São Paulo, Domingo, 21 de Fevereiro de 1999
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Nem o liberalismo nem o socialismo devem ser descartados na constituição de um próximo modelo de democracia
A nova centro-esquerda

Reuters - 5.jun.98
Estudante vienense exibe garrafas de cerveja com caricaturas de gerhard Schroeder (esq) e Oskar Lafontaine, ministro alemão das finanças


LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA
especial para a Folha

Desde a derrota do nazismo, não existe espaço para a extrema-direita e, desde a queda do Muro de Berlim, o socialismo de Estado e a extrema-esquerda, que com ele se associou, embora estivessem tão distantes, perderam a razão de ser. Mas os conceitos de esquerda e direita, para definir governos mais progressistas ou mais conservadores, de centro-esquerda ou de centro-direita, continuam essenciais para o debate político.
Podemos definir esquerda e direita de diversas formas: como dar ou não dar prioridade à igualdade, nos termos de Bobbio; como o Estado estar aliado às forças econômicas ou às forças sociais, segundo Touraine; ou como a disposição ou não de arriscar a ordem em nome da igualdade, conforme minha proposta.
Não vou aqui discutir as três definições, que são abstratas e equivalentes. Vou partir delas para discutir o que é a nova centro-esquerda, que vem também sendo chamada de nova esquerda, de centro-esquerda moderna, de Terceira Via, de social-liberalismo, de social-democracia moderna, de social-democracia "dois e meio" (situada à esquerda da Terceira Via inglesa, segundo os franceses) etc. Pode-se falar em uma nova centro-esquerda moderna? Como distingui-la da nova centro-direita? E da nova direita ou direita neoliberal? E qual a diferença desses conceitos nos países latino-americanos em relação aos países europeus?
Começo adiantando minha resposta à última questão. A diferença está no fato de que o espectro deve se deslocar um grau para o passado no nosso caso. A nova social-democracia européia continua a ter como base política os trabalhadores sindicalizados e a burocracia e ainda se caracteriza pela negociação corporativa entre a classe capitalista e a trabalhadora, com a intermediação do Estado e pela ação compensatória do Estado em relação à distribuição de renda, mas deixou de pensar nele como produtor de bens e serviços e executor direto das políticas sociais, enquanto a centro-esquerda no Brasil com frequência confunde socialismo com estatismo e adota um corporativismo burocrático militante.
Na verdade, mesmo dentro da Europa, desde que nos lembremos de que os conceitos de esquerda e direita são relativos a um centro que se move ora para a direita, ora para a esquerda, não é possível avaliar os diversos regimes pelos mesmos parâmetros. Na Inglaterra, Blair e o Novo Trabalhismo são esquerda em relação à direita thatcherista, mas o Novo Trabalhismo está à direita das social-democracias francesa ou alemã atuais, da mesma forma que os conservadores ingleses estão claramente à direita dos seus correspondentes na França e na Alemanha. Em outras palavras, se pensarmos em um contínuo, o centro está mais à direita na Inglaterra do que na França ou na Alemanha, e está mais à direita dos centros brasileiro ou latino-americano.
Nas democracias modernas a luta é sempre pelo centro. Por isso os partidos tanto de esquerda quanto de direita tendem para o centro: aquele que consegue os votos do centro, que está sempre se movendo para um lado ou para o outro, ganha o governo. Por isso não existe uma grande diferença entre os partidos de centro-esquerda e de centro-direita e as alternâncias de poder, essenciais para a democracia, não são traumáticas. Mas isso não significa que não haja diferenças. Posso ver hoje, além das duas extremas, uma esquerda, uma centro-esquerda, uma centro-direita e uma direita.
Mas será possível definir essas tendências? Muito sumariamente, a velha direita, além de priorizar a ordem estabelecida em qualquer circunstância, é nacionalista e tradicionalista, enquanto a nova direita é inovadora e pró-mercado (quando neoliberal, radicalmente pró-mercado). Já a velha esquerda é corporativista e estatista, enquanto a nova esquerda é pró-mercado, mas quer reconstruir o Estado para que este possa compensar as falhas do mercado.
Para ser mais específico, entretanto, proponho comparar apenas três tendências ideológicas: a velha centro-esquerda, a nova centro-esquerda e a nova centro-direita, conforme fez Anthony Giddens recentemente. Não terei, entretanto, como referência a Grã-Bretanha ou a Europa, mas o Brasil ou a América Latina. E os critérios que usarei serão diversos, à medida que o centro está mais para a direita e é menos clientelista nos países desenvolvidos. As diferenças estão resumidas na tabela nesta página. Vamos examiná-las uma a uma, de forma breve.

Controle de classe
A esquerda, no século 20, sempre pretendeu falar em nome dos trabalhadores. Em parte conseguiu. Mas sua base social mais importante e praticamente todas as suas lideranças vieram da classe média burocrática emergente. A forma extrema desse fenômeno ocorreu na ex-União Soviética, mas em toda parte, tanto nos países centrais, onde se desenvolveu o Estado do Bem-Estar Social, como nos países em desenvolvimento, onde tivemos o Estado desenvolvimentista, o modelo geral de Estado que engloba os três foi o do Estado social-burocrático.
Na verdade, a burocracia expandiu-se de forma extraordinária neste século, tornou-se complexa e dividida, ao mesmo tempo em que assumia crescentemente o comando das organizações públicas e privadas. Esse fato a tornou onipresente e diluiu as relações de classe, já que a divisão que caracteriza internamente a burocracia é a das camadas e estratos. Dificulta as identificações de classe, mas não as anula. A nova esquerda é também constituída principalmente pela burocracia, mas tem ainda identidade suficiente para reconhecer-se a si mesma como tal e para partilhar de forma mais explícita o poder com a classe capitalista, ao mesmo tempo em que procura ver os trabalhadores como parceiros e competidores, em vez de afirmar que está falando em seu nome, como pretende a velha esquerda. Os quadros da nova direita são também principalmente originados da classe média burocrática, mas sua aliança e subordinação ideológica à burguesia é seu traço característico.

Papel do Estado
Para a nova esquerda o Estado deixa de desempenhar o papel principal na coordenação da economia, papel que a velha esquerda sempre lhe atribuiu, e reconhece que essa função cabe ao mercado. Por isso afirma que um dos papéis essenciais do Estado é assegurar a competição, que as empresas professam como valor, mas não praticam sempre que podem. Ao mesmo tempo, afirma as limitações do mercado, não apenas na distribuição de renda: também na alocação de recursos, na garantia da estabilidade da economia e na promoção do desenvolvimento. Nesse sentido, o Estado não tem um papel secundário o menor possível como quer a nova direita, mas um papel complementar e estratégico em relação ao mercado no plano econômico e um papel central na regulação mais geral da sociedade e do próprio mercado.

Reforma do Estado
Enquanto a reforma do Estado faz pouco sentido para a velha esquerda, que vê nessa expressão apenas uma ameaça, e para a nova direita tem o sentido de reduzir o tamanho do Estado, de "downsizing", para a nova esquerda reformar o Estado significa basicamente três coisas: a) reconstruí-lo -já que ele foi vítima de uma captura generalizada por capitalistas e burocratas-, dotando-o de um núcleo estratégico com capacidade de decisão, recuperando suas finanças e implantando uma administração pública gerencial, em vez de burocrática; b) delimitar seu papel, transferindo para o setor privado as empresas e para o setor público não-estatal seus serviços sociais, de forma a aumentar a competição; e c) aprofundar a democracia, fortalecendo as instituições democráticas não apenas da democracia representativa, mas também as da democracia direta, como o referendo e os mecanismos de controle social, ao mesmo tempo em que se promove a democratização da própria sociedade civil em que o regime democrático está apoiado.
Uma preocupação fundamental da nova esquerda é combater a captura do Estado, sua privatização por interesses particulares, o "rent-seeking", por parte da burocracia, como ocorre com frequência com a velha esquerda, ou por parte da classe capitalista, como é facilitado quando a direita está no poder, especialmente a velha esquerda. Na reforma do Estado o objetivo de garantir o direito do cidadão de que os bens públicos não sejam capturados privadamente é tão importante quanto o de tornar o Estado mais eficaz e eficiente, e mais democrático.

Serviços sociais
A velha esquerda, que, da mesma forma que a nova, defende o direito universal à educação básica e à saúde, sempre supôs que isso significava o fornecimento direto, pelo próprio Estado, desses serviços. A nova esquerda, mantendo a gratuidade deles, faz duas modificações: primeiro, vai aos poucos transferindo-os para o setor público não-estatal; segundo, passa a controlá-los pelo lado da demanda, dando maior liberdade aos cidadãos para escolher o hospital ou a escola, e, assim, os torna competitivos entre si.
A nova direita adota a mesma estratégia administrativa, mas apenas como "segundo melhor" ("second best"). Seu "primeiro melhor" é privatizar esses serviços e deixar por conta das famílias (que teriam salários mais altos devido à diminuição dos impostos) seu pagamento. A nova esquerda recusa essa alternativa porque sabe que o mercado não beneficia os mais pobres, que o são exatamente porque sua oferta de mão-de-obra é maior do que sua procura no mercado, resultando daí salários muito baixos. É isso que o Estado deve compensar. E porque sabe que o desenvolvimento depende do capital humano, e capital humano é principalmente educação e saúde. Gastar bem em saúde e educação por meio de organizações públicas não-estatais competitivas é investir para o futuro.

Previdência Social
A velha esquerda pensa sempre em uma Previdência Social estatal, administrada e garantida pelo Estado. Senão para todos, pelo menos para os servidores públicos. A nova direita quer privatizar todo o sistema, como ocorreu no Chile. A nova esquerda recusa o modelo chileno, que estabelece um risco inaceitável para os mais pobres e para o Estado, que poderá ser obrigado a socorrer a previdência privada, e defende uma previdência básica estatal, que funciona como um tipo de renda mínima, e uma previdência complementar estatal.
Já que a previdência básica deve permanecer estatal, já que representa uma garantia ou um último recurso para impedir a miséria dos idosos, deve continuar a ser financiada por um sistema de repartição: o Estado não é competente para gerir um sistema de capitalização nem seus contribuintes estão dispostos (ou têm condições mínimas) para aceitar uma redução das pensões no caso de o fundo ser mal gerido. Quando a nova direita se dá conta de que o modelo chileno é muito perigoso, aceita a idéia de uma previdência básica estatal, mas quer reduzir o seu nível (medido geralmente em termos de salários mínimos) ao mínimo possível.

Política econômica
A velha esquerda, quando desiste da revolução e passa a se preocupar com a política econômica, pretende-se sempre keynesiana, mas na prática tende a comprometer-se, em diversos graus, com o populismo econômico. Ele, entretanto, está longe de ser exclusividade da esquerda. Os episódios de populismo econômico por parte de uma direita tradicional são incontáveis. Já a nova direita é neoclássica, a favor da total abertura dos mercados e de uma política macroeconômica monetarista, que geralmente descamba em juros altos.
Já a nova esquerda propõe duas coisas fundamentais: regular os mercados, reduzindo suas distorções, e realizar uma política macroeconômica flexível, que saiba quando é a hora de diminuir e a de aumentar as despesas (ou diminuir os impostos), de desvalorizar ou de permitir a valorização do câmbio, de elevar os juros ou preferivelmente baixá-los. A inflação é para a nova esquerda um mal maior, mas quando a inflação está em nível muito baixo pode ser considerada uma "trade-off" entre maior inflação e uma diminuição do desemprego, devendo essa permuta ser considerada caso a caso, em vez de recusada com dogmatismo.

Globalização
Para a velha esquerda a globalização é uma ameaça. É quase uma conspiração das empresas multinacionais ou dos países desenvolvidos. É a ideologia do mercado mundial e da perda inevitável de autonomia dos Estados nacionais. Para a nova direita a globalização é uma oportunidade de inserção no mercado internacional e de contar com a poupança internacional para financiar o desenvolvimento interno.
Para a nova esquerda a globalização é um fato e um desafio, que a leva não a recusar a competição e se fechar dentro de suas fronteiras, como quer a velha esquerda, mas a buscar tornar sua economia nacional competitiva internacionalmente; não a considerar a perda de autonomia do Estado inevitável, mas a fortalecê-lo fiscal, administrativa e politicamente, para que ele possa compensar as distorções provocadas por um mercado mundial e por uma volatilidade extraordinária dos fluxos financeiros e a procurar controlar e taxar os fluxos especulativos de capital (imposto Tobin, cuja adoção o presidente Fernando Henrique Cardoso propôs recentemente de maneira formal), em vez de dirigir invectivas contra o fenômeno, como faz a velha esquerda, ou considerá-lo benfazejo, como quer a nova direita.
Em conclusão, existe, portanto, uma centro-esquerda moderna, uma nova esquerda, que não se confunde com a velha esquerda burocrática e corporativista nem com a nova direita radical e subordinada ao capital.
Existe uma centro-esquerda que sabe que o único sistema econômico possível hoje é o capitalista. Portanto precisa administrar o capitalismo melhor do que os capitalistas. Precisa administrá-lo de forma não apenas mais justa: também mais eficiente.
Para isso não conta com fórmulas mágicas, nem sequer óbvias. E sua diferença com a centro-direita não é muito grande, já que os partidos de uma e outra tendência têm sempre que disputar o centro e, para isto, caminhar respectivamente para a direita, se estiverem à esquerda, e para a esquerda, se à direita.
Além disso, ainda que possamos adotar definições abstratas e gerais de esquerda e direita, não podemos, nos casos concretos, adotar um padrão de centro-esquerda (ou de centro-direita) único com o qual medir todos os casos. Na verdade, o centro é móvel e varia de país para país: secularmente tem caminhado para a esquerda, mas muitas vezes oscila para a direita, como aconteceu com a onda neoliberal, que só recentemente perdeu força.
A mudança do pêndulo ideológico vem ocorrendo no transcorrer desta década. Ela abre perspectivas extraordinárias para a nova esquerda, especialmente se ela for capaz de unir forças, organizar melhor seu discurso, demonstrar que é capaz de governar com responsabilidade, garantindo o investimento privado, o financiamento externo quando necessário e o investimento do Estado em capital humano para que haja desenvolvimento, ao mesmo tempo em que se preocupa com a eliminação da fome e da exclusão social, que são realidades muito presentes na periferia do centro capitalista, e combate com todas as forças a apropriação privada do Estado por capitalistas e burocratas.
Essa nova centro-esquerda pode receber diversos nomes. Eu tenho preferido chamá-la de nova centro-esquerda, de social-democracia moderna ou de esquerda social-liberal, ainda que esta última expressão também agrade a representantes da nova direita, a qual, no entanto, é mais liberal do que social. Nova centro-esquerda, porque a velha centro-esquerda era estatista e paternalista, enquanto a nova centro-esquerda, ainda que queira reconstruir o Estado, atribui ao mercado e ao indivíduo papéis mais relevantes; social-democracia moderna, porque a social-democracia clássica era burocrática, enquanto a moderna faz a crítica da burocracia; esquerda social-liberal, porque, ao contrário da tese da velha esquerda estatista, o liberalismo não é o inimigo: representa um avanço na história da humanidade que precisa ser preservado.
Foi por meio dele que os direitos civis e os direitos políticos foram conquistados. Como também o socialismo não pode ser descartado nem identificado com o estatismo, mas visto como a ideologia e o movimento político democrático que garantiram os direitos sociais. Por isso, como aos direitos civis e políticos foi preciso adicionar os direitos sociais, ao liberalismo é necessário adicionar o socialismo e propor que a ideologia da nova centro-esquerda seja a do social-liberalismo ou de uma social-democracia moderna.
Por isso a nova esquerda não pode ser apenas social, mas deve ser social-liberal: comprometida com a igualdade econômica possível, que é muito maior do que geralmente se admite na América Latina, consciente da necessidade de reconstruir o Estado para compensar as distorções do mercado, mas decidida a proteger e promover a competição no mercado, uma competição que, se for combinada com a busca da solidariedade, estimula a iniciativa e a eficiência das ações econômicas sem prejuízo de uma maior justiça social.


Luiz Carlos Bresser Pereira é ministro da Ciência e Tecnologia e professor de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP). Foi ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado (governo FHC) e da Fazenda (governo Sarney). O texto acima é uma versão de um texto maior.



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