São Paulo, domingo, 21 de abril de 2002

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"Maldita Guerra", de Francisco Doratioto, desmistifica a figura do ditador Solano López e o papel que a Grã-Bretanha exerceu no conflito que opôs Brasil, Uruguai e Argentina ao Paraguai no século 19


Reprodução
"Depois da Batalha de Curupaiti", de Candido Lopez


Passado a limpo

Boris Fausto

colunista da Folha

Maldita Guerra" não é apenas um chamativo título editorial do livro de Francisco Doratioto sobre a Guerra do Paraguai. É um desabafo do barão de Cotegipe, prestigioso político conservador do império, dirigindo-se, em maio de 1866, ao barão de Penedo: "Maldita guerra, atrasa-nos meio século!". Se quase todas as guerras são malditas, a do Paraguai mereceu particularmente esse qualificativo, por ser evitável, pelo número de mortos na luta ou vítimas das epidemias, pela destruição que provocou especialmente no Paraguai.
O longo episódio (1864-1870) permite como poucos uma ampla abordagem, pelos caminhos da história política, militar, diplomática, das sensibilidades, da construção mitológica, do estágio da medicina em meados do século 19 etc. Doratioto percorre todos esses caminhos. O resultado, não só pelo levantamento exaustivo das fontes e de sua utilização como pela forma pela qual o autor soube integrar esses níveis de análise, é um livro denso e atraente, que representa um marco em nossa historiografia.
Vou me fixar em alguns aspectos fundamentais do tema e na maneira como eles são tratados por Doratioto, começando pela construção de mitologias. À medida que a guerra envolveu quatro países -Brasil, Paraguai, Argentina e Uruguai- era inevitável que a interpretação dos fatos variasse, favorecendo a construção de mitologias por parte de elites políticas, de historiadores e cronistas. Como a participação da Argentina foi até certo ponto restrita, e a do Uruguai, mais ainda, as versões significativas e contrastantes do conflito foram forjadas no Brasil e no Paraguai.
Doratioto revela um aspecto surpreendente da construção mitológica no Paraguai. A versão gloriosa de um país igualitário, em processo de modernização, cercado por inimigos poderosos, e liderado por heróicos patriotas, como Carlos López e principalmente seu filho Francisco Solano López, não surgiu imediatamente após a derrota, mas vários anos depois. Ela nasceu em fins do século 19, quando no país devastado surgiu uma nova geração de estudantes universitários e secundaristas, concentrados em Assunção, que se dedicaram à recuperação da auto-estima nacional.
A recuperação passava por uma revisão positiva do passado, iniciada por Juan Emiliano O'Leary, viabilizando o que se chamou de "lopizmo".
A construção edificante acabou por triunfar, sendo alentada, em dias mais recentes por ditadores como Morinigo e Stroessner. A ela contrapôs-se a versão brasileira, embora não tenha sido unânime já durante os anos do conflito. Doratioto mostra como os positivistas foram críticos da guerra, responsabilizando o governo imperial pelo seu início e por muitas barbaridades praticadas em seu curso. Mas, ao longo dos anos, os positivistas desapareceram da cena e o que prevaleceu foi uma história oficial, transmitida através das gerações, pelos manuais escolares. Nela, o Brasil teria sido vítima de um ditador sinistro, empenhado em uma política expansionista, que provocou a guerra, apresando o navio "Marquês de Olinda" nas águas do rio Paraguai, em novembro de 1869.
Nos anos 60 do século passado, sob o influxo das correntes reformistas ou revolucionárias que caracterizaram o pensamento latino-americano, surgiu uma nova explicação para o episódio, tanto no Brasil quanto na Argentina. O grande vilão agora seria o imperialismo britânico, desejoso de esmagar o florescente e inquietante Paraguai, com seus sonhos de autonomia.
Algumas vozes já se levantaram contra essa tese simplista, mas Doratioto foi mais fundo na crítica ao que se chamou, na época, de revisionismo.
Na verdade, não se trata de negar o papel fundamental desempenhado pela então potência hegemônica, no âmbito da América Latina. Mas esse papel não significa que houvesse uma pura e simples manipulação por parte da Inglaterra de países como a Argentina e o Brasil. A conhecida resistência brasileira à extinção do tráfico de escravos até o limite do possível, apesar das pressões britânicas, constitui o exemplo mais expressivo dessa afirmação.
O maior interesse da Inglaterra residia na estabilidade da região platina -eixo vital de seus negócios financeiros e comerciais-, levando-a a promover a independência do Uruguai (1828) e a sua sustentação, como "um algodão entre cristais". Quando a Guerra do Paraguai estourou, as relações entre o governo inglês e o brasileiro passavam por um mau momento, que chegara ao extremo do rompimento das relações diplomáticas.
É certo que, uma vez iniciado o conflito, os círculos financeiros da City trataram de se aproximar dos dois maiores países participantes do confronto. É certo também que as divergências foram superadas, conduzindo ao reatamento de relações entre o Brasil e a Inglaterra, em setembro de 1865. Mas, mesmo no terreno financeiro, em que os britânicos reinavam sem contraste, é importante constatar, como demonstra Doratioto, que os empréstimos externos não foram a principal fonte das despesas de guerra do Brasil. Tais despesas, diga-se de passagem, custaram ao país quase 11 anos de orçamento anual, em valores de pré-guerra, sendo em grande medida responsáveis pelo persistente déficit público, nas décadas de 1870 e 1880. Porém os empréstimos externos, segundo dados do Tesouro Real, representaram pouco mais de 8% do montante levantado para o financiamento do conflito.
As razões básicas da Guerra do Paraguai devem ser buscadas em uma combinação de interesses econômicos e sobretudo geopolíticos dos países envolvidos, em uma época de construção e consolidação dos Estados nacionais. Para o Paraguai, acima de tudo, o conflito parecia ser uma alternativa radical, a fim de assegurar sua presença comercial no Prata.
O livro de Doratioto vai muito além das interpretações do conflito e de suas causas. A narrativa da guerra, por exemplo, é feita com minúcia e com argúcia, iluminando episódios narrados de forma enfadonha nos manuais escolares impingidos às gerações passadas: Curupaiti, a retirada da Laguna, o longo cerco da fortaleza de Humaitá, a batalha de Itororó, que deu origem a quadrinhas populares, ganham outro sentido, quando interpretados à luz da estratégia militar, do número e da qualidade das forças em confronto.
Ao mesmo tempo, Doratioto expõe, sem incidir em uma retórica fácil, os horrores da guerra: as mortes pela varíola e pelo cólera, a precariedade da alimentação, dos cuidados médicos aos feridos, os saques, o tratamento brutal infligido aos prisioneiros, de parte a parte.
Ao fim de tudo, contaram-se cerca de 50 mil brasileiros mortos, de um total de 139 mil homens enviados à frente de batalha, tendo a maioria morrido vítima das epidemias. A Argentina perdeu em torno de 18 mil homens -incluídos porém mortos e feridos- dos 30 mil soldados combatentes. Quanto ao Paraguai, não há números confiáveis, embora se possa afirmar que o país vencido saiu arrasado do conflito.
Sem esquecer a tragédia contida na frieza desses números, não podemos esquecer que a Guerra do Paraguai mudou as relações internacionais no hemisfério Sul. No caso brasileiro, internamente, há um Brasil anterior e posterior ao conflito. Entre outras coisas, a guerra revelou o arcaísmo grotesco da escravidão e criou condições para que o Exército começasse a desempenhar um papel relevante no cenário nacional.
Para terminar, é sempre possível discordar de algumas análises de Francisco Doratioto, mas é impossível deixar de reconhecer, repito, a qualidade de seu trabalho como um marco de nossa historiografia contemporânea.


Boris Fausto é colunista da Folha e professor no departamento de história da Universidade de São Paulo, autor de "A Revolução de 30" (Cia. das Letras) e "História do Brasil" (Edusp), entre outros.


Maldita Guerra
608 págs., R$ 42,50 de Francisco Doratioto. Cia. das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/xx/ 11/ 3167-0801).



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