São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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O escritor Philip Roth fala sobre seu novo romance, "The Human Stain", no qual um professor é obrigado a recriar sua identidade para tentar escapar do policiamento do "politicamente correto" nos EUA dos anos 90
O alter cérebro

Charles McGrath
do "The NYT Book Review"

Considerado um dos mais importante escritores americanos vivos, Philip Roth acaba de lançar uma nova obra, "The Human Stain" (A Mancha Humana). O romance gira em torno da obsessão pelo "politicamente correto" que assolou os EUA nos anos 90, tendo como pano de fundo o caso Clinton/Lewinsky.
Professor de letras clássicas na pequena New England, o personagem Coleman Silk perde seu posto depois de ser acusado de misoginia e racismo. Muda-se para Nova York e, apesar de negro, faz-se passar por judeu. Casa-se, tem quatro filhos e reinicia uma bem-sucedida carreira universitária, levando "uma vida séria dedicada a coisas sérias". Construindo sua nova vida sobre uma mentira, Coleman leva até o limite o princípio genuinamente americano de liberdade para tentar, desse modo, apagar o passado e reinventar a si mesmo.
Nascido em Newark, Nova Jersey (EUA), em 1933, Philip Roth deu aulas de literatura nas universidades de Iowa e Princeton. Entre seus principais romances estão "Complexo de Portnoy", "Operação Shylock", "O Teatro de Sabbath" e "Pastoral Americana" (Companhia das Letras).
Leia abaixo entrevista concedida pelo autor no escritório de sua casa, na zona rural de Connecticut, onde vive desde 1973. É um lugar, diz, onde "não há muito o que fazer, exceto escrever".

O sr. disse que vê "The Human Stain" como a terceira parte de uma trilogia, que começou com "Pastoral Americana" e "I Married a Communist". Mas não é uma trilogia de maneira evidente -não é sequencial ou cronológica.
Eu a vejo como uma trilogia temática que trata dos momentos históricos da vida norte-americana do pós-guerra que exerceram maior impacto sobre minha geração. Eu diria que são os que exerceram maior impacto sobre mim, não fosse pelo fato de que não acredito que minha reação seja exclusivamente minha.
Quais foram esses momentos?
O primeiro foi a era do macarthismo. Você lia os jornais, mesmo quando era estudante, e se assustava, ficava hipnotizado, se sentia ultrajado. Ainda mais contundente foi o impacto da Guerra do Vietnã. Esse foi o acontecimento nacional mais devastador de minha vida adulta. Uma guerra brutal se prolongou -se prolongou ainda mais do que aquele outro grande marco, a Segunda Guerra Mundial- e trouxe em seu bojo uma turbulência social que não era vista desde a Grande Depressão.
O terceiro momento foi 1998, o ano do impeachment presidencial. Em 1998 tivemos a ilusão de que, de repente, éramos capazes de conhecer este país imenso e impossível de conhecer, capazes de vislumbrar seu cerne moral. O que estava sendo representado no palco público parecia possuir o poder concentrado de uma grande obra literária. A obra à qual me refiro é "A Letra Escarlate".
Outro elemento que interliga os três livros é o personagem Nathan Zuckerman -seu alter ego, já disseram algumas pessoas.
Alter cérebro.
Seu alter cérebro. Ele o acompanha desde "The Ghost Writer", certo?

Há muito tempo. Pensei que o tivesse deixado para trás depois de "The Prague Orgy". Mas em "Pastoral Americana" essa inteligência mediadora chamada Nathan Zuckerman solucionou o problema de como lançar o livro. Foi apenas quando consegui colocar Zuckerman lá dentro, pensando, que consegui fazer a história dos Lvov deslanchar. Eu tinha começado o livro cerca de 20 anos antes, perto do final da Guerra do Vietnã. Escrevi mais ou menos 70 páginas, mas foi só depois de concluir "O Teatro de Sabbath", quando eu já estava "por aqui" com Mickey Sabbath -sabe, eu também tive que conviver com a enorme desordem que é esse homem, por mais tempo até do que o pobre leitor- que pensei: "Bem, aqui está esse homem ordeiro, moderado, bondoso, decente segundo todos os critérios convencionais, tudo que Sabbath não é" e que mudança seria começar a imaginá-lo.
Foi assim que o sueco ganhou importância tão grande para mim e que passei a apresentá-lo -como não fizera da primeira vez- como se Zuckerman o tivesse conhecido como ídolo de sua juventude. Zuckerman era minha fonte de informações confiáveis, minha porta de entrada confiável para a vida do sueco, que de alguma maneira me proporcionou a liberdade de conhecê-lo. Descartei Zuckerman na página 90 -ele deixara de ser necessário.
No livro seguinte, "I Married a Communist", Zuckerman já não é apenas uma presença mediadora. Nessa história, é um personagem real.
Ele é um ouvido real nessa história, durante pelo menos metade do tempo. Ele ouve a história de Ira Ringold sendo narrada por seu irmão, Murray Ringold, da maneira como Murray conhece a história de Ira. Depois, mais ou menos em capítulos alternados, Zuckerman relata a história como ele a conhece. Murray e Zuckerman vão passando a bola narrativa de um para o outro até a história do fracasso de Ira ser registrada até a derradeira traição -sendo que o tema do livro é a traição, já que era ela, de todas as maneiras concebíveis, a obsessão dominante da era McCarthy. É uma temática muito diferente da de "Pastoral Americana" e se manifesta num tipo diferente de narrativa.
No novo livro, Zuckerman mais uma vez exerce um papel diferente.
Sim, ele é um ator nos acontecimentos que se desenrolam, mais do que o foi nos dois livros anteriores. É um amigo, o amigo de Coleman Silk. Ele é solitário, se torna seu amigo e depois o perde. E, quando se propõe a reconstruir a história do amigo perdido, descobre uma biografia secreta desconhecida não apenas dele, mas de virtualmente todo mundo.

Não consigo evitar que nossa história comum penetre, sorrateira, em minha obra; o tempo passa, você ganha a perspectiva histórica e não consegue mais se livrar dela


Voltando à temática de "The Human Stain", os acontecimentos de 1998 são comentados, com certeza, mas o que mais chama a atenção é que esse livro é sobre um negro que se faz passar por branco e judeu. Poderíamos dizer que é um livro que trata de raça, judaísmo e a intersecção das duas coisas?
Não de raça e judaísmo. Não existe nada sobre judaísmo no livro.
Bem, ele escolhe assumir uma identidade judaica.
Como meio de se passar por outra pessoa, como disfarce social, como pretexto para sua aparência. A opção de Coleman não tem nada a ver com os aspectos éticos, espirituais, teológicos ou históricos do judaísmo. Não tem nada a ver com querer pertencer a outro "nós". É uma escolha astuta que consegue lhe proporcionar um disfarce na fuga de seu próprio "nós". A escolha é estritamente utilitária -como o são tantas outras coisas, no caso deste homem.
De onde veio a idéia?
Ela tem suas origens em Chicago, onde fiz faculdade em meados dos anos 50 e aonde voltei para viver por alguns anos depois do Exército. Chicago me proporcionou minha primeira visão do grande mundo. Foi a primeira vez que realmente senti, vi, registrei a presença negra numa cidade americana, a primeira vez em que me comprometi pessoalmente, mesmo que de maneira mínima, com os negros.
Quando eu era criança e adolescente em Newark, nos anos 30 e 40, todos nós -irlandeses, italianos, eslavos, negros, judeus- vivíamos acomodados e seguros em bairros distintos. Praticamente não havia sobreposição social, e a população negra era, de fato, relativamente pequena naquela época. Foi só por volta de 1950, na época em que parti para a universidade, que Newark começou a se tornar a cidade predominantemente negra que é hoje.
Mas a Chicago na qual aterrissei era algo totalmente diferente. E, quando eu era estudante na Universidade de Chicago, conheci uma garota de outra faculdade da cidade com quem tive um pequeno namoro universitário e que era negra -ademais, negra originária de uma família de profissionais liberais. Acho que até aquele momento eu não havia me dado conta da existência de uma classe média negra de qualquer dimensão, e a família da garota representou uma novidade total para mim -como, aliás, eu certamente representei para ela.
Em todo caso, começamos a sair juntos e conheci a família dela, que era de negros de pele muito clara, especialmente na parte materna da família. E nunca me esqueci de ter ouvido sua mãe contar que havia parentes seus que se tinham perdido para todo seu povo. Foi a frase que ela usou -"se perdido para sua gente". Mais tarde a garota me explicou do que sua mãe estivera falando -que esses parentes, que eram capazes fisicamente de fazê-lo, tinham deixado de identificar-se como negros, mudado para longe e ingressado no mundo branco para nunca mais voltar.
E aquilo foi algo de que nunca me esqueci, embora nunca tivesse imaginado que nessa história encontraria um tema sobre o qual escrever. Porém tanto a história quanto as pessoas me deixaram uma impressão duradoura. Autotransformação. Auto-invenção. O destino alternativo. Repudiar o passado. Coisas poderosas.
O que a trilogia diz sobre nós? Se é uma espécie de relatório sobre os EUA, como estamos nos saindo?
Essa é uma pergunta que merece ser feita, mas não a mim. Estamos falando em mais de mil páginas de ficção. Apenas queria que essas "débâcles" históricas penetrassem os personagens e os atravessassem -apenas queria descobrir como isso seria. Queria, sobretudo, descobrir como precisaria ser um romance para que não fosse uma ficha de relatório sobre a América, mas uma obra de ficção sobre ela.
Qual será seu próximo trabalho?
Quero me desligar desse clima grandioso. Quero limpar minha cabeça de toda essa seriedade.
O senhor está escrevendo um romance cômico?
(rindo) Não, quero outra voz para o presente. Nos próximos seis meses, um ano, eu gostaria de olhar as coisas sob outro prisma. Estou tentando me libertar da visão sombria da vida americana que é própria de Zuckerman.
Houve uma época em sua vida em que o senhor gastava certa dose de energia escrevendo sobre outros escritores. Será que agora é hora de algo análogo a isso?
Não. Entre 1974 e 1989 editei a série "The Other Europe" para a Penguin. Eu lia todos esses romances europeus orientais traduzidos, encontrava escritores do Leste europeu, alguns por lá, outros no exílio, e tudo aquilo era novidade para mim. Naquela época eu morava em Londres sete meses por ano; assim, sem muito trabalho, viajava com frequência a Paris, Praga ou Jerusalém.
Quando retornei da Inglaterra em definitivo, em 1989, foi minha redescoberta da América como escritor. Retornei, na verdade, porque estava me sentindo fora de contato. Não que não soubesse o que se passava aqui, pela leitura dos jornais, mas o que me faltava era o contato cotidiano imediato com o que as pessoas estavam pensando e dizendo -ou seja, estava deixando de captar tudo que acontecia ao longo do caminho. Se eu estivesse vivendo em qualquer outro lugar em 1998, por exemplo, jamais poderia ter escrito "The Human Stain". Desde longe eu não teria podido reagir de maneira tão visceral quanto fiz ao ambiente moral de 1998, que teve muito a ver com a maneira como imaginei a história de como Coleman Silk se acaba.
Quando olho para trás, hoje, vejo que "O Teatro de Sabbath" é o verdadeiro retorno às coisas americanas. A voz de Mickey Sabbath é totalmente americana. E a trilogia americana veio depois dele, não de dentro dele. Vejo pelo que estou escrevendo agora mesmo que, mesmo que tente, não consigo evitar que nossa história comum penetre, sorrateira, na temática de minha obra. É resultado de envelhecer, imagino. Não se tem perspectiva histórica por muito tempo. Uma perspectiva histórica requer tempo. Então, infelizmente, o tempo passa, você ganha a perspectiva histórica e não consegue mais se livrar dela.



The Human Stain
361 págs, US$ 26 de Philip Roth. Houghton Mifflin (EUA).

Onde encomendar
Em SP, na Livraria Cultura (tel. 0/xx/11/285-4033), e, no RJ, na Livraria Marcabru (tel. 0/xx/21/ 294-5994).



Tradução de Clara Allain.

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