São Paulo, domingo, 21 de maio de 2000


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A natureza biológica do homem precisa ser levada em conta em qualquer projeção do futuro
Utopia, escassez e genética


No atual nível de desenvolvimento tecnológico, só há um caso em que a poluição não é contornável dentro de limites econômicos aceitáveis, é o caso do efeito estufa


Rogério Cezar de Cerqueira Leite
do Conselho Editorial

Em seu eloquente e monumental tratado sobre o "Pensamento Utópico no Mundo Ocidental", F.E. Manuel e F.P. Manuel concluem que não haveria mais possibilidade de prosseguimento desta que sempre foi uma das vertentes mais fecundas da reflexão humanística, senão por vias eminentemente científicas. Todavia, para exemplificar este eventual expediente, os autores expõem duas teorias que, apesar da indiscutível qualidade intelectual deles, incluem preceitos inquestionavelmente absurdos. J.D. Bernal propõe, por exemplo, a construção de espaçonaves ligadas a asteróides para abrigar núcleos populacionais perenes, enquanto Freeman Dyson espera utilizar a energia de cometas e a possibilidade de utilizá-los para suporte da vida humana. Ambos parecem mobilizados pelas mesmas fobias que promoveram as considerações alarmistas de tantos grupos de intelectuais, como aquelas do "Clube de Roma". Por outro lado, também nenhum dos mais fecundos analistas atuais, oriundos de disciplinas sociais, parece ter formulado uma utopia consistente, como bem demonstra o debate entre Fukuyama, Hobsbawm, Garton Ash, Hassner, Luttwak e Robert Cooper, publicado no Mais! de 7/5/2000. De fato, se no passado uma utopia podia ser uma concepção em termos abstratos de uma sociedade ideal da qual foram eliminados todos os aspectos éticos e sociais considerados indesejáveis, hoje, como veremos, não podemos deixar de levar também em consideração eventuais constrangimentos físicos concretos. Mas quais seriam esses aspectos limitantes e em que medida constituiriam impedimentos para uma sociedade global igualitária, democrática e justa? As fobias que vêm assombrando a humanidade são facilmente identificáveis e, por certo, constituem os primeiros indícios reveladores dos obstáculos futuros que o homem pressente, intuitivamente talvez, que venham a impedir o seu progresso social e material. Nada inquietou tanto o intelectual destes dois últimos séculos e mobilizou tantas forças sociais perversas quanto a doutrina de Thomas Malthus. De acordo com essa visão, enquanto o suprimento de alimentos cresceria em razão aritmética, a população o faria em razão geométrica. Essa fobia basilar se desdobra atualmente em uma multiplicidade de outras adiáforas. Em primeiro lugar o fantasma da superpopulação e o concomitante temor do escasseamento de alimentos. Em segundo, os prenúncios de esgotamento de produtos naturais, inclusive dos combustíveis e energia em geral -e, mais recentemente, de água potável. Em terceiro, o pavor crescente da poluição, do desmatamento, do efeito estufa, ou seja, de obras do próprio homo sapiens. Todavia, como demonstraremos, pelo menos em princípio, essas ameaças podem ser, senão prevenidas, pelo menos relativizadas. Hoje os especialistas mais pessimistas reconhecem que a população do globo não deve ultrapassar os 20 bilhões de habitantes. Excluindo as terras da Groenlândia, do Alasca, da Antártida, do norte do Canadá, Finlândia, Noruega, Suécia e Sibéria etc., que estiverem além do paralelo 60, que passa por São Petersburgo e Estocolmo, podemos contar com pelo menos 100 milhões de km2 de terras não congeladas. Com isso, a máxima densidade populacional a ser atingida seria de cerca de 200 habitantes/ km2, que é típica de países europeus, tais como Alemanha, Itália, Reino Unido, que, apesar do clima e da presença de condições geomórficas adversas, são perfeitamente capazes de sustentar suas respectivas populações, mesmo dentro dos limites ainda bastante restritos de uso de tecnologias já acessíveis.

Qualidade de vida
A energia per capita, além de uma necessidade essencial da vida moderna, é um índice satisfatório para avaliar a riqueza, senão a qualidade de vida. Toda, ou quase toda, energia disponível para a humanidade vem continuamente do Sol -do interior da Terra vem uma pequena parcela de energia que serve para aquecer a biosfera. Uma parcela diminuta dessa energia pode ser colhida e usada pelo homem; é a chamada energia geotérmica (ou gêiseres). Petróleo, carvão, gás natural, enfim todos os combustíveis denominados fósseis são provenientes de energia solar que foram, por uma multiplicidade de processos químicos, acumulados por milhares de séculos.
Também a biomassa, a hidreletricidade, a energia eólica etc. são formas indiretas de aproveitamento de energia solar. Somente a energia nuclear se originou no período de formação da Terra. Petróleo e gás natural já estão se esgotando, na escala de tempo aqui considerada. E o carvão também não durará muito mais. O resto é enormemente ineficaz e insuficiente. O engenheiro acha que a hidrelétrica é eficiente porque só considera o último estágio de um processo complexo. Nunca pensa em quantos quilowatts-horas de energia solar foram necessários para evaporar toda a água necessária para fornecer aquela parcela que finalmente entrará em uma particular turbina. O mesmo acontece com todas formas de "produção" de energia, exceto com o aproveitamento direto da energia solar.
A Terra recebe um fluxo de energia de 170 trilhões de quilowatts. Um americano, o habitante da Terra mais perversamente perdulário, despende 10KW. Admitindo uma eficiência de 20% na conversão direta de energia eletromagnética em eletricidade, o que é atualmente viável, seria necessário um trilhão de KW incidente em captores para satisfazer as necessidades humanas aos níveis do modelo aqui considerado, 20 bilhões de habitantes a 10KW per capita -supondo que novas tecnologias e atitudes conservacionistas não vicejem no futuro. Se a coleta de energia solar se fizer apenas sobre a parte sólida da Terra e dispensarmos as regiões distantes que também não consideramos para ocupação humana, precisaremos de 8% aproximadamente da superfície sólida da Terra.
O problema da poluição também não envolve nenhum obstáculo intransponível. Uma substância se torna poluente quando sua densidade no meio ambiente ultrapassa um certo limite. Esse limite, com a evolução tecnológica, cedo ou tarde se torna o mesmo para o qual a substância é recuperável economicamente. Ou seja, todo poluente tem um ponto em que se torna riqueza.
E, no atual nível de desenvolvimento tecnológico, só há um caso em que a poluição não é contornável dentro de limites econômicos aceitáveis, é o caso do efeito estufa. Os demais casos de poluição não são senão crimes evitáveis, a maioria das vezes perpetrados ou consentidos pelos próprios governos. Dentro dos limites tecnológicos atuais, a única maneira de impedir catástrofes devidas ao efeito estufa seria uma rápida moratória ao uso de combustíveis fósseis, o que é economicamente inviável.
Uma transição para energia solar exigiria, para satisfazer uma população de 20 bilhões de indivíduos aos atuais níveis de consumo de um cidadão americano, de um investimento total de US$ 2 quatrilhões, apenas para a geração de energia, considerados os atuais custos nesse setor específico.

Ou seja, seria necessário um investimento anual equivalente a 3% do produto global, admitindo que este cresça durante dois séculos na mesma medida que a população, de maneira a alcançar o nível de consumo individual do cidadão americano. Todavia é óbvio que uma transição desse tipo, cuja duração pressupõe o esgotamento de combustíveis fósseis, implica uma adaptação da biosfera ao efeito estufa, entre outras. Espécies marinhas serão extintas e regiões litorâneas densamente povoadas serão permanentemente inundadas. Mas esses males são suplantáveis, embora com eventual prejuízo para essas populações. De nossos mares são evaporados cerca de 35 bilhões de toneladas de água por hora, o que corresponde a uma intensidade pluviométrica de 3 m3 de água por dia sobre terra firme, por habitante, no futuro. O problema é, portanto, de distribuição de água e não de escassez. Essa quantidade de água é certamente suficiente para irrigação e uso individual. Também o esgotamento de minerais não deve ser uma preocupação maior. Intensiva reciclagem e término da implantação de infra-estrutura reduzirão, com certeza, a demanda a níveis toleráveis. A enorme abundância de alumínio e ferro (8% e 5% da crosta terrestre, respectivamente), principais materiais estruturais, faz com que nesse segmento nada haja a temer. Na área de comunicações, o elemento fundamental continua a ser o silício, o segundo elemento mais abundante da crosta terrestre. E carbono para plásticos poderá ser obtido da atmosfera ou de florestas artificiais. Somente a extinção do cobre talvez venha a apresentar uma ameaça, mas há sucedâneos. A sequência de utopias, de caráter filosófico-sociológico, desde a "República" de Platão, passando por Thomas More, até aquela de Condorcet, Fourier, Hobbes e Conte, todavia, se desmoronou não por causa de qualquer constrangimento material. Essa fragilidade inerente só começa a ficar aparente após o fracasso da mais fecunda e interinamente vitoriosa de todas as utopias, o marxismo (ou deveríamos dizer os "marxismos"?), que, aliás, pouco se abalou com, e pôde mesmo absorver, movimentos distônicos poderosos como o darwinismo e o freudismo.

Alimento do intelecto
Não há, portanto, razões concretas para o abandono da utopia como alimento moral do intelecto, mesmo quando nos conscientizamos das contingências físicas que tanto assombram cientistas e outros intelectuais. Então por que renunciamos às utopias, até mesmo como meros referenciais, como horizontes que guiam nossas aspirações? Talvez porque finalmente estejamos incluindo em nossas visões a natureza biológica do homem. Esse século 21 será, por certo, o século da biologia, da biologia molecular mais precisamente. E uma das mais espantosas conclusões dessa disciplina é a de que as ações do ser vivo têm como objetivo final a propagação de seu material genético. Demonstra-se, mesmo, que comportamentos aparentemente contraditórios em relação ao "egoísmo" do gene, tais como altruísmo e "amizade", dele, do próprio egoísmo, derivam. Podemos, assim, concluir que o comportamento do homo sapiens, em todos seus aspectos, tem como origem o imperativo procriador. Daí decorre seu comportamento territorial, possessivo, belicoso, conquistador, exclusivista. E esse impulso é tão inequivocamente dominante, embora recôndito, embora dissimulado, que nenhum processo civilizatório poderá jamais neutralizá-lo completamente. Eis por que acabamos por sucumbir a uma distopia, o capitalismo. Chamamos de distopia àquela concepção de uma sociedade inerentemente imperfeita em que os cidadãos não podem almejar paz, igualitarismo e uma qualidade de vida aceitável, sociedades tais como aquela imaginada por Orwell em seu "1984" ou, alternativamente, como a de Huxley, em "Admirável Mundo Novo", ou ainda uma em que seus governantes submetem parcelas significativas de seus membros a salários de R$ 151,00 por mês, para satisfazer as castas privilegiadas. Os números aqui apresentados mostram por que os países já desenvolvidos procuram, embora de maneira ambivalente, manter o "status quo", a própria hegemonia, desenvolvendo mercados, talvez, mas limitando o progresso dos permanentemente em desenvolvimento. Afinal só haveria distribuição igualitária com muito esforço e desprendimento, pois haverá, talvez, neste mundo povoado até seu limite, meios de sobrevivência adequados, mas não haverá fartura.

Arma poderosa
A globalização poderá vir a ser uma arma contra a natural relutância do homem em compartilhar, embora atualmente esteja sendo usada apenas para concentrar riqueza onde ela já predomina.
Em conclusão, qualquer utopia racional para este milênio que vai se iniciar terá que levar em consideração os óbvios constrangimentos materiais aqui considerados e, antes de tudo, a natureza biológica do homem, seu intransigente egoísmo genético. Talvez fosse isso que Manuel e Manuel estivessem pressentindo em 1979 quando, concluindo seu trabalho após 17 anos de pesquisas, puseram suas esperanças de uma sociedade justa na ciência e não na política ou na filosofia.


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