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Ponto de fuga
É preciso enforcar os arquitetos?
Jorge Coli
especial para a Folha
O escritor francês Daniel Pennac, mestre do humor negro, acha que não. Bastaria, de cada dois, guilhotinar
um. O preconceito contra essa profissão não é de hoje.
Flaubert, no seu "Dicionário das Idéias Feitas", os define assim: "Todos imbecis. Sempre esquecem de pôr escada nas casas". Renoir, quando queria insultar alguém,
dizia: "Você não passa de um arquiteto".
Um livro editado na França em 2001 traz por título "É
Preciso Enforcar os Arquitetos?". Foi escrito por Ph.
Trétiack (Seuil), ele próprio arquiteto e jornalista. Superficial, provocador, o texto vale o que vale, isto é, de
fato, não muito. Limita-se a um universo estritamente
francês. Seu mérito, porém, é trazer à baila uma questão
mais rara do que parece: qual a posição do arquiteto no
universo moderno? Para tanto, a análise sociológica
não bastaria. Seria preciso, antes, a perspectiva de uma
história da cultura.
Ela pode dar conta dos conflitos, profissionais e formais, entre pressões concretas e correntes estéticas;
abarcar as inflexões militantes, sociais e modernas, nas
quais os arquitetos foram envolvidos. É capaz de traçar
as determinantes intrincadas que os levaram a afirmarem-se enquanto artistas e demiurgos, oniscientes
diante de problemas cuja complexidade acaba escapando sempre, mesmo aos gênios maiores.
Enfim, interrogaria, em modo justo, por que a arquitetura corrente do século 20, que entulha as cidades modernas, é tão infame.
Dupla - Paris teve, no começo deste ano, uma exposição consagrada a Jean Nouvel e outra a Oscar Niemeyer. Não é simples organizar mostras satisfatórias de arquitetura. A primeira, no Centro Pompidou, era uma
espécie de ensaio visual, resultando em confusão impiedosa. O visitante tinha um trabalho enorme para se
orientar ou identificar aquilo que via. Na desordem, as
percepções, imprecisas, perdiam o nexo: difícil aprender ali alguma coisa. Ao contrário, a mostra Niemeyer,
no Jeu de Paume, era, ao menos, límpida. Nada, porém,
de muito profundo nem de muito novo e, na verdade,
nem de muito estimulante. As diferentes etapas e projetos se sucediam, cronológicos.
Por mais diversas que fossem, havia, no entanto, um
ponto comum às duas exposições. Eram "homenagens". Isto é, afastaram toda e qualquer veleidade de interrogação crítica. O público ia lá para reverenciar gênios criadores, e basta. Há uma história antiga, sobre o
escultor Donatello (1386-1466), imenso entre os imensos, nos tempos do Renascimento florentino. Certa vez,
foi trabalhar em Pádua. Costumava se queixar: "Aqui,
só ouço elogios. Em Florença era muito melhor. Lá, ninguém nunca fica satisfeito, todos criticam". Ele pensava
que a adequada homenagem e estímulo à criação é o inconformismo e o debate.
Duelo - Ao construir a Casa de Cultura do Havre, Niemeyer, com formas circulares, cônicas, afirmava seu
edifício diante da cidade retilínea e angulosa. Em Niterói, ao contrário, o museu que ele inventou interpela a
natureza, esplêndida e amplíssima, pela semelhança
nas ondulações e nas curvas: são dois criadores que se
defrontam. O edifício ergue-se como um mirante. Nas
salas de exposição, fecha-se sobre si, salvo por uma faixa de vidro escuro que filtra a visão. Fascinante flor esquizofrênica, o museu se impõe enquanto objeto cego e
misterioso diante da mais bela paisagem do mundo.
Poeira - Ninguém quer, de fato, enforcar ou guilhotinar arquitetos, mas, por via das dúvidas, é melhor que
isso fique aqui esclarecido. A beleza que nos oferece a
arquitetura, única na ordenação dos espaços, na larga
escala de formas harmoniosas ou surpreendentes, é tão
comovedora quanto frágil. Por sólidos que sejam seus
materiais, muitas vezes ela desaparece, vítima da mudança de usos e gostos, de necessidades e interesses.
Boa parte da história da arquitetura moderna encontra-se somente como lembrança, na imagem conservada
em velhas fotografias.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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