São Paulo, domingo, 21 de janeiro de 2007

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Bowie, 60

O escritor argentino Rodrigo Fresán encara as várias faces do mito pop, que entrou na sétima década de vida neste mês

Martin Bureau - 24.set.2002/France Presse
O músico britânico David Bowie, durante apresentação realizada em Paris


RODRIGO FRESÁN
ESPECIAL PARA A FOLHA

A lguns dias atrás, no prólogo a uma biografia de Peter Sellers [1925-80], li que o ator inglês, depois de tantos anos transformando-se em tantos outros e adotando tantos sotaques e inflexões, já não lembrava qual era sua verdadeira voz -sua voz original, a de Peter Sellers.
Assim, conversar com o comediante pouco antes de sua morte equivalia a se deixar sepultar e seduzir por uma eufórica psicose de personalidades. Mas, quando se pedia a Sellers que, por favor, fosse ele mesmo, por um minuto apenas que fosse, ele não sabia, não podia, não se lembrava. Uma associação de idéias livre, mas não tão casual assim -e, de repente, me vi pensando no também britânico, camaleônico e multidisciplinar David Bowie, que completou seis décadas de vida em boa forma, no último dia 8, e me perguntando qual dos Bowies estava chegando a essa idade, e qual não.
Porque foram muitos os Bowies que ficaram pela "long and winding road" de sua passagem pelo planeta pop. Para começar, Bowie fascina por ter sido o espécime mais poderoso e contagiado pelo vírus Beatles: A necessidade de transformação constante, de ser outros (como "Sgt. Pepper"), de conquistar o mundo para depois, como todo bom messias, abandoná-lo e deixá-lo entregue a sua sorte.
A leitura da biografia "Strange Fascination", de David Buckley [Estranho Fascínio, Virgin Publishing], lançada em 1999, contribui com um elemento bizarro: poucos astros do rock fracassaram tanto e tantas vezes quanto Bowie no início de suas carreiras.

Encarnações
Em sua primeira e terrena encarnação, Bowie tentou quase tudo e não se destacou em nada, encontrando a glória planetária quando, depois de um breve período de esquentamento como travesti ligeiro cantando o evangelho do Major Tom em "Space Oddity" e funcionando como supergroupie que louvava Warhol, Dylan, Lennon, Velvet Underground, Aleister Crowley, seu filho e seu irmão enlouquecido em "Hunky Dory" (1971) -o álbum de Bowie que eu ouço mais-, ele decidiu deixar de ser.
Depois, em 1972, ele se converteu no ET-glam-nietzscheano Ziggy Stardust. A partir desse momento, Bowie compreendeu que o que funcionava melhor eram as personalidades, e não as personas, e que a doutrina a seguir era a perversão polimorfa como ética e estética. Vieram o alien decadente Thomas Jerome Newton no filme "O Homem que Caiu na Terra", de Nicolas Roeg, o "plastic soul man", o cocainômano paranóico em Los Angeles, o fascistóide Thin White Duke, o existencialista em Berlim, o clown psicodélico de "Ashes to Ashes", o profeta da MTV nas noites hedonistas de "Let's Dance", o artista confundido com a própria lenda nos anos 1980, quando foi imitado por todos os "new romantics" numa década que ele mesmo tinha inventado nos anos 1970, o absurdo líder da ainda mais absurda banda Tin Machine -até chegar ao Bowie de hoje.
Alguém que é feliz ao lado de uma modelo tão vampírica e jovem quanto Iman. Que se mostra mestre multimilionário em fazer negócios na Bolsa. Que gosta de brincar na web a partir de seu paradigmático site. Alguém que se diverte aparecendo em papéis pequenos em filmes mais ou menos grandes (basta vê-lo em "Zoolander", representando a si mesmo e considerado o árbitro definitivo do que é "cool"). Alguém que é considerado um recluso embalado a vácuo.

Auto-análise
Alguém que de tanto em tanto lança discos bons que podem chamar-se "Outside", "Earthling", "hours..." ou "Heathen", e nos quais o mais importante parece já não ser o fato de ser o primeiro a chegar a algum novo lugar, moda, ou som, mas, à diferença de Peter Sellers, deixar memórias e não resignar-se ao sacrifício e perda da própria voz e estilo, sem que isso equivalha a petrificar-se num só, muito menos em público.
Mesmo assim, há indícios, pistas, instruções. Em entrevista à revista britânica "Mojo", em 2002, Bowie, por uma vez na vida, se mostrou francamente disposto a se explicar: "Eu tinha muitos interesses diferentes. E compreendi em pouco tempo que a única "carreira" na qual poderia desenvolver todos seria a música. É claro que eu não poderia fazer isso sendo contador. Eu amava a arte, o teatro e as muitas maneiras em que nos expomos a nós mesmos como cultura. E pensei realmente, então, que apenas no rock eu poderia me permitir não renunciar a nenhuma dessas coisas. No rock eu ia poder inserir meus blocos retangulares em orifícios circulares. Poderia martelá-los até que entrassem. É por isso que na minha trajetória há um pouco de ficção científica, um pouco de kabuki, um pouco de expressionismo alemão... É como se eu sempre tivesse organizado as coisas para não prescindir de nenhum de meus amigos".
Anos atrás, em 1976, Bowie propôs outra definição, mais infeliz: "Nunca houve a intenção de que Bowie existisse. É como um Lego. Estou certo de que eu não gostaria de mim mesmo, porque me vejo inexpressivo e indisciplinado demais. Não existe um David Bowie definitivo". E em 2003: "O que desejo mais desesperadamente é viver para sempre. Continuar aqui dentro de 40 ou 50 anos".
Uma coisa está clara: sem nunca mentir, Bowie -como todos os artistas realmente grandes- fez com que durante várias décadas permanecesse oculta a verdade última e final que está em alguma parte dele. Ou não. Talvez não exista mais que isso: Bowies demais desde o início -armáveis e desarmáveis, introdutores de novidades, com vontade de não parar nunca- e que, há pouco tempo, esses Bowies passaram a se unir para influenciar alguém que é feliz por já não precisar influenciar ninguém, porque basta pronunciar seu nome para que todos se sintam transformados por sua sombra alta e magra. Para sempre, é claro.

RODRIGO FRESÁN é escritor argentino. Seu romance "Jardins de Kensington" será lançado no Brasil pela editora Conrad (480 págs., R$ 53) nas próximas semanas. Tradução de Clara Allain

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