São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2007

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O cientista e o filósofo

Em entrevista praticamente inédita, Bento Prado Jr., morto no último dia 12, fala da comercialização da filosofia

FRANCISCO ROLFSEN BELDA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Bento Prado Jr. viveu seus últimos anos cercado pela filosofia da ciência. Literalmente: foi, de 1977 até sua morte, no último dia 12, líder do Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências da Universidade Federal de São Carlos. Seus estudos sobre a subjetividade o levaram a se aproximar de psicólogos, matemáticos, biólogos e outros grupos de ciências exatas e aplicadas para formar um heterogêneo núcleo de pesquisa.
A fronteira entre ciência e filosofia nos trabalhos de Bento Prado -em grande parte inspirados na obra do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941)- foi o que motivou esta entrevista, concedida em sua casa, em São Carlos, numa manhã chuvosa de julho de 2005, à revista "Ciência&Tecnologia", que circula no campus da própria universidade. Leia abaixo os principais trechos dessa conversa.

 

PERGUNTA - Como é a interface entre filósofos, químicos, físicos, biólogos e engenheiros na UFSCar?
BENTO PRADO JR.
- Nós começamos o diálogo com psicologia, mas temos forte interesse em química, engenharia. Muita gente dessas áreas, inclusive, acaba de alguma maneira abandonando sua carreira original e se direcionando para a filosofia.

PERGUNTA - Que teorias estão causando esta migração?
PRADO JR.
- São as mais variadas. Há pesquisadores de orientação neurológica, que trabalham com filosofia analítica, filosofia da mente. O diálogo filosófico é dialógico, o ponto de encontro entre perspectivas filosóficas diferentes que se entrecruzam e se influenciam. Gosto de dizer que, em filosofia, o seu melhor amigo é o seu mais duro inimigo. Você precisa dialogar com aquele que está o mais distante possível da sua posição, ou corre o risco de a sua filosofia virar ideologia.

PERGUNTA - Qual a sua opinião sobre filósofos atuarem profissionalmente como terapeutas?
PRADO JR.
- Eu tenho a idéia de que uma aplicação clínica da filosofia, nesse sentido terapêutico, me parece insensata, porque pressupõe a posse de algumas verdades, teorias, que a filosofia está sempre buscando. Isso não impede que a filosofia tenha, desde a sua origem, algo como uma função terapêutica.
A filosofia pode não apenas resolver problemas teóricos mas também desfazer falsos problemas de alguma maneira a curar o interlocutor de angústias derivadas de uma forma de pensar. Ora, isso não significa que o filósofo se entenda como clínico, apenas que a sua afinidade filosófica tem um alcance.
Se uma filosofia clínica se torna eficaz, ela deixa de ser filosófica e passa a ser uma prática terapêutica, como a psicoterapia. Eu não conheço tão bem essas formas de práticas, que têm origem nos EUA. Nós as recebemos, a clínica filosófica, a filosofia para crianças.

PERGUNTA - O sr. as vê como uma comercialização da filosofia?
PRADO JR.
- Eu não sei se uma comercialização da filosofia ou se uma deformação, uma adaptação da tradição filosófica à condição muito característica do mundo contemporâneo. Acho que essas concepções da filosofia entram no choque com a melhor posição.

PERGUNTA - Seria a de tradição européia?
PRADO JR.
- Eu não estou negando que existem excelentes filósofos americanos. Aliás, você poderia dizer o contrário. A filosofia americana talvez tenha sofrido no meio do século 20 uma espécie de desvio, uma maciça migração de filósofos europeus que substituiu a filosofia americana original pelo pragmatismo, pelo empirismo lógico trazido da Europa Central e que se tornou, de uma certa maneira, a filosofia oficial das universidades americanas.
Isso transformou a filosofia numa disciplina puramente técnica, com questões lógicas entendidas de maneira técnica. A partir da década de 1960 esse império é o positivista, que esmagou o pensamento norte-americano que originou o século 20. Renasceu o interesse pelo neopragmatismo. Os mais notados filósofos americanos de hoje redescobriram a filosofia americana e o seu parentesco profundo com a filosofia continental, européia.
No século 19 havia uma filosofia americana que não englobava a filosofia européia -alemã, francesa. Foi em meados do século 20 que se criou a oposição entre filosofia analítica e filosofia continental. A origem da filosofia analítica é alemã, italiana -é européia.

PERGUNTA - O sr. escreveu que a filosofia do século passado foi fortemente influenciada pelas guerras. E hoje? Como a filosofia lida com as transformações geopolíticas?
PRADO JR.
- Ou a filosofia é entendida de maneira puramente escolar, técnica, e então ela cuida de assuntos técnicos e volta suas costas às transformações do mundo contemporâneo, ou a filosofia, por mais abstrata que seja o seu tema, está ligada ao destino contemporâneo da humanidade.
Há filósofos que continuam a fazer como se fez no passado. Um grande momento da filosofia européia foi exatamente o período entre guerras, quando a Europa sofria um abalo gigantesco. É justamente nesse momento que a filosofia teve seus momentos mais altos. No Brasil há quem não se limita a fazer filosofia escolar, e eu lembro aqui dois nomes em São Paulo, que são Paulo Eduardo Arantes e Marilena Chaui, do departamento de filosofia da USP. Eles fazem uma reflexão que é essencialmente de filosofia política.
Paulo Eduardo Arantes tem um texto que trata das características da contemporânea guerra global, uma reflexão da função social da guerra no mundo em que vivemos, no mundo de nosso inimigo George W. Bush.

PERGUNTA - O sr. disse "nosso inimigo Bush". Qual sua opinião sobre o efeito da doutrina de segurança norte-americana no poder de influência dos intelectuais no debate internacional?
PRADO JR.
- Seguramente isso afeta pelo menos a maioria dos intelectuais. Porque a política de Bush foi concebida e elaborada por um grupo de intelectuais ligados a ele, ultraconservadores, inspirados, talvez equivocadamente, num grande filósofo de teoria política que funciona como porta-estandarte desse grupo. Acho muito difícil imaginar uma continuidade mais conservadora do que o ultraconservadorismo deste grupo que serve Bush e que pensa por ele.


FRANCISCO ROLFSEN BELDA é jornalista e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP em São Carlos.


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