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+(d)ebate
Chaui recusa
o confronto
com a
realidade ao discutir
ética sem abordar
a crise do
governo Lula
A traição dos clérigos
DENIS LERRER ROSENFIELD
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
livro de Marilena
Chaui, "Cultura e
Democracia - O
Discurso Competente e Outras Falas", é uma amostra da persistência de fechados esquemas
marxistas de pensamento, que
resistem a qualquer revisão, recusando-se a um confronto
com a realidade, que chama pelo nome de governo Lula e de
ascensão do PT ao poder.
Sempre a serviço da "causa",
a autora termina referendando
o que um pensador francês, Julien Benda, denominava de a
"traição dos clérigos": a traição
de intelectuais que não mostram nenhum comprometimento com a verdade.
A edição ampliada traz novos
artigos, alguns recentes, um
dos quais intitulado "Ética,
Violência e Política", que consegue o prodígio de suscitar a
questão da ética sem nenhuma
menção aos escândalos éticos
do governo petista e do seu
abandono da bandeira que o
orientava até então.
O floreio conceitual tem como propósito omitir o problema ético básico que perpassa a
sociedade brasileira, devido à
corrupção sistêmica instalada
por um projeto "socialista", em
nome da luta contra a "hegemonia do neoliberalismo".
Logo, a questão não residiria
naquilo que o governo Lula fez
e faz, mas na "lógica do mercado", que tudo dominaria e controlaria. Escamoteia-se a responsabilidade dos que agiram
em proveito do partido, aparelhando o Estado e pondo-o a
serviço de um projeto de submissão da sociedade em seu
conjunto.
A violação do sigilo bancário
de um humilde trabalhador, o
fato de o governo ter colocado
instrumentos do Estado para
investigá-lo ilegalmente e a falta de respeito para com as liberdades individuais são o resultado desse tipo de discurso,
que não afirma a liberdade senão retoricamente, para logo
descartá-la.
O livro aparentemente defende a democracia, porém a
considera "formal", apregoando a necessidade de uma "democracia participativa". O discurso já é conhecido: defesa
dos sovietes e dos conselhos
populares como modo de defesa, entre nós, do orçamento
participativo. Trata-se do controle do partido sobre a participação popular e do controle do
Estado por outros conselhos,
como o da proposta do Conselho Federal de Jornalismo.
Se conselhos como esse tivessem vingado, o valerioduto,
o mensalão e Nildo não teriam
existido. A corrupção partidária teria corrido sem limites, ao
abrigo dos holofotes da mídia,
não formando a opinião pública. A democracia é necessariamente formal, pois baseada na
idéia universal de moralidade e
de liberdade individual.
Fim das liberdades
Para dar um pretenso conteúdo ao caráter formal da democracia, a autora não cessa de
apelar para os movimentos sociais, como se estes fossem capazes de transformar a natureza da democracia representativa. Se pensarmos no movimento das mulheres enquanto movimento social, poderemos
constatar que suas justas demandas foram plenamente incorporadas pela democracia representativa, fundada na economia de mercado.
Se pensarmos no MST (Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra) enquanto
movimento social, constataremos, por sua vez, que o seu objetivo consiste na própria destruição da democracia, na abolição da economia de mercado
e, logo, na eliminação das liberdades. O modelo desse "movimento social" são a ditadura
cubana, Che Guevara e Hugo
Chávez.
Significativa de sua preocupação ética é o elogio que a autora faz a Alain Badiou [filósofo
francês] em seu ensaio "Sobre o
Mal", como se esse autor tivesse podido equacionar a questão
do bem a partir da idéia da "autoconstrução do sujeito ético".
Ora, para esse autor, o critério
da moralidade da ação reside
na coerência do sujeito nesse
processo de autoconstrução.
Se a coerência é o critério da
moralidade, Stálin e Hitler seriam pessoas que perseguiriam
concretamente o bem. O autor
em questão, diga-se de passagem, foi um ferrenho defensor,
na França, da ditadura de Pol
Pot e comparsas no Camboja,
que se traduziu no genocídio de
metade da população daquele
país. É esse o exemplo que serve como referência?
À força de insistir no caráter
de classe do "discurso competente", voltado para a opressão
dos mais desfavorecidos, a autora termina por apagar a distinção entre conhecimento e
não-conhecimento, entre pensamento e não-pensamento,
como se a ciência, a arte e a filosofia não tivessem critérios objetivos de avaliação.
Uma vez que o objeto do livro
se torna a crítica do discurso
competente, ele abre caminho
para o elogio da ignorância, tal
como concretizado nos discursos "quase-lógicos" do presidente Lula. Não é casual que o
nosso presidente tanto se gabe
de sua ignorância, pois parte
dos intelectuais o justificava.
Serviram à causa e desserviram
à verdade e ao país.
DENIS LERRER ROSENFIELD é professor titular de filosofia na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e autor de "Política e Liberdade
em Hegel" (Ática), entre outros livros.
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