São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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A indústria do medo




Empresas de segurança faturam com a crescente sensação de pavor da população, que não se justifica pelas estatísticas

FÁBIO VICTOR
DE LONDRES

Enquanto políticos se acusam pelo ônus da violência em São Paulo, a geógrafa Vania Ceccato enxerga outros responsáveis pela crise. A tolerância cultural do Brasil à violência e o isolamento dos ricos em "bolhas de segurança" estão no cerne do caos, avalia ela, especialista em geografia do crime que divide sua pesquisa entre o Instituto de Criminologia da Universidade de Cambridge (Inglaterra), onde concluiu pós-doutorado, e o Departamento de Estudos Urbanos do Instituto Real de Tecnologia de Estocolmo (Suécia), onde fez o doutorado.
Vivendo há 12 anos fora do Brasil (Suécia, Áustria e Inglaterra), a paulista de Rio Claro diz abaixo que o grande equívoco dos governantes do país é desvincular a segurança pública das demais políticas sociais.

FOLHA - Parece haver no Brasil, especialmente nas classes mais abastadas, uma incredulidade com os fatos dos últimos dias. Por quê?
VANIA CECCATO - Há vários fatores: primeiro, o Brasil é uma sociedade de classes e, como tal, certos grupos só irão reagir quando se sentirem diretamente ameaçados. As classes mais abastadas no Brasil vivem em "bolhas de segurança", o que é um sinal de status. Carros saem de manhã dos condomínios fechados (bolha 1) em direção a escolas privadas, com guardas nos portões (bolha 2) e, mais tarde, seguem a áreas de diversão ou áreas privadas de lazer (bolha 3). O conceito básico de cidade, "urbis", "lugar de convívio coletivo", tem desaparecido. Segundo, o Brasil é um país com alta tolerância à violência.


No Brasil, muitos não consideram o contexto em que a violência é gerada, como se ela surgisse do nada


Estamos acostumados, desde pequenos, a vivenciar a violência, nos âmbitos familiar e escolar. No países escandinavos, por exemplo, qualquer forma de violência é inaceitável. No Brasil, atividades de lazer são recheadas de violência, personagens de novelas se atacam fisicamente em horário nobre, e isso é considerado "entretenimento". Nesse contexto, o papel da polícia, quando repressivo e violento, é considerado aceitável, senão encorajado, por boa parte da sociedade. Num processo de ação e reação, violência gera violência, que nos últimos dias tem sido orquestrada pelo crime organizado, mas que tem se espalhado de forma desordenada, afetando principalmente quem vive fora das "bolhas de segurança".

FOLHA - A geografia de São Paulo é bem distinta daquela do Rio, onde a polícia em tese consegue ter uma noção dos limites dos encraves dos criminosos (os morros). Em São Paulo, esses limites parecem invisíveis e, após essa onda de violência, é como se a polícia se perguntasse: "Por onde começaremos"?
CECCATO - Exatamente. Enquanto no Rio os pontos de drogas são dominados pelos barões dos morros, em São Paulo você tem grupos "pequenos" espalhados pela cidade.

FOLHA - Como brasileira há muito tempo fora do país, qual é a sua percepção sobre a real dimensão da criminalidade no país?
CECCATO - Não diria que a falta de segurança (ou sua percepção) no Brasil é um mito mas também não afirmo que é totalmente baseada na realidade. A taxa de homicídios tanto na capital quanto no Estado de São Paulo tem caído desde 1995. Lesão corporal tem aumentado, o que indica que a violência tem se tornado menos letal. Esses indicadores deveriam afetar o quanto a população se sente segura, mas o sentimento de segurança é determinado por outros fatores, que vão além da criminalidade propriamente dita. Nas últimas décadas, a segurança se tornou uma mercadoria. Essa indústria cresceu muito e tem atingido diferentes estratos da sociedade que podem pagar por isso. As cidades se transformaram. Cada vez que volto à minha cidade natal, vejo que os muros que rodeiam as casas estão mais altos e, as fachadas das casas, hermeticamente fechadas. Fios elétricos, cães de guarda, guardas-noturnos, cadeados, grades, alarmes, porteiros... Tudo faz parte dessa indústria que ajuda a manter o nível de insegurança latente.

FOLHA - O que há de mais errado na prevenção à violência no Brasil em relação a países desenvolvidos?
CECCATO - É considerar a violência (ou a falta de segurança) algo separado das outras políticas sociais. A prevenção deveria ser feita, como em muitos países europeus, por meio de mecanismos existentes na sociedade, como políticas de trabalho a todos, saúde, escolas, moradia. No Brasil, muitos não consideram o contexto em que a violência é gerada, como se surgisse do nada, e é assim que ela é considerada pelas políticas de segurança brasileiras.


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