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É tarefa de uma esquerda renovada defender a real socialização do trabalho e das liberdades
A luta contra a exclusão
TARSO GENRO
especial para a Folha
1. Nos países industrializados do
centro do sistema capitalista, a
cultura classista, que caracterizou
os embates políticos até os anos
70, vem sendo substituída por
identificações particulares: raça,
gênero, "afinidade eletivas" (por
opções ecológicas, tribalistas, religiosas etc.), que são construídas
sem eliminar as classes e sem mudar as bases materiais da sua reprodução. Os valores e antivalores, que as unificavam ou confrontavam, foram diluídos por
novos tipos de conflitos. As formas da linguagem e as mediações
organizadas -como os partidos e
os sindicatos- que aglutinavam
os cidadãos para a luta política
também vem sendo profundamente abaladas na sua capacidade
mobilizadora.
2. Valores que sedimentavam a
camaradagem cotidiana entre os
operários da grande indústria moderna (como por exemplo o valor
"resistência voluntária contra a
exploração") tornam-se cada vez
menos influentes. Eles estão sendo
trocados por antivalores (como o
da "concorrência entre trabalhadores pela melhor qualificação-especialização"). Essa concorrência
era menos intensa quando o setor
mais evoluído da produção estava
centrado na estabilidade da grande indústria; hoje, a concorrência
está sendo aumentada pela instabilidade estrutural do trabalho,
causada pela revolução telemática
e informacional.
3. Os atuais processos de produção exigem novas aptidões e filtros
mais estreitos para a seleção dos
trabalhadores "aproveitáveis".
Por outro lado, as atuais relações
de cooperação entre as empresas
impõem uma nova autonomia entre os trabalhadores e demandam
mais "autocontrole" (aumenta o
controle empresarial pelo "resultado"). São processos de produção que requerem um trabalhador
com mais iniciativa para produzir
e, ao mesmo tempo, com mais subordinação ao sistema.
4. O velho antivalor operário (de
uma ótica revolucionária) "inserção estável na sociedade de classes" torna-se, por seu turno, o valor mais atrativo para a massa de
excluídos e semi-incluídos. Isso
ocorre porque o futuro visível no
cotidiano é aquele em que o mero
pertencimento a uma classe é a
melhor possibilidade. E ela só pode ser obtida com extrema dificuldade, contra os trabalhadores que
almejam as mesmas expectativas,
num mercado cada vez mais seletivo.
5. Aparece a "compensação"
para os derrotados como nova racionalidade do Estado. Política estatal que homologa a meia-cidadania e institucionaliza a exclusão
social, ela se erige em oferta do Estado para manter o mercado desregulado. Regula-se a exclusão para desregular a inclusão. Por meio
da compensação, o Estado gerencia o novo padrão de acumulação
e "organiza" o estranhamento
dos blocos antagonizados: o bloco
incluído e o bloco excluído. A estatização da filantropia combina-se com a privatização da inclusão, porque esta, não mais sendo
promovida pelo Estado, torna-se
fruto, apenas, da concorrência entre os próprios trabalhadores.
6. A época é moderna, os valores
da modernidade não estão superados (nem sequer foram realizados
universalmente), mas as transformações sociais, materiais e culturais do capitalismo alimentam o
triunfo da "perspectiva pragmática" sobre a "perspectiva ideológica" (1). É um triunfo que se alicerça em novos antivalores universais, que funcionam como elos
de coesão na atual etapa do capitalismo vitorioso. São antivalores
que sujeitam a consciência da
maioria e reduzem a sua capacidade de interferir sobre a realidade: a
mercantilização completa das relações materiais e emocionais, a
acumulação privada sem trabalho
e o reinado do cinismo individualista como um estado moral universal.
7. A crise do Estado-prestador
"liberada" pela quebra da utopia
perversa do socialismo estatal
(que aniquilou a sociedade civil e
os valores da modernidade) abre
espaços para um macroinstrumento de controle subjetivo, por
parte do capital: o "obsessivo ritual público" (2) de identificar a
luta contra a pobreza com o "sacrifício do contribuinte" e o
"custo do bem-estar", que reforça a cultura da intolerância e da
"naturalização" da miséria.
8. O mesmo ritual propõe mensurações puramente financeiras
-que aparentemente ameaçam o
bem-estar dos incluídos- para
advertir que "há um preço para a
dignidade dos excluídos". O processo, portanto, reforça a oposição entre os blocos e os torna incomunicáveis pelos meios democráticos tradicionais. Estimula-se
assim, de forma planejada, a
"corporativização" do sentimento de solidariedade, por meio do
seguinte antivalor: quem ameaça
minha inclusão é aquele que não
aceita a universalidade das regras
mercantis de convivência.
9. O objetivo imediato da esquerda seria quebrar esse ritual.
Permitir a nitidez antiga da luta de
"classe contra classe"? É um objetivo apenas retórico: a decomposição do capitalismo, que incluía
pessoas no mundo do trabalho como condição para a acumulação,
obriga a que a luta de classes revele-se principalmente como conflitos de inclusão. Para que a luta de
classes retornasse -como importância política- às suas formas
"puras", ela deveria fundar-se
numa estrutura de classes também
próxima da "pureza" do velho
capitalismo industrial. Deveria
originar-se -portanto- de uma
sociedade em que a exclusão fosse
secundária, e não uma condição
necessária, para um capitalismo
alicerçado sobre a acumulação
sem trabalho.
10. Por isso os "sem" (terra, teto, identidade, emprego, respeito
pela sua especificidade etc.) expressam os conflitos que indicam
um novo vínculo entre a democracia e a igualdade. Mas, para que
seus movimentos estimulem uma
utopia generosa, devem demonstrar que são capazes de sair da sua
"imediatidade" corporativa para
propor ações e políticas públicas
que os coloquem ao lado do mundo do trabalho incluído. Aqui entra o papel político do novo partido moderno do socialismo.
11. Na verdade, o movimento revolucionário marxista que foi hegemônico tinha como pressuposto uma identidade especial com
Kelsen: a visão de que "o valor da
liberdade e não o da igualdade (era
o) que determina(va), em primeiro lugar, a idéia de democracia"
(3). Hoje, porém, fica claro que liberdade e igualdade fundem-se
numa só possibilidade: a igualdade e a liberdade só podem ser iniciadas como inclusão; e a inclusão, como momento inicial da
igualdade, é, paralelamente, condição para o exercício da democracia.
12. O exercício da democracia,
por seu turno, só pode se configurar pela socialização das liberdades formais. Seu elenco é basicamente inatingível para a imensa
massa de excluídos e semi-incluídos: direito político como direito
de escolha livre; acesso à Justiça; à
informação; livre acesso à "propriedade" (orientação) da sua vida cotidiana; acesso ao direito à
educação. O contingente que
compõe a sociedade moderna imperfeita (os excluídos, os semi-incluídos, precários, imigrantes e
todos os pobres produzidos pela
sociedade do consumismo predatório) são os novos sujeitos da revolução democrática. O seu acesso
à democracia torna-se um repto
radical à degradação da democracia. A igualdade concreta mínima,
que é inclusão, é a condição real
da liberdade e, ao mesmo tempo,
salto para a democratização subversiva do Estado.
13. Tudo parte do reconhecimento de que o capital que dá concretude ao capitalismo globalizado pelo dinheiro artificial só pode
se realizar liquidando o que resta
do liberalismo e da democracia, o
que significa tendencialmente
perpetuar a exclusão, em maior ou
menor grau. Esse processo gigantesco e global, assim como a manipulação dos valores da modernidade pela "mídia", reproduz-se
com a cumplicidade entre consumidores (incluídos) e fornecedores (donos da informação e da
produção de bens). É uma cumplicidade fundamental para que a exclusão seja considerada socialmente como "natural" e, ao mesmo tempo, afirmada pela propaganda como "transitória".
14. A essência do liberalismo vista como "relação indissociável
entre propriedade e liberdade"
(4) exacerbou-se ao limite: a acumulação sem trabalho, no capitalismo do ultraliberalismo, só gera
autoritarismo -pelos monopólios- e manipulação; logo, "a
mera liberdade" e a "simples
propriedade", mesmo dos meios
de produção, desde que não-monopolistas, não têm mais nenhuma identidade. A relação indissociável entre propriedade e liberdade perverteu-se na identidade entre capital financeiro (capital desvinculado dos processos de produção) e dominação manipulatória (que automatiza e aliena as liberdades).
15. Os processos sociais concretos agora fundiram liberdade e
igualdade. Essa fusão tem reflexos
na política, pois só o reconhecimento pleno da identidade entre
liberdade e igualdade pode mobilizar os cidadãos para controlar o
aparato gerador de condições
"mais iguais": o Estado. A consequência política é que a opção entre "revolução" e "reforma"
passa a ser puramente formal. Por
quê? Porque a opção, seja pela
"reforma" ou pela "revolução",
vai se deparar com uma questão
preliminar intransponível, que
obriga a unificação de ambas as
opções (talvez para dividi-las num
outro momento): a necessidade da
defesa da real socialização do trabalho como alicerce para a inclusão, numa sociedade "conscientemente orientada".
16. Uma sociedade "conscientemente orientada" só pode ser
uma sociedade radicalmente democrática, com um Estado sob
seu controle e independente da regulação do capital financeiro. A
evolução do capitalismo, seu estreitamento político e sua incapacidade para promover a coesão social, torna-o incompatível com a
democracia. As liberdades formais
manipuladas são meras "expectativas" de liberdades que, na verdade, negam a democracia: a porta de entrada da democracia renovada, não-manipulatória, passa a
ser a igualdade, que hoje tem o nome "insuportável" de inclusão. É
o encontro vital de um projeto socialista com uma estratégia democrática.
Notas:
1. Mészáros, István. "Marxismos-Política-Moralidade". In: revista "Práxis", nº 3, Belo Horizonte, março de 1995, pág. 97;
2. Bauman, Zygmunt. "La Izquierda como Contracultura de la Modernidad". In: "Cuadernos La Invención y la Herencia", nº 4, "La Izquierda ante
el Fin de Milenio", Santiago (Chile): Ediciones LOM y Universidad Arcis, pág. 40;
3. Della Volpe, Galvano. "Crítica da Ideologia
Contemporânea", Lisboa, Editorial Estampa, 1974, pág. 109;
4. Gruppi, Luciano. "Tudo Começou com Maquiavel", in "Oitenta", Porto Alegre, L&PM Editores, vol. 3, outono de 1980, pág. 160.
Tarso Genro é advogado, foi prefeito de Porto
Alegre (RS) de 93 a 96 e deputado federal de 89
a 90. É membro do Diretório Nacional do PT e
autor de "Na Contramão da Pré-História" e "Utopia Possível".
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