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+ filosofia
Logo após chegar aos EUA, em 1938, o autor de "Minima Moralia" sofreu
o primeiro choque com a indústria cultural ao tentar aplicar, sem sucesso,
sua teoria da regressão da audição a uma pesquisa sobre a música no rádio
Adorno em Nova York
Iray Carone
especial para a Folha
A vida de Adorno em Nova York,
de 1938 até 1941, embora seja
uma passagem pouco lembrada
pelos seus estudiosos, é um pedaço importante de seu longo exílio nos
Estados Unidos que não apenas mostra
as dificuldades de contato com a cultura
norte-americana, mas também o confronto direto com a indústria cultural.
Na verdade, Adorno foi a Nova York
para trabalhar num projeto financiado
pela Fundação Rockefeller, conhecido
como "The Princeton Radio Research
Project", sob a direção de um outro emigrado europeu, Paul Felix Lazarsfeld. O
contrato de Adorno foi obtido pela mediação de Lazarsfeld na fundação, com
uma grande verba para realizar pesquisas sobre a música (clássica, semiclássica
e popular) no rádio, que ocupava uns
60% da programação das emissoras.
Deixou a Europa, acompanhado de
sua mulher, em 16 de fevereiro de 1938, a
bordo do Champlain. Em março de 1938,
já estava morando num apartamento situado na rua Cristopher, nš 45, lado oeste
do Greenwich Village, alimentando a esperança de trazer Walter Benjamin para
os Estados Unidos, através do Instituto
de Pesquisa Social.
Para animá-lo a dar esse grande passo,
comparava sedutoramente a Sétima
Avenida ao bulevar Montparnasse e o
Greenwich Village, ao Mont St. Geneviève. Ao contrário de suas expectativas,
diz, numa carta do mesmo mês, que não
foi tão difícil se acomodar à nova situação, pois "ela é, sérieusement, muito
mais européia aqui do que em Londres".
Cervejaria abandonada
Nas suas memórias, Lazarsfeld relatou que tinha
conhecimento dos trabalhos de Adorno
publicados na Alemanha a respeito do
papel "contraditório" da música na sociedade. Considerava ser um grande desafio tentar unir as análises teóricas de
Adorno com a pesquisa empírica, ou seja, combinar a sociologia crítica da música com os métodos positivistas da sociologia norte-americana. Ao que tudo indica, pensava que a dialética deixaria de ser
hegeliano-especulativa e se tornaria materialista se fosse articulada com a pesquisa empírica "sociográfica".
Desde 1934, por meio de inúmeras negociações com o reitor Nicholas Murray
Butler, o Instituto de Pesquisa Social da
Escola de Frankfurt conseguira se estabelecer na Universidade Columbia, num
belo prédio situado na rua 117, lado oeste
de Nova York, conhecido como "Morningside Heights".
Sob a direção de Max Horkheimer, o
instituto havia dado suporte financeiro a
Lazarsfeld quando ele começara a desenvolver um centro de pesquisas metodológicas na Universidade de Newark, Nova Jersey. Talvez tenha havido uma troca
de favores, pois Lazarsfeld sabia que
Horkheimer desejava trazer Adorno para os Estados Unidos.
Com um contrato de tempo parcial,
Adorno começou a trabalhar no Office of
Radio Research [Departamento de Pesquisa em Rádio", sob a direção de Lazarsfeld, em Nova Jersey. A outra metade
do tempo foi reservada para as atividades do Instituto de Pesquisa Social, na
Columbia. As impressões iniciais de
Adorno, no contato com o centro de pesquisas de Lazarsfeld, não foram lá muito
boas, como ele próprio nos conta em
"Experiências Científicas nos Estados
Unidos": "O "Princeton Radio Research
Project" não tinha seu centro nem em
Princeton nem em Nova York, mas sim
em Newark, Nova Jersey; provisoriamente, funcionava em uma cervejaria
abandonada. Quando viajei para lá, através do túnel do Hudson, senti-me um
pouco como no "Naturtheater" kafkiano
de Oklahoma".
Ele bem poderia ter aqui acrescentado
que a atmosfera parisiense, referida nas
cartas a Benjamin, tinha desaparecido
por completo durante a travessia do rio
Hudson. Mas os problemas mal tinham
começado a aparecer: rebentou uma
guerra de nervos, uma série ininterrupta
de choques com a equipe de pesquisa,
com Lazarsfeld, com a financiadora do
projeto, com os donos de emissoras,
com os professores de música etc.
Resíduos desses combates diários estão nos próprios textos arquivados da
Columbia: no memorando "Music in
Radio", de 26 de junho de 1938, Adorno
tentou explicar nas suas 161 páginas por
que não se deveria iniciar uma pesquisa
sobre a música no rádio pela coleta de
dados da audiência, com os "likes and
dislikes" do ouvinte, mas sim com aquilo
que, em última análise, poderia estar
condicionando o seu modo de ouvir.
Trechos melódicos
Ou seja, a proposta original do projeto de Princeton
consistia em ouvir o ouvinte ("listening
to the listener"); Adorno objetava que,
em se tratando de um ouvinte de audição
desconcentrada, desatenta e atomística,
além de ser acrítico, como o próprio correio de fãs das emissoras atestava, era
preciso considerar, em primeiro lugar,
como se produzira essa redução da capacidade de experiência musical das audiências, o "non listening listening" do
rádio. A sua hipótese da regressão da audição, considerada inverificável e teoricamente viesada pelos positivistas de
plantão, estabelecia a relação entre a perda da capacidade auditiva e a história da
fetichização da música pela forma-mercadoria, desde o fim do século 19.
Capturada pela indústria do entretenimento e pelos monopólios que passaram
a explorá-la como "big business", a música foi perdendo a sua autonomia em
relação ao mundo alienado pelo capital,
ou seja, sendo integrada ao processo de
produção de mercadorias, conduzindo
de quebra o ouvinte para o estado de regressão auditiva.
Será que hoje em dia ele é capaz, pergunta Adorno, de experimentar a absorção sinfônica ao ouvir a catedral de sons
de um Beethoven quando reproduzida
em miniatura pelas ondas do rádio na
sua casa? Será que não se limita a ouvir
apenas alguns trechos melódicos (nem
sempre importantes, musicalmente falando) desses "clássicos tão populares"?
Ou será que não está mais condicionado
a responder aos estímulos meramente
sensoriais dos ritmos frenéticos de músicas destituídas de qualidade composicional? Durante quantos minutos o ouvinte
médio consegue manter a concentração
durante a execução de uma composição
musical séria?
Por que ele embarca tão facilmente nas
músicas pré-fabricadas da máquina de
Hollywood, contribuindo para o seu sucesso, independentemente do valor musical? Será que uma canção dos "hit parades" é, de fato, uma canção que se sobressai pelas qualidades musicais ou resulta apenas do sucesso da manipulação
do rádio que a repete durante várias semanas, pelo menos nove vezes ao dia, até
levá-la ao topo da lista das mais vendidas, segundo a técnica de alta pressão do
"plugging"?
Essas perguntas foram o eixo de sua
pesquisa e dos seis artigos escritos (nem
sempre publicados) sobre a música popular, a sinfonia no rádio, um programa
de educação musical da NBC, o "plugging" do rádio etc.
Final da história: em 26 de outubro de
1939, num seminário do qual participaram os donos de emissoras de rádio, o
representante da Fundação Rockefeller,
John Marshall, e especialistas da área da
comunicação, Adorno tentou, mais uma
vez, tornar aceitáveis as suas teses sobre a
música no rádio.
Segundo as memórias de Lazarsfeld,
John Marshall achou que o esforço de levar a teoria crítica para o terreno da comunicação tinha sido um fracasso. A
fundação não renovou o contrato na seção de música, pois pretendia captar recursos financeiros dos "broadcasters" a
fim de ampliar e estender o estudo por
mais dois anos, mas as críticas de Adorno ameaçavam arruinar um negócio que
gozava de aceitação das audiências e sobretudo da clientela de anunciantes.
Afinal de contas, a audiência era e continua sendo a principal mercadoria produzida e vendida pelo rádio aos anunciantes comerciais.
Iray Carone é professora aposentada do Instituto
de Psicologia da USP e co-autora de "Psicologia
Social do Racismo" (ed. Vozes, no prelo).
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