbanas.
Página quase virada
Enquanto instrumento de
consolidação dos novos Estados independentes, a missão do
nacionalismo na América Latina completou-se no começo do
século passado. Como ideologia a serviço da inclusão das
massas, seu papel esgotou-se
na década de 1960. Desde então
a retórica nacionalista tem se
prestado sobretudo a arremedos de incorporação do povo à
ordem estatal sob regimes autoritários.
Com a América Latina fora
das prioridades estratégicas
dos EUA desde o fim da Guerra
Fria, o imperialismo tornou-se
um fantasma difícil de materializar nesta parte do mundo. O
antiamericanismo, nessas condições, subsiste como um valor
identitário e uma senha de resistência ao capitalismo global,
este sim cada vez mais presente
e perturbador.
A sobrevivência do nacionalismo se explica pelas ressonâncias históricas vagas mas
familiares que ainda é capaz de
evocar. Seu apelo aumenta na
razão inversa da capacidade
das elites dirigentes latino-americanas de oferecer alternativas efetivas de inclusão social das massas dentro do raio
de manobra reduzido que a globalização deixa aos Estados nacionais.
Mas nem tudo é eco do passado na nova onda nacionalista
que varre a América Latina. As
manifestações mais vibrantes
da cultura latino-americana
contemporânea passam longe
do estatismo e do antiamericanismo, sem deixar de ser triunfantemente nacionais, no sentido da originalidade.
Identidade em projeto
A literatura latino-americana do século 19 transitou da tematização do exotismo do Novo Mundo sob moldes europeus (o "bom selvagem" romântico) para o tratamento
realista de dramas populares
numa perspectiva popular.
A entrada em cena do povo
como protagonista aconteceu
mais cedo e com mais vigor na
música, sob o signo da interculturalidade. Alejo Carpentier,
na crônica "O Anjo das Maracas" (em "Visão da América",
Martins Editora), descreve um
concerto em homenagem ao
bispo da cidade cubana de Bayamo, em 1608, no qual tambores africanos e flautas indígenas se misturam com instrumentos de corda europeus.
Esse evento, diz ele, é o primeiro de que se tem notícia a
reunir "todos os elementos sonoros que caracterizarão a futura música do continente, música que, tanto em suas expressões cultas como nas populares
e folclóricas, no início deste século [20], irromperá com dinamismo próprio no panorama
da música universal".
Também de Cuba, do fim do
século 19, vem o primeiro gênero musical -o bolero- que
realmente unifica a América
Latina. Adotado pelo México,
depois por Porto Rico, ele caiu
no gosto popular de toda a região no primeiro quartel do século 20, difundido por artistas
em excursão e cada vez mais
pelo disco e pelo rádio. No mesmo período e pelos mesmos
meios, o merengue dominicano, a cumbia colombiana, o tango argentino-uruguaio e o samba brasileiro começam a cruzar
fronteiras para compor o "pot-pourri" musical em que os latino-americanos reconhecerão a
si mesmos e pelo qual serão reconhecidos no mundo.
Embora ocasionalmente instrumentalizada pelo Estado, a
cultura popular latino-americana brota no solo do que hoje
chamamos sociedade civil -às
vezes com tanto mais viço
quanto menor a proteção oficial- e se deixa abraçar sem timidez pela indústria cultural.
Vista pela lente da cultura, a
América Latina é um caleidoscópio onde vislumbres de unidade se desfazem num mosaico
de influências européias, indígenas e africanas combinadas
em proporções muito desiguais
nos vários países. O que articula esses pedaços não são tanto
as raízes ancestrais quanto os
meios de comunicação de massa e sua capacidade de recolher,
misturar, recriar e difundir temas e estilos diferentes.
Assim como a indústria da
imprensa decantou as nacionalidades européias entre os séculos 16 e 19, a do disco, do rádio, do cinema e da televisão
processa a possível identidade
latino-americana contemporânea. Musicalmente falando, essa identidade é mais afro do que
latino-americana. O veio mais
rico da multibilionária indústria fonográfica mundial é a
música afro-americana feita no
Rio de Janeiro, na Bahia, no Caribe, em Nova Orleans, em Chicago, embalada e distribuída
por negociantes judeus em Los
Angeles e Nova York.
Se na economia pós-industrial a geração de valor se desloca da transformação material
para a criação do conteúdo simbólico, a interculturalidade pode ser um ativo tão precioso
quanto a biodiversidade para a
América Latina.
A grande pergunta é como
colocar esse ativo a serviço de
projetos viáveis de desenvolvimento nacional e regional, em
vez de desperdiçá-lo em signos
estéreis de resistência à globalização. A resposta dá assunto
para vários outros artigos. Mas
com certeza não estará no velho dirigismo movido a verbas
estatais que Chávez tenta reeditar com sua Telesur, coadjuvado por Lula. Nem num "laissez-faire" indiferente às tendências monopolistas homogeneizadoras da indústria cultural. Entre um e outro deve haver espaço para uma visão democrática progressista das
identidades culturais latino-americanas e para políticas
condizentes com essa visão.
EDUARDO GRAEFF é cientista político. Foi secretário-geral da Presidência da República no
governo Fernando Henrique Cardoso.
A íntegra deste texto pode ser lida
em: www.e-agora.org.br/uploads/NossaAmerica
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