São Paulo, Domingo, 21 de Fevereiro de 1999
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É tarefa de uma esquerda renovada defender a real socialização do trabalho e das liberdades
A luta contra a exclusão

TARSO GENRO
especial para a Folha

1. Nos países industrializados do centro do sistema capitalista, a cultura classista, que caracterizou os embates políticos até os anos 70, vem sendo substituída por identificações particulares: raça, gênero, "afinidade eletivas" (por opções ecológicas, tribalistas, religiosas etc.), que são construídas sem eliminar as classes e sem mudar as bases materiais da sua reprodução. Os valores e antivalores, que as unificavam ou confrontavam, foram diluídos por novos tipos de conflitos. As formas da linguagem e as mediações organizadas -como os partidos e os sindicatos- que aglutinavam os cidadãos para a luta política também vem sendo profundamente abaladas na sua capacidade mobilizadora.
2. Valores que sedimentavam a camaradagem cotidiana entre os operários da grande indústria moderna (como por exemplo o valor "resistência voluntária contra a exploração") tornam-se cada vez menos influentes. Eles estão sendo trocados por antivalores (como o da "concorrência entre trabalhadores pela melhor qualificação-especialização"). Essa concorrência era menos intensa quando o setor mais evoluído da produção estava centrado na estabilidade da grande indústria; hoje, a concorrência está sendo aumentada pela instabilidade estrutural do trabalho, causada pela revolução telemática e informacional.
3. Os atuais processos de produção exigem novas aptidões e filtros mais estreitos para a seleção dos trabalhadores "aproveitáveis". Por outro lado, as atuais relações de cooperação entre as empresas impõem uma nova autonomia entre os trabalhadores e demandam mais "autocontrole" (aumenta o controle empresarial pelo "resultado"). São processos de produção que requerem um trabalhador com mais iniciativa para produzir e, ao mesmo tempo, com mais subordinação ao sistema.
4. O velho antivalor operário (de uma ótica revolucionária) "inserção estável na sociedade de classes" torna-se, por seu turno, o valor mais atrativo para a massa de excluídos e semi-incluídos. Isso ocorre porque o futuro visível no cotidiano é aquele em que o mero pertencimento a uma classe é a melhor possibilidade. E ela só pode ser obtida com extrema dificuldade, contra os trabalhadores que almejam as mesmas expectativas, num mercado cada vez mais seletivo.
5. Aparece a "compensação" para os derrotados como nova racionalidade do Estado. Política estatal que homologa a meia-cidadania e institucionaliza a exclusão social, ela se erige em oferta do Estado para manter o mercado desregulado. Regula-se a exclusão para desregular a inclusão. Por meio da compensação, o Estado gerencia o novo padrão de acumulação e "organiza" o estranhamento dos blocos antagonizados: o bloco incluído e o bloco excluído. A estatização da filantropia combina-se com a privatização da inclusão, porque esta, não mais sendo promovida pelo Estado, torna-se fruto, apenas, da concorrência entre os próprios trabalhadores.
6. A época é moderna, os valores da modernidade não estão superados (nem sequer foram realizados universalmente), mas as transformações sociais, materiais e culturais do capitalismo alimentam o triunfo da "perspectiva pragmática" sobre a "perspectiva ideológica" (1). É um triunfo que se alicerça em novos antivalores universais, que funcionam como elos de coesão na atual etapa do capitalismo vitorioso. São antivalores que sujeitam a consciência da maioria e reduzem a sua capacidade de interferir sobre a realidade: a mercantilização completa das relações materiais e emocionais, a acumulação privada sem trabalho e o reinado do cinismo individualista como um estado moral universal.
7. A crise do Estado-prestador "liberada" pela quebra da utopia perversa do socialismo estatal (que aniquilou a sociedade civil e os valores da modernidade) abre espaços para um macroinstrumento de controle subjetivo, por parte do capital: o "obsessivo ritual público" (2) de identificar a luta contra a pobreza com o "sacrifício do contribuinte" e o "custo do bem-estar", que reforça a cultura da intolerância e da "naturalização" da miséria.
8. O mesmo ritual propõe mensurações puramente financeiras -que aparentemente ameaçam o bem-estar dos incluídos- para advertir que "há um preço para a dignidade dos excluídos". O processo, portanto, reforça a oposição entre os blocos e os torna incomunicáveis pelos meios democráticos tradicionais. Estimula-se assim, de forma planejada, a "corporativização" do sentimento de solidariedade, por meio do seguinte antivalor: quem ameaça minha inclusão é aquele que não aceita a universalidade das regras mercantis de convivência.
9. O objetivo imediato da esquerda seria quebrar esse ritual. Permitir a nitidez antiga da luta de "classe contra classe"? É um objetivo apenas retórico: a decomposição do capitalismo, que incluía pessoas no mundo do trabalho como condição para a acumulação, obriga a que a luta de classes revele-se principalmente como conflitos de inclusão. Para que a luta de classes retornasse -como importância política- às suas formas "puras", ela deveria fundar-se numa estrutura de classes também próxima da "pureza" do velho capitalismo industrial. Deveria originar-se -portanto- de uma sociedade em que a exclusão fosse secundária, e não uma condição necessária, para um capitalismo alicerçado sobre a acumulação sem trabalho.
10. Por isso os "sem" (terra, teto, identidade, emprego, respeito pela sua especificidade etc.) expressam os conflitos que indicam um novo vínculo entre a democracia e a igualdade. Mas, para que seus movimentos estimulem uma utopia generosa, devem demonstrar que são capazes de sair da sua "imediatidade" corporativa para propor ações e políticas públicas que os coloquem ao lado do mundo do trabalho incluído. Aqui entra o papel político do novo partido moderno do socialismo.
11. Na verdade, o movimento revolucionário marxista que foi hegemônico tinha como pressuposto uma identidade especial com Kelsen: a visão de que "o valor da liberdade e não o da igualdade (era o) que determina(va), em primeiro lugar, a idéia de democracia" (3). Hoje, porém, fica claro que liberdade e igualdade fundem-se numa só possibilidade: a igualdade e a liberdade só podem ser iniciadas como inclusão; e a inclusão, como momento inicial da igualdade, é, paralelamente, condição para o exercício da democracia.
12. O exercício da democracia, por seu turno, só pode se configurar pela socialização das liberdades formais. Seu elenco é basicamente inatingível para a imensa massa de excluídos e semi-incluídos: direito político como direito de escolha livre; acesso à Justiça; à informação; livre acesso à "propriedade" (orientação) da sua vida cotidiana; acesso ao direito à educação. O contingente que compõe a sociedade moderna imperfeita (os excluídos, os semi-incluídos, precários, imigrantes e todos os pobres produzidos pela sociedade do consumismo predatório) são os novos sujeitos da revolução democrática. O seu acesso à democracia torna-se um repto radical à degradação da democracia. A igualdade concreta mínima, que é inclusão, é a condição real da liberdade e, ao mesmo tempo, salto para a democratização subversiva do Estado.
13. Tudo parte do reconhecimento de que o capital que dá concretude ao capitalismo globalizado pelo dinheiro artificial só pode se realizar liquidando o que resta do liberalismo e da democracia, o que significa tendencialmente perpetuar a exclusão, em maior ou menor grau. Esse processo gigantesco e global, assim como a manipulação dos valores da modernidade pela "mídia", reproduz-se com a cumplicidade entre consumidores (incluídos) e fornecedores (donos da informação e da produção de bens). É uma cumplicidade fundamental para que a exclusão seja considerada socialmente como "natural" e, ao mesmo tempo, afirmada pela propaganda como "transitória".
14. A essência do liberalismo vista como "relação indissociável entre propriedade e liberdade" (4) exacerbou-se ao limite: a acumulação sem trabalho, no capitalismo do ultraliberalismo, só gera autoritarismo -pelos monopólios- e manipulação; logo, "a mera liberdade" e a "simples propriedade", mesmo dos meios de produção, desde que não-monopolistas, não têm mais nenhuma identidade. A relação indissociável entre propriedade e liberdade perverteu-se na identidade entre capital financeiro (capital desvinculado dos processos de produção) e dominação manipulatória (que automatiza e aliena as liberdades).
15. Os processos sociais concretos agora fundiram liberdade e igualdade. Essa fusão tem reflexos na política, pois só o reconhecimento pleno da identidade entre liberdade e igualdade pode mobilizar os cidadãos para controlar o aparato gerador de condições "mais iguais": o Estado. A consequência política é que a opção entre "revolução" e "reforma" passa a ser puramente formal. Por quê? Porque a opção, seja pela "reforma" ou pela "revolução", vai se deparar com uma questão preliminar intransponível, que obriga a unificação de ambas as opções (talvez para dividi-las num outro momento): a necessidade da defesa da real socialização do trabalho como alicerce para a inclusão, numa sociedade "conscientemente orientada".
16. Uma sociedade "conscientemente orientada" só pode ser uma sociedade radicalmente democrática, com um Estado sob seu controle e independente da regulação do capital financeiro. A evolução do capitalismo, seu estreitamento político e sua incapacidade para promover a coesão social, torna-o incompatível com a democracia. As liberdades formais manipuladas são meras "expectativas" de liberdades que, na verdade, negam a democracia: a porta de entrada da democracia renovada, não-manipulatória, passa a ser a igualdade, que hoje tem o nome "insuportável" de inclusão. É o encontro vital de um projeto socialista com uma estratégia democrática.



Notas:
1. Mészáros, István. "Marxismos-Política-Moralidade". In: revista "Práxis", nº 3, Belo Horizonte, março de 1995, pág. 97;
2. Bauman, Zygmunt. "La Izquierda como Contracultura de la Modernidad". In: "Cuadernos La Invención y la Herencia", nº 4, "La Izquierda ante el Fin de Milenio", Santiago (Chile): Ediciones LOM y Universidad Arcis, pág. 40;
3. Della Volpe, Galvano. "Crítica da Ideologia Contemporânea", Lisboa, Editorial Estampa, 1974, pág. 109;
4. Gruppi, Luciano. "Tudo Começou com Maquiavel", in "Oitenta", Porto Alegre, L&PM Editores, vol. 3, outono de 1980, pág. 160.




Tarso Genro é advogado, foi prefeito de Porto Alegre (RS) de 93 a 96 e deputado federal de 89 a 90. É membro do Diretório Nacional do PT e autor de "Na Contramão da Pré-História" e "Utopia Possível".



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