São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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+(d)ebate

Chaui recusa o confronto com a realidade ao discutir ética sem abordar a crise do governo Lula

A traição dos clérigos

DENIS LERRER ROSENFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA

O livro de Marilena Chaui, "Cultura e Democracia - O Discurso Competente e Outras Falas", é uma amostra da persistência de fechados esquemas marxistas de pensamento, que resistem a qualquer revisão, recusando-se a um confronto com a realidade, que chama pelo nome de governo Lula e de ascensão do PT ao poder. Sempre a serviço da "causa", a autora termina referendando o que um pensador francês, Julien Benda, denominava de a "traição dos clérigos": a traição de intelectuais que não mostram nenhum comprometimento com a verdade. A edição ampliada traz novos artigos, alguns recentes, um dos quais intitulado "Ética, Violência e Política", que consegue o prodígio de suscitar a questão da ética sem nenhuma menção aos escândalos éticos do governo petista e do seu abandono da bandeira que o orientava até então. O floreio conceitual tem como propósito omitir o problema ético básico que perpassa a sociedade brasileira, devido à corrupção sistêmica instalada por um projeto "socialista", em nome da luta contra a "hegemonia do neoliberalismo". Logo, a questão não residiria naquilo que o governo Lula fez e faz, mas na "lógica do mercado", que tudo dominaria e controlaria. Escamoteia-se a responsabilidade dos que agiram em proveito do partido, aparelhando o Estado e pondo-o a serviço de um projeto de submissão da sociedade em seu conjunto. A violação do sigilo bancário de um humilde trabalhador, o fato de o governo ter colocado instrumentos do Estado para investigá-lo ilegalmente e a falta de respeito para com as liberdades individuais são o resultado desse tipo de discurso, que não afirma a liberdade senão retoricamente, para logo descartá-la. O livro aparentemente defende a democracia, porém a considera "formal", apregoando a necessidade de uma "democracia participativa". O discurso já é conhecido: defesa dos sovietes e dos conselhos populares como modo de defesa, entre nós, do orçamento participativo. Trata-se do controle do partido sobre a participação popular e do controle do Estado por outros conselhos, como o da proposta do Conselho Federal de Jornalismo. Se conselhos como esse tivessem vingado, o valerioduto, o mensalão e Nildo não teriam existido. A corrupção partidária teria corrido sem limites, ao abrigo dos holofotes da mídia, não formando a opinião pública. A democracia é necessariamente formal, pois baseada na idéia universal de moralidade e de liberdade individual.

Fim das liberdades
Para dar um pretenso conteúdo ao caráter formal da democracia, a autora não cessa de apelar para os movimentos sociais, como se estes fossem capazes de transformar a natureza da democracia representativa. Se pensarmos no movimento das mulheres enquanto movimento social, poderemos constatar que suas justas demandas foram plenamente incorporadas pela democracia representativa, fundada na economia de mercado. Se pensarmos no MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) enquanto movimento social, constataremos, por sua vez, que o seu objetivo consiste na própria destruição da democracia, na abolição da economia de mercado e, logo, na eliminação das liberdades. O modelo desse "movimento social" são a ditadura cubana, Che Guevara e Hugo Chávez. Significativa de sua preocupação ética é o elogio que a autora faz a Alain Badiou [filósofo francês] em seu ensaio "Sobre o Mal", como se esse autor tivesse podido equacionar a questão do bem a partir da idéia da "autoconstrução do sujeito ético". Ora, para esse autor, o critério da moralidade da ação reside na coerência do sujeito nesse processo de autoconstrução. Se a coerência é o critério da moralidade, Stálin e Hitler seriam pessoas que perseguiriam concretamente o bem. O autor em questão, diga-se de passagem, foi um ferrenho defensor, na França, da ditadura de Pol Pot e comparsas no Camboja, que se traduziu no genocídio de metade da população daquele país. É esse o exemplo que serve como referência? À força de insistir no caráter de classe do "discurso competente", voltado para a opressão dos mais desfavorecidos, a autora termina por apagar a distinção entre conhecimento e não-conhecimento, entre pensamento e não-pensamento, como se a ciência, a arte e a filosofia não tivessem critérios objetivos de avaliação. Uma vez que o objeto do livro se torna a crítica do discurso competente, ele abre caminho para o elogio da ignorância, tal como concretizado nos discursos "quase-lógicos" do presidente Lula. Não é casual que o nosso presidente tanto se gabe de sua ignorância, pois parte dos intelectuais o justificava. Serviram à causa e desserviram à verdade e ao país.


DENIS LERRER ROSENFIELD é professor titular de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática), entre outros livros.


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