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"Maldita Guerra", de Francisco Doratioto, desmistifica a figura do ditador Solano López e o papel que a Grã-Bretanha exerceu no conflito que opôs Brasil, Uruguai e Argentina ao Paraguai no século 19
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Reprodução
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"Depois da Batalha de Curupaiti", de Candido Lopez |
Passado a limpo
Boris Fausto
colunista da Folha
Maldita Guerra" não é apenas
um chamativo título editorial do livro de Francisco
Doratioto sobre a Guerra do
Paraguai. É um desabafo do barão de Cotegipe, prestigioso político conservador
do império, dirigindo-se, em maio de
1866, ao barão de Penedo: "Maldita guerra, atrasa-nos meio século!". Se quase todas as guerras são malditas, a do Paraguai mereceu particularmente esse qualificativo, por ser evitável, pelo número
de mortos na luta ou vítimas das epidemias, pela destruição que provocou especialmente no Paraguai.
O longo episódio (1864-1870) permite
como poucos uma ampla abordagem,
pelos caminhos da história política, militar, diplomática, das sensibilidades, da
construção mitológica, do estágio da medicina em meados do século 19 etc. Doratioto percorre todos esses caminhos. O
resultado, não só pelo levantamento
exaustivo das fontes e de sua utilização
como pela forma pela qual o autor soube
integrar esses níveis de análise, é um livro denso e atraente, que representa um
marco em nossa historiografia.
Vou me fixar em alguns aspectos fundamentais do tema e na maneira como
eles são tratados por Doratioto, começando pela construção de mitologias. À
medida que a guerra envolveu quatro
países -Brasil, Paraguai, Argentina e
Uruguai- era inevitável que a interpretação dos fatos variasse, favorecendo a
construção de mitologias por parte de
elites políticas, de historiadores e cronistas. Como a participação da Argentina
foi até certo ponto restrita, e a do Uruguai, mais ainda, as versões significativas e contrastantes do conflito foram forjadas no Brasil e
no Paraguai.
Doratioto revela um aspecto surpreendente da
construção mitológica no
Paraguai. A versão gloriosa de um país igualitário, em processo de
modernização, cercado por inimigos poderosos, e liderado por heróicos patriotas, como Carlos López e principalmente
seu filho Francisco Solano López, não
surgiu imediatamente após a derrota,
mas vários anos depois. Ela nasceu em
fins do século 19, quando no país devastado surgiu uma nova geração de estudantes universitários e secundaristas,
concentrados em Assunção, que se dedicaram à recuperação da auto-estima nacional.
A recuperação passava por uma revisão positiva do passado, iniciada por
Juan Emiliano O'Leary, viabilizando o
que se chamou de "lopizmo".
A construção edificante
acabou por triunfar, sendo alentada, em dias mais
recentes por ditadores como Morinigo e Stroessner. A ela contrapôs-se a
versão brasileira, embora não tenha sido unânime já durante os anos do
conflito. Doratioto mostra como os positivistas foram críticos da guerra, responsabilizando o governo imperial pelo seu
início e por muitas barbaridades praticadas em seu curso. Mas, ao longo dos
anos, os positivistas desapareceram da
cena e o que prevaleceu foi uma história
oficial, transmitida através das gerações,
pelos manuais escolares. Nela, o Brasil
teria sido vítima de um ditador sinistro,
empenhado em uma política expansionista, que provocou a guerra, apresando
o navio "Marquês de Olinda" nas águas
do rio Paraguai, em novembro de 1869.
Nos anos 60 do século passado, sob o
influxo das correntes reformistas ou revolucionárias que caracterizaram o pensamento latino-americano, surgiu uma
nova explicação para o episódio, tanto
no Brasil quanto na Argentina. O grande
vilão agora seria o imperialismo britânico, desejoso de esmagar o florescente e
inquietante Paraguai, com seus sonhos
de autonomia.
Algumas vozes já se levantaram contra
essa tese simplista, mas Doratioto foi
mais fundo na crítica ao que se chamou,
na época, de revisionismo.
Na verdade, não se trata de negar o papel fundamental desempenhado pela então potência hegemônica, no âmbito da
América Latina. Mas esse papel não significa que houvesse uma pura e simples
manipulação por parte da Inglaterra de
países como a Argentina e o Brasil. A conhecida resistência brasileira à extinção
do tráfico de escravos até o limite do possível, apesar das pressões britânicas,
constitui o exemplo mais expressivo dessa afirmação.
O maior interesse da Inglaterra residia
na estabilidade da região platina -eixo
vital de seus negócios financeiros e comerciais-, levando-a a promover a independência do Uruguai (1828) e a sua
sustentação, como "um algodão entre
cristais". Quando a Guerra do Paraguai
estourou, as relações entre o governo inglês e o brasileiro passavam por um mau
momento, que chegara ao extremo do
rompimento das relações diplomáticas.
É certo que, uma vez iniciado o conflito, os círculos financeiros da City trataram de se aproximar dos dois maiores
países participantes do confronto. É certo também que as divergências foram superadas, conduzindo ao reatamento de
relações entre o Brasil e a Inglaterra, em
setembro de 1865. Mas, mesmo no terreno financeiro, em que os britânicos reinavam sem contraste, é importante
constatar, como demonstra Doratioto,
que os empréstimos externos não foram
a principal fonte das despesas de guerra
do Brasil. Tais despesas, diga-se de passagem, custaram ao país quase 11 anos de
orçamento anual, em valores de pré-guerra, sendo em grande medida responsáveis pelo persistente déficit público, nas décadas de 1870 e 1880. Porém os
empréstimos externos, segundo dados
do Tesouro Real, representaram pouco
mais de 8% do montante levantado para
o financiamento do conflito.
As razões básicas da Guerra do Paraguai devem ser buscadas em uma combinação de interesses econômicos e sobretudo geopolíticos dos países envolvidos, em uma época de construção e consolidação dos Estados nacionais. Para o
Paraguai, acima de tudo, o conflito parecia ser uma alternativa radical, a fim de assegurar sua presença comercial no Prata.
O livro de Doratioto vai muito além
das interpretações do conflito e de suas
causas. A narrativa da guerra, por exemplo, é feita com minúcia e com argúcia,
iluminando episódios narrados de forma enfadonha nos manuais escolares
impingidos às gerações passadas: Curupaiti, a retirada da Laguna, o longo cerco
da fortaleza de Humaitá, a batalha de Itororó, que deu origem a quadrinhas populares, ganham outro sentido, quando
interpretados à luz da estratégia militar,
do número e da qualidade das forças em
confronto.
Ao mesmo tempo, Doratioto expõe,
sem incidir em uma retórica fácil, os horrores da guerra: as mortes pela varíola e pelo cólera, a precariedade da alimentação, dos cuidados médicos aos feridos,
os saques, o tratamento brutal infligido
aos prisioneiros, de parte a parte.
Ao fim de tudo, contaram-se cerca de
50 mil brasileiros mortos, de um total de
139 mil homens enviados à frente de batalha, tendo a maioria morrido vítima
das epidemias. A Argentina perdeu em
torno de 18 mil homens -incluídos porém mortos e feridos- dos 30 mil soldados combatentes. Quanto ao Paraguai,
não há números confiáveis, embora se
possa afirmar que o país vencido saiu arrasado do conflito.
Sem esquecer a tragédia contida na
frieza desses números, não podemos esquecer que a Guerra do Paraguai mudou
as relações internacionais no hemisfério
Sul. No caso brasileiro, internamente, há
um Brasil anterior e posterior ao conflito. Entre outras coisas, a guerra revelou o arcaísmo grotesco da escravidão e criou
condições para que o Exército começasse a desempenhar um papel relevante no
cenário nacional.
Para terminar, é sempre possível discordar de algumas análises de Francisco
Doratioto, mas é impossível deixar de reconhecer, repito, a qualidade de seu trabalho como um marco de nossa historiografia contemporânea.
Boris Fausto é colunista da Folha e professor no
departamento de história da Universidade de São
Paulo, autor de "A Revolução de 30" (Cia. das Letras) e "História do Brasil" (Edusp), entre outros.
Maldita Guerra
608 págs., R$ 42,50
de Francisco Doratioto. Cia. das
Letras (r. Bandeira Paulista, 702,
conjunto 32, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801).
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