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O cientista e o filósofo
Em entrevista praticamente inédita, Bento Prado Jr., morto no último dia 12, fala da comercialização da filosofia
FRANCISCO ROLFSEN BELDA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Bento Prado Jr. viveu
seus últimos anos
cercado pela filosofia da ciência. Literalmente: foi, de
1977 até sua morte, no último
dia 12, líder do Departamento
de Filosofia e Metodologia das
Ciências da Universidade Federal de São Carlos.
Seus estudos sobre a subjetividade o levaram a se aproximar de psicólogos, matemáticos, biólogos e outros grupos
de ciências exatas e aplicadas
para formar um heterogêneo
núcleo de pesquisa.
A fronteira entre ciência e filosofia nos trabalhos de Bento
Prado -em grande parte inspirados na obra do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941)- foi o que motivou esta
entrevista, concedida em sua
casa, em São Carlos, numa manhã chuvosa de julho de 2005,
à revista "Ciência&Tecnologia", que circula no campus da
própria universidade.
Leia abaixo os principais trechos dessa conversa.
PERGUNTA - Como é a interface entre filósofos, químicos, físicos, biólogos e engenheiros na UFSCar?
BENTO PRADO JR. - Nós começamos o diálogo com psicologia,
mas temos forte interesse em
química, engenharia. Muita
gente dessas áreas, inclusive,
acaba de alguma maneira abandonando sua carreira original e
se direcionando para a filosofia.
PERGUNTA - Que teorias estão causando esta migração?
PRADO JR. - São as mais variadas. Há pesquisadores de
orientação neurológica, que
trabalham com filosofia analítica, filosofia da mente. O diálogo filosófico é dialógico, o ponto de encontro entre perspectivas filosóficas diferentes que se
entrecruzam e se influenciam.
Gosto de dizer que, em filosofia, o seu melhor amigo é o seu
mais duro inimigo. Você precisa dialogar com aquele que está
o mais distante possível da sua
posição, ou corre o risco de a
sua filosofia virar ideologia.
PERGUNTA - Qual a sua opinião sobre filósofos atuarem profissionalmente como terapeutas?
PRADO JR. - Eu tenho a idéia de
que uma aplicação clínica da filosofia, nesse sentido terapêutico, me parece insensata, porque pressupõe a posse de algumas verdades, teorias, que a filosofia está sempre buscando.
Isso não impede que a filosofia
tenha, desde a sua origem, algo
como uma função terapêutica.
A filosofia pode não apenas
resolver problemas teóricos
mas também desfazer falsos
problemas de alguma maneira
a curar o interlocutor de angústias derivadas de uma forma de
pensar. Ora, isso não significa
que o filósofo se entenda como
clínico, apenas que a sua afinidade filosófica tem um alcance.
Se uma filosofia clínica se
torna eficaz, ela deixa de ser filosófica e passa a ser uma prática terapêutica, como a psicoterapia. Eu não conheço tão bem
essas formas de práticas, que
têm origem nos EUA. Nós as recebemos, a clínica filosófica, a
filosofia para crianças.
PERGUNTA - O sr. as vê como uma
comercialização da filosofia?
PRADO JR. - Eu não sei se uma
comercialização da filosofia ou
se uma deformação, uma adaptação da tradição filosófica à
condição muito característica
do mundo contemporâneo.
Acho que essas concepções da
filosofia entram no choque
com a melhor posição.
PERGUNTA - Seria a de tradição européia?
PRADO JR. - Eu não estou negando que existem excelentes filósofos americanos. Aliás, você
poderia dizer o contrário. A filosofia americana talvez tenha
sofrido no meio do século 20
uma espécie de desvio, uma
maciça migração de filósofos
europeus que substituiu a filosofia americana original pelo
pragmatismo, pelo empirismo
lógico trazido da Europa Central e que se tornou, de uma
certa maneira, a filosofia oficial
das universidades americanas.
Isso transformou a filosofia
numa disciplina puramente
técnica, com questões lógicas
entendidas de maneira técnica.
A partir da década de 1960
esse império é o positivista, que
esmagou o pensamento norte-americano que originou o século 20. Renasceu o interesse pelo
neopragmatismo. Os mais notados filósofos americanos de
hoje redescobriram a filosofia
americana e o seu parentesco
profundo com a filosofia continental, européia.
No século 19 havia uma filosofia americana que não englobava a filosofia européia -alemã, francesa. Foi em meados
do século 20 que se criou a oposição entre filosofia analítica e
filosofia continental. A origem
da filosofia analítica é alemã,
italiana -é européia.
PERGUNTA - O sr. escreveu que a filosofia do século passado foi fortemente influenciada pelas guerras. E
hoje? Como a filosofia lida com as
transformações geopolíticas?
PRADO JR. - Ou a filosofia é entendida de maneira puramente
escolar, técnica, e então ela cuida de assuntos técnicos e volta
suas costas às transformações
do mundo contemporâneo, ou
a filosofia, por mais abstrata
que seja o seu tema, está ligada
ao destino contemporâneo da
humanidade.
Há filósofos que continuam a
fazer como se fez no passado.
Um grande momento da filosofia européia foi exatamente o
período entre guerras, quando
a Europa sofria um abalo gigantesco. É justamente nesse momento que a filosofia teve seus
momentos mais altos.
No Brasil há quem não se limita a fazer filosofia escolar, e
eu lembro aqui dois nomes em
São Paulo, que são Paulo
Eduardo Arantes e Marilena
Chaui, do departamento de filosofia da USP. Eles fazem uma
reflexão que é essencialmente
de filosofia política.
Paulo Eduardo Arantes tem
um texto que trata das características da contemporânea
guerra global, uma reflexão da
função social da guerra no
mundo em que vivemos, no
mundo de nosso inimigo George W. Bush.
PERGUNTA - O sr. disse "nosso inimigo Bush". Qual sua opinião sobre
o efeito da doutrina de segurança
norte-americana no poder de influência dos intelectuais no debate
internacional?
PRADO JR. - Seguramente isso
afeta pelo menos a maioria dos
intelectuais. Porque a política
de Bush foi concebida e elaborada por um grupo de intelectuais ligados a ele, ultraconservadores, inspirados, talvez
equivocadamente, num grande
filósofo de teoria política que
funciona como porta-estandarte desse grupo.
Acho muito difícil imaginar
uma continuidade mais conservadora do que o ultraconservadorismo deste grupo que
serve Bush e que pensa por ele.
FRANCISCO ROLFSEN BELDA é jornalista e
pesquisador do Instituto de Estudos Avançados
da USP em São Carlos.
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