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+ sociedade
A natureza biológica do homem precisa ser levada em conta
em qualquer projeção do futuro
Utopia, escassez e genética
No atual nível de desenvolvimento tecnológico, só há um caso em que a poluição não é contornável dentro de limites econômicos aceitáveis, é o caso
do efeito estufa
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Rogério Cezar de Cerqueira Leite
do Conselho Editorial
Em seu eloquente e monumental tratado sobre o "Pensamento Utópico
no Mundo Ocidental", F.E. Manuel e F.P.
Manuel concluem que não haveria mais
possibilidade de prosseguimento desta
que sempre foi uma das vertentes mais
fecundas da reflexão humanística, senão
por vias eminentemente científicas. Todavia, para exemplificar este eventual expediente, os autores expõem duas teorias
que, apesar da indiscutível qualidade intelectual deles, incluem preceitos inquestionavelmente absurdos. J.D. Bernal propõe, por exemplo, a construção de espaçonaves ligadas a asteróides para abrigar
núcleos populacionais perenes, enquanto Freeman Dyson espera utilizar a energia de cometas e a possibilidade de utilizá-los para suporte da vida humana.
Ambos parecem mobilizados pelas mesmas fobias que promoveram as considerações alarmistas de tantos grupos de intelectuais, como aquelas do "Clube de
Roma".
Por outro lado, também nenhum dos
mais fecundos analistas atuais, oriundos
de disciplinas sociais, parece ter formulado uma utopia consistente, como bem
demonstra o debate entre Fukuyama,
Hobsbawm, Garton Ash, Hassner, Luttwak e Robert Cooper, publicado no
Mais! de 7/5/2000.
De fato, se no passado uma utopia podia ser uma concepção em termos abstratos de uma sociedade ideal da qual foram eliminados todos os aspectos éticos
e sociais considerados indesejáveis, hoje,
como veremos, não podemos deixar de
levar também em consideração eventuais constrangimentos físicos concretos. Mas quais seriam esses aspectos limitantes e em que medida constituiriam
impedimentos para uma sociedade global igualitária, democrática e justa?
As fobias que vêm assombrando a humanidade são facilmente identificáveis e,
por certo, constituem os primeiros indícios reveladores dos obstáculos futuros
que o homem pressente, intuitivamente
talvez, que venham a impedir o seu progresso social e material. Nada inquietou
tanto o intelectual destes dois últimos séculos e mobilizou tantas forças sociais
perversas quanto a doutrina de Thomas
Malthus. De acordo com essa visão, enquanto o suprimento de alimentos cresceria em razão aritmética, a população o
faria em razão geométrica.
Essa fobia basilar se desdobra atualmente em uma multiplicidade de outras
adiáforas. Em primeiro lugar o fantasma
da superpopulação e o concomitante temor do escasseamento de alimentos. Em
segundo, os prenúncios de esgotamento
de produtos naturais, inclusive dos combustíveis e energia em geral -e, mais recentemente, de água potável. Em terceiro, o pavor crescente da poluição, do
desmatamento, do efeito estufa, ou seja,
de obras do próprio homo sapiens. Todavia, como demonstraremos, pelo menos em princípio, essas ameaças podem
ser, senão prevenidas, pelo menos relativizadas.
Hoje os especialistas mais pessimistas
reconhecem que a população do globo
não deve ultrapassar os 20 bilhões de habitantes. Excluindo as terras da Groenlândia, do Alasca, da Antártida, do norte do Canadá, Finlândia, Noruega, Suécia
e Sibéria etc., que estiverem além do paralelo 60, que passa por São Petersburgo
e Estocolmo, podemos contar com pelo
menos 100 milhões de km2 de terras não
congeladas. Com isso, a máxima densidade populacional a ser atingida seria de
cerca de 200 habitantes/ km2, que é típica
de países europeus, tais como Alemanha, Itália, Reino Unido, que, apesar do
clima e da presença de condições geomórficas adversas, são perfeitamente capazes de sustentar suas respectivas populações, mesmo dentro dos limites ainda bastante restritos de uso de tecnologias já acessíveis.
Qualidade de vida
A energia per
capita, além de uma necessidade essencial da vida moderna, é um índice satisfatório para avaliar a riqueza, senão a qualidade de vida. Toda, ou quase toda,
energia disponível para a humanidade
vem continuamente do Sol -do interior
da Terra vem uma pequena parcela de
energia que serve para aquecer a biosfera. Uma parcela diminuta dessa energia
pode ser colhida e usada pelo homem; é a
chamada energia geotérmica (ou gêiseres). Petróleo, carvão, gás natural, enfim
todos os combustíveis denominados fósseis são provenientes de energia solar
que foram, por uma multiplicidade de
processos químicos, acumulados por
milhares de séculos.
Também a biomassa, a hidreletricidade, a energia eólica etc. são formas indiretas de aproveitamento de energia solar.
Somente a energia nuclear se originou
no período de formação da Terra. Petróleo e gás natural já estão se esgotando, na
escala de tempo aqui considerada. E o
carvão também não durará muito mais.
O resto é enormemente ineficaz e insuficiente. O engenheiro acha que a hidrelétrica é eficiente porque só considera o último estágio de um processo complexo.
Nunca pensa em quantos quilowatts-horas de energia solar foram necessários
para evaporar toda a água necessária para fornecer aquela parcela que finalmente entrará em uma particular turbina. O
mesmo acontece com todas formas de
"produção" de energia, exceto com o
aproveitamento direto da energia solar.
A Terra recebe um fluxo de energia de
170 trilhões de quilowatts. Um americano, o habitante da Terra mais perversamente perdulário, despende 10KW. Admitindo uma eficiência de 20% na conversão direta de energia eletromagnética
em eletricidade, o que é atualmente viável, seria necessário um trilhão de KW
incidente em captores para satisfazer as
necessidades humanas aos níveis do modelo aqui considerado, 20 bilhões de habitantes a 10KW per capita -supondo
que novas tecnologias e atitudes conservacionistas não vicejem no futuro. Se a
coleta de energia solar se fizer apenas sobre a parte sólida da Terra e dispensarmos as regiões distantes que também
não consideramos para ocupação humana, precisaremos de 8% aproximadamente da superfície sólida da Terra.
O problema da poluição também não
envolve nenhum obstáculo intransponível. Uma substância se torna poluente
quando sua densidade no meio ambiente ultrapassa um certo limite. Esse limite,
com a evolução tecnológica, cedo ou tarde se torna o mesmo para o qual a substância é recuperável economicamente.
Ou seja, todo poluente tem um ponto em
que se torna riqueza.
E, no atual nível de desenvolvimento
tecnológico, só há um caso em que a poluição não é contornável dentro de limites econômicos aceitáveis, é o caso do
efeito estufa. Os demais casos de poluição não são senão crimes evitáveis, a
maioria das vezes perpetrados ou consentidos pelos próprios governos. Dentro dos limites tecnológicos atuais, a única maneira de impedir catástrofes devidas ao efeito estufa seria uma rápida moratória ao uso de combustíveis fósseis, o
que é economicamente inviável.
Uma transição para energia solar exigiria, para satisfazer uma população de 20
bilhões de indivíduos aos atuais níveis de
consumo de um cidadão americano, de
um investimento total de US$ 2 quatrilhões, apenas para a geração de energia,
considerados os atuais custos nesse setor
específico.
Ou seja, seria necessário um investimento anual equivalente a 3% do produto global, admitindo que este cresça durante dois séculos na mesma medida que
a população, de maneira a alcançar o nível de consumo individual do cidadão
americano.
Todavia é óbvio que uma transição
desse tipo, cuja duração pressupõe o esgotamento de combustíveis fósseis, implica uma adaptação da biosfera ao efeito
estufa, entre outras. Espécies marinhas
serão extintas e regiões litorâneas densamente povoadas serão permanentemente inundadas. Mas esses males são suplantáveis, embora com eventual prejuízo para essas populações.
De nossos mares são evaporados cerca
de 35 bilhões de toneladas de água por
hora, o que corresponde a uma intensidade pluviométrica de 3 m3 de água por
dia sobre terra firme, por habitante, no
futuro. O problema é, portanto, de distribuição de água e não de escassez. Essa
quantidade de água é certamente suficiente para irrigação e uso individual.
Também o esgotamento de minerais
não deve ser uma preocupação maior.
Intensiva reciclagem e término da implantação de infra-estrutura reduzirão,
com certeza, a demanda a níveis toleráveis. A enorme abundância de alumínio
e ferro (8% e 5% da crosta terrestre, respectivamente), principais materiais estruturais, faz com que nesse segmento
nada haja a temer. Na área de comunicações, o elemento fundamental continua
a ser o silício, o segundo elemento mais
abundante da crosta terrestre. E carbono
para plásticos poderá ser obtido da atmosfera ou de florestas artificiais. Somente a extinção do cobre talvez venha a
apresentar uma ameaça, mas há sucedâneos.
A sequência de utopias, de caráter filosófico-sociológico, desde a "República"
de Platão, passando por Thomas More,
até aquela de Condorcet, Fourier, Hobbes e Conte, todavia, se desmoronou não
por causa de qualquer constrangimento
material. Essa fragilidade inerente só começa a ficar aparente após o fracasso da
mais fecunda e interinamente vitoriosa
de todas as utopias, o marxismo (ou deveríamos dizer os "marxismos"?), que,
aliás, pouco se abalou com, e pôde mesmo absorver, movimentos distônicos
poderosos como o darwinismo e o freudismo.
Alimento do intelecto
Não há,
portanto, razões concretas para o abandono da utopia como alimento moral do
intelecto, mesmo quando nos conscientizamos das contingências físicas que
tanto assombram cientistas e outros intelectuais. Então por que renunciamos às
utopias, até mesmo como meros referenciais, como horizontes que guiam nossas
aspirações? Talvez porque finalmente estejamos incluindo em nossas visões a natureza biológica do homem.
Esse século 21 será, por certo, o século
da biologia, da biologia molecular mais
precisamente. E uma das mais espantosas conclusões dessa disciplina é a de que
as ações do ser vivo têm como objetivo
final a propagação de seu material genético. Demonstra-se, mesmo, que comportamentos aparentemente contraditórios em relação ao "egoísmo" do gene,
tais como altruísmo e "amizade", dele,
do próprio egoísmo, derivam.
Podemos, assim, concluir que o comportamento do homo sapiens, em todos
seus aspectos, tem como origem o imperativo procriador. Daí decorre seu comportamento territorial, possessivo, belicoso, conquistador, exclusivista. E esse
impulso é tão inequivocamente dominante, embora recôndito, embora dissimulado, que nenhum processo civilizatório poderá jamais neutralizá-lo completamente. Eis por que acabamos por
sucumbir a uma distopia, o capitalismo.
Chamamos de distopia àquela concepção de uma sociedade inerentemente
imperfeita em que os cidadãos não podem almejar paz, igualitarismo e uma
qualidade de vida aceitável, sociedades
tais como aquela imaginada por Orwell
em seu "1984" ou, alternativamente, como a de Huxley, em "Admirável Mundo
Novo", ou ainda uma em que seus governantes submetem parcelas significativas
de seus membros a salários de R$ 151,00
por mês, para satisfazer as castas privilegiadas.
Os números aqui apresentados mostram por que os países já desenvolvidos
procuram, embora de maneira ambivalente, manter o "status quo", a própria
hegemonia, desenvolvendo mercados,
talvez, mas limitando o progresso dos
permanentemente em desenvolvimento.
Afinal só haveria distribuição igualitária
com muito esforço e desprendimento,
pois haverá, talvez, neste mundo povoado até seu limite, meios de sobrevivência
adequados, mas não haverá fartura.
Arma poderosa
A globalização poderá vir a ser uma arma contra a natural
relutância do homem em compartilhar,
embora atualmente esteja sendo usada
apenas para concentrar riqueza onde ela
já predomina.
Em conclusão, qualquer utopia racional para este milênio que vai se iniciar terá que levar em consideração os óbvios
constrangimentos materiais aqui considerados e, antes de tudo, a natureza biológica do homem, seu intransigente
egoísmo genético. Talvez fosse isso que
Manuel e Manuel estivessem pressentindo em 1979 quando, concluindo seu trabalho após 17 anos de pesquisas, puseram suas esperanças de uma sociedade
justa na ciência e não na política ou na filosofia.
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