São Paulo, domingo, 21 de abril de 2002

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+ filosofia

Logo após chegar aos EUA, em 1938, o autor de "Minima Moralia" sofreu o primeiro choque com a indústria cultural ao tentar aplicar, sem sucesso, sua teoria da regressão da audição a uma pesquisa sobre a música no rádio

Adorno em Nova York

Iray Carone

especial para a Folha

A vida de Adorno em Nova York, de 1938 até 1941, embora seja uma passagem pouco lembrada pelos seus estudiosos, é um pedaço importante de seu longo exílio nos Estados Unidos que não apenas mostra as dificuldades de contato com a cultura norte-americana, mas também o confronto direto com a indústria cultural. Na verdade, Adorno foi a Nova York para trabalhar num projeto financiado pela Fundação Rockefeller, conhecido como "The Princeton Radio Research Project", sob a direção de um outro emigrado europeu, Paul Felix Lazarsfeld. O contrato de Adorno foi obtido pela mediação de Lazarsfeld na fundação, com uma grande verba para realizar pesquisas sobre a música (clássica, semiclássica e popular) no rádio, que ocupava uns 60% da programação das emissoras. Deixou a Europa, acompanhado de sua mulher, em 16 de fevereiro de 1938, a bordo do Champlain. Em março de 1938, já estava morando num apartamento situado na rua Cristopher, nš 45, lado oeste do Greenwich Village, alimentando a esperança de trazer Walter Benjamin para os Estados Unidos, através do Instituto de Pesquisa Social. Para animá-lo a dar esse grande passo, comparava sedutoramente a Sétima Avenida ao bulevar Montparnasse e o Greenwich Village, ao Mont St. Geneviève. Ao contrário de suas expectativas, diz, numa carta do mesmo mês, que não foi tão difícil se acomodar à nova situação, pois "ela é, sérieusement, muito mais européia aqui do que em Londres".

Cervejaria abandonada
Nas suas memórias, Lazarsfeld relatou que tinha conhecimento dos trabalhos de Adorno publicados na Alemanha a respeito do papel "contraditório" da música na sociedade. Considerava ser um grande desafio tentar unir as análises teóricas de Adorno com a pesquisa empírica, ou seja, combinar a sociologia crítica da música com os métodos positivistas da sociologia norte-americana. Ao que tudo indica, pensava que a dialética deixaria de ser hegeliano-especulativa e se tornaria materialista se fosse articulada com a pesquisa empírica "sociográfica". Desde 1934, por meio de inúmeras negociações com o reitor Nicholas Murray Butler, o Instituto de Pesquisa Social da Escola de Frankfurt conseguira se estabelecer na Universidade Columbia, num belo prédio situado na rua 117, lado oeste de Nova York, conhecido como "Morningside Heights". Sob a direção de Max Horkheimer, o instituto havia dado suporte financeiro a Lazarsfeld quando ele começara a desenvolver um centro de pesquisas metodológicas na Universidade de Newark, Nova Jersey. Talvez tenha havido uma troca de favores, pois Lazarsfeld sabia que Horkheimer desejava trazer Adorno para os Estados Unidos. Com um contrato de tempo parcial, Adorno começou a trabalhar no Office of Radio Research [Departamento de Pesquisa em Rádio", sob a direção de Lazarsfeld, em Nova Jersey. A outra metade do tempo foi reservada para as atividades do Instituto de Pesquisa Social, na Columbia. As impressões iniciais de Adorno, no contato com o centro de pesquisas de Lazarsfeld, não foram lá muito boas, como ele próprio nos conta em "Experiências Científicas nos Estados Unidos": "O "Princeton Radio Research Project" não tinha seu centro nem em Princeton nem em Nova York, mas sim em Newark, Nova Jersey; provisoriamente, funcionava em uma cervejaria abandonada. Quando viajei para lá, através do túnel do Hudson, senti-me um pouco como no "Naturtheater" kafkiano de Oklahoma". Ele bem poderia ter aqui acrescentado que a atmosfera parisiense, referida nas cartas a Benjamin, tinha desaparecido por completo durante a travessia do rio Hudson. Mas os problemas mal tinham começado a aparecer: rebentou uma guerra de nervos, uma série ininterrupta de choques com a equipe de pesquisa, com Lazarsfeld, com a financiadora do projeto, com os donos de emissoras, com os professores de música etc. Resíduos desses combates diários estão nos próprios textos arquivados da Columbia: no memorando "Music in Radio", de 26 de junho de 1938, Adorno tentou explicar nas suas 161 páginas por que não se deveria iniciar uma pesquisa sobre a música no rádio pela coleta de dados da audiência, com os "likes and dislikes" do ouvinte, mas sim com aquilo que, em última análise, poderia estar condicionando o seu modo de ouvir.

Trechos melódicos
Ou seja, a proposta original do projeto de Princeton consistia em ouvir o ouvinte ("listening to the listener"); Adorno objetava que, em se tratando de um ouvinte de audição desconcentrada, desatenta e atomística, além de ser acrítico, como o próprio correio de fãs das emissoras atestava, era preciso considerar, em primeiro lugar, como se produzira essa redução da capacidade de experiência musical das audiências, o "non listening listening" do rádio. A sua hipótese da regressão da audição, considerada inverificável e teoricamente viesada pelos positivistas de plantão, estabelecia a relação entre a perda da capacidade auditiva e a história da fetichização da música pela forma-mercadoria, desde o fim do século 19.
Capturada pela indústria do entretenimento e pelos monopólios que passaram a explorá-la como "big business", a música foi perdendo a sua autonomia em relação ao mundo alienado pelo capital, ou seja, sendo integrada ao processo de produção de mercadorias, conduzindo de quebra o ouvinte para o estado de regressão auditiva.
Será que hoje em dia ele é capaz, pergunta Adorno, de experimentar a absorção sinfônica ao ouvir a catedral de sons de um Beethoven quando reproduzida em miniatura pelas ondas do rádio na sua casa? Será que não se limita a ouvir apenas alguns trechos melódicos (nem sempre importantes, musicalmente falando) desses "clássicos tão populares"? Ou será que não está mais condicionado a responder aos estímulos meramente sensoriais dos ritmos frenéticos de músicas destituídas de qualidade composicional? Durante quantos minutos o ouvinte médio consegue manter a concentração durante a execução de uma composição musical séria?
Por que ele embarca tão facilmente nas músicas pré-fabricadas da máquina de Hollywood, contribuindo para o seu sucesso, independentemente do valor musical? Será que uma canção dos "hit parades" é, de fato, uma canção que se sobressai pelas qualidades musicais ou resulta apenas do sucesso da manipulação do rádio que a repete durante várias semanas, pelo menos nove vezes ao dia, até levá-la ao topo da lista das mais vendidas, segundo a técnica de alta pressão do "plugging"?
Essas perguntas foram o eixo de sua pesquisa e dos seis artigos escritos (nem sempre publicados) sobre a música popular, a sinfonia no rádio, um programa de educação musical da NBC, o "plugging" do rádio etc.
Final da história: em 26 de outubro de 1939, num seminário do qual participaram os donos de emissoras de rádio, o representante da Fundação Rockefeller, John Marshall, e especialistas da área da comunicação, Adorno tentou, mais uma vez, tornar aceitáveis as suas teses sobre a música no rádio.
Segundo as memórias de Lazarsfeld, John Marshall achou que o esforço de levar a teoria crítica para o terreno da comunicação tinha sido um fracasso. A fundação não renovou o contrato na seção de música, pois pretendia captar recursos financeiros dos "broadcasters" a fim de ampliar e estender o estudo por mais dois anos, mas as críticas de Adorno ameaçavam arruinar um negócio que gozava de aceitação das audiências e sobretudo da clientela de anunciantes.
Afinal de contas, a audiência era e continua sendo a principal mercadoria produzida e vendida pelo rádio aos anunciantes comerciais.


Iray Carone é professora aposentada do Instituto de Psicologia da USP e co-autora de "Psicologia Social do Racismo" (ed. Vozes, no prelo).


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