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BRASIL 500 D.C.
A violência se tornou um modo banal de levar ao extremo o jargão "tudo é mercadoria"
Estratégia de avestruz
JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folh
Na avenida, o Carnaval acabou;
na vida, a dança macabra continua: crianças assassinando crianças; calouro de medicina morto
por afogamento em um trote;
mendigos incendiados e mortos a
tiros; garçom de botequim assassinado por um cliente que devia R$
3,50 de um lanche; passageiros de
automóveis assassinados dentro
de túneis ou em estradas bloqueadas por bandidos; policiais suspeitos de matar três adolescentes;
ambulantes mortos por terem denunciado a extorsão de policiais e
parlamentares; família de policial
chacinada por traficantes etc.
Adeus, terra das palmeiras onde
cantam sabiás! O que aconteceu
conosco? Como ocorreu essa medonha mutação?
É fácil culpar a impunidade por
esse estado de coisas. Não teríamos cadeias, mesmo que quiséssemos, para tantos crimes. A coisa é
mais séria. Basta ver o que acontece quando governantes decidem
enfrentar os criminosos, como no
caso do Rio. Justamente porque o
governador Anthony Garotinho
-pelo menos, até agora- vem
mostrando firmeza no combate ao
banditismo, nossa indigência social aparece sem disfarces.
Tudo parecia simples quando
nada era feito. As boas consciências podiam, então, se queixar de
omissão das autoridades. Pois
bem, a autoridade chegou e o resultado é "Chicago anos 30" em
todos os bairros da zona sul. Mães
debruçadas sobre bebês, para defendê-los de balas; vitrines espatifadas; crianças apavoradas; pessoas mais velhas feridas nas correrias, em suma, pânico nas ruas! Eis
o saldo da tentativa de eliminar,
pela força, o resíduo social produzido por "meios legais e pacíficos". Conclusão: ou nos aliamos
ao crime ou, em breve, estaremos
treinando "como deitar no chão
em meio minuto", antes, durante
ou depois do expediente. A menos, é óbvio, que abandonemos a
estratégia de avestruz para tentar
reparar, enquanto é tempo, nossos aleijões sociais.
Estamos vivendo um pesadelo e
continuamos a falar em câmbio,
bolsa e juros como se fôssemos turistas em um mercado de escravos
do século 19. Precisaríamos de dezenas de Castro Alves, Joaquim
Nabuco ou Raul Pompéia para nos
convencer do que é evidente: se essa crise foi econômica, há muito
deixou de ser só econômica ou
principalmente econômica. O que
está em jogo é o desmoronamento
de um estilo de vida que sucumbiu
à pressão imoral da cultura da ganância.
Como mostrou Bruno Latour,
recentemente, na Folha, a ficção
ideológica da "sociedade como
cópia do mercado" vem se revelando tão autoritária e insensata
quanto as ficções políticas do nazismo e dos comunismos. A demência de um mundo em que as
225 pessoas mais ricas detêm, segundo relatório da ONU, a mesma
renda anual dos 2,5 bilhões de pessoas mais pobres só não é visível
para os cínicos ou os que perderam o sentido do que é viver em
comunidade humana. Nem na
França do Antigo Regime, onde
4.000 aristocratas parasitavam a
nação, existiu tal concentração de
privilégio e de poder.
O capitalismo, historicamente,
se justificou enquanto soube conviver com os ideais de liberdade da
república e distribuir, de modo
mais equitativo, as riquezas materiais. Essa era a superioridade moral das democracias capitalistas
ocidentais diante dos regimes comunistas ou ditatoriais dos países
periféricos. Em 20 ou 30 anos, tudo isso foi por água abaixo. A lógica delirante do lucro perdeu o
freio e a vergonha histórica.
No Brasil, em particular, falar
em direito à saúde, educação, moradia, emprego e amparo na doença ou invalidez passou a ser ridicularizado como arcaísmo de mentes
estúpidas e atrasadas. Cidadãos
aposentados se tornaram "velhos
improdutivos"; crianças de ruas
se tornaram pivetes; trabalhadores
rurais sem terra se tornaram "invasores" e trabalhadores urbanos
sem emprego, "grevistas arruaceiros" que não entendem as "dificuldades terríveis" de banqueiros e especuladores globais. Em
suma, às favas com a lengalenga
de solidariedade, justiça e respeito
ao próximo: quem tem, tudo bem,
quem não tem passe bem!
É essa a cozinha em que se fabrica a violência. Para que virtude cívica, se a recompensa são as filas
nos postos do INSS, dos hospitais-abatedouros ou de escolas
sem vaga, convertidas, muitas vezes, em covil de traficantes? Para
que virtudes privadas, se quem
goza de admiração pública são os
frequentadores do "bordel de elites taradas" em que se transformou a cultura de massas no Brasil,
como bem disse Gilberto Vasconcellos?
Quais são nossos heróis culturais? O artista de talento, o cientista de valor, o indivíduo trabalhador? Ou o mais recente apresentador de televisão, que ganha fortunas exibindo deformidades físicas
ou "divertidas perversõezinhas",
feitas de encomenda para excitar o
moralismo tacanho dos que renunciaram a pensar com a as próprias cabeças? Quem vale mais,
neste país: o indivíduo honesto ou
o corrupto incensado nas festas
perdulárias e nas revistas de celebridades? Quem é, de fato, socialmente premiado: o empresário, o
trabalhador ou o especulador e o
"esperto" traficante de influência
e de informações privilegiadas no
mercado?
A violência de hoje não se baseia,
apenas, no ódio ao diferente ou na
intolerância para com os desviantes. Ela se tornou uma forma corriqueira de levar ao extremo as
consequências do jargão leviano
"tudo é mercadoria". Em poucas
palavras, se o dinheiro é a medida
do homem, ou dinheiro no bolso
ou cadáver no fosso! Depois de
anos e anos de desmoralização do
valor da pessoa humana, gente,
"aranhas ou visigodos", tudo é
nivelado por baixo. Elite e ralé não
mais se distinguem, e o efeito está
aí: mata-se por R$ 3,00; morre-se
por coisa alguma. Vidas sem rumo, mortos sem causa.
Esse "terror branco", da cor do
dinheiro, é pior, em certa medida,
do que os regimes de terror conhecidos, pois seus mentores querem
nos convencer de que a vítima é
culpada por não compreender as
"nobres" razões que a levam à
forca! Por que a ideologia do lucro
é mais limpa e imaculada do que a
ideologia dos fanáticos defensores
da "raça" ou do "povo"? Por
que se calar diante dos assassinatos em massa que vêm acontecendo no Brasil? Assim como aprendemos que vida se respeita, também desaprendemos a respeitar
vidas que não têm cadastros especiais em bancos. É só uma questão
de tempo e hábito.
Philip Dick, na ficção futurística
"Loteria Solar" descreve um
mundo sombrio onde o jogo substitui a moral, a ação humana se
curva às estatísticas e o que resta é
"apostar em uma boa chance".
Felizmente, ainda não estamos lá.
Mas, ou viramos o leme do barco
ou tudo será muito mais difícil de
resolver. Retórica vazia? Vamos
aos fatos. Em três dias de Carnaval
foram consumidas 840 garrafas de
champanhe francês e 900 garrafas
de uísque em um camarote da
Marquês de Sapucaí. No mesmo
período, 450 pessoas morreram
no país, na mesma "animada"
festa. Façam as contas e decidam
qual a moral da história.
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e
autor de "A Clínica do Social" (Escuta).
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