São Paulo, Domingo, 21 de Março de 1999
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JLG por JLG


Leia a seguir declarações de Godard ao jornal "Libération" por ocasião do lançamento de "História(s) do Cinema".

Mundo digital - Moisés disse: "Tu não farás imagem". Seria melhor se nada tivesse dito. A partir do momento em que dizemos às crianças: "Você não fará isso", pode ter certeza de que elas vão correndo fazer. Foi o que a Igreja pretendeu, ao colocar a interdição antes da permissão. Estamos no fim de tudo isso. Passamos às máquinas, aos robôs. Os clássicos da ficção científica já descreveram os próximos 20 mil anos. O computador é feito para que possamos enviar 120 programas hindus ao mesmo tempo, ao passo que, quando colocamos 120 pobres hindus em um trem, eles vão comprimidos. Os deportados, os comprimidos. Será que consegui comprimir bem a imagem de uma mulher? A palavra não é escolhida ao acaso, existe na farmácia: comprimidos. Descomprimidos, os hindus saem do avião quase mortos. Foram colocados 120, mas nem as vacas teriam suportado tanto. Os programas são assim. Estimula-se a qualidade antes, para que ela possa, após todas as degradações pelas quais passará, chegar ao mesmo ponto de partida."

Romance - "Durante muito tempo, antes do cinema, tentei escrever um romance. Notei que não seria capaz, porque não ultrapassava a primeira frase. Pensava: mas por que exatamente essa? Comecei assim: "O céu está escuro". Mas, depois, tudo também está escuro? O cinema me ajudou, dizendo: você coloca a câmera lá; ela dirá se está escuro ou não, e depois você continuará."

Renúncia - "Se se faz um bom filme, deve-se a tudo renunciar; os filmes medíocres são aqueles que não renunciaram a quase nada. Renunciar a tudo, eis a obrigação do cinema. Você escolhe Sharon Stone para fazer o seu filme, mas lhe enviarão Julie Benazaref, e você se vira."
Nunca convidado - "Rohmer, creio, é a última pessoa de cinema que eu conhecia que me convidou para jantar, porque muita gente vem na minha casa. Eles vêm comer, filmar na minha casa, eles sabem de tudo: onde fica o banheiro, onde guardamos as roupas de cama, tudo. Ninguém jamais me convidou para ir em sua casa, ninguém."

Família - "Rompi com minha família após tê-la explorado ao máximo, até o dia em que me colocaram num reformatório, já que eu roubava. Diziam-me: "Mas é uma vergonha. Você não rouba nem mesmo os outros, mas a nós"."

Truffaut - "O grande problema com ele é que, pouco a pouco, descobri que não gostava tanto assim de seus filmes e mentia ao dizer que os apreciava. Gostava mesmo era da sua disposição no mundo do cinema, e não via muito a diferença. Gostava, mas achava que ele não deveria ter feito filmes. E ,quando você diz aos escritores que eles não deveriam escrever, eles levam a mal..."

Biógrafos - "Os biógrafos fazem sempre uma enormidade de textos e depois um pequeno caderno, em geral de fotos acinzentadas, em que vemos o autor, depois sua mamãe, depois o papai e em seguida sua primeira turma de escola. Elas não servem senão para lembrar que se trata provavelmente da mesma pessoa e que essa pessoa existiu. Porque, se temos unicamente o livro de Laure Adler, ficaremos em dúvida se essa senhora que se chama Marguerite Duras realmente existiu."

Microondas - "Os cientistas fazem clones se têm vontade; eles fazem bomba atômica se têm vontade; eles podem fazer fornos de microondas que transmitam imagens, já que o que se vê é mesmo só televisão, e isso acontecerá algum dia. Muito bem: se eu puder ver Griffith pelo microondas, comprarei um."


Tradução de Leonardo Babo.



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