São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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Trem descarrilado

Da sonolência ao desenvolvimento, no século 20, construção ideológica da "paulistanidade" entra em crise na pós-modernidade

FRANCISCO ALAMBERT
ESPECIAL PARA A FOLHA

No século 19, o espírito paulista não ia nada bem. A ninguém ainda ocorrera dar significado transcendental à "personalidade" daquela desimportante vila. O "progresso" ainda não chegara de verdade e a cidadezinha tacanha da segunda metade do século 19 era a imagem do inferno de tal modo que só mesmo o capeta, em pessoa, seria o "espírito" de São Paulo, como se vê no melhor texto escrito nesse momento, o "Macário", de Álvares de Azevedo: "Macário - Por acaso também há mulheres ali? Satã - Mulheres, padres, soldados e estudantes. As mulheres são mulheres, os padres são soldados, os soldados são padres, e os estudantes são estudantes: para falar mais claro: as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isto salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante, tu. Macário - Esta cidade deveria ter o teu nome. Satã - Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais, esta terra é devassa como uma cidade; insípida como uma vila e pobre como uma aldeia (...)".

Caipiras e progresso
Em poucas décadas, o tédio e o desprezo irônico irão se modificar radicalmente. Os anos do progresso trazido pelo café e sua república, pela abolição, pelos imigrantes e por um incipiente processo de industrialização promoverão a maior transformação urbana da história das Américas e criará na velha (agora aparentemente nova) elite local o desejo de inventar uma outra imagem de seu mundo em transformação. Durante o século 20, a mitologia das identidades urbanas irá formar as imagens do "paulistanismo", voltado ora para o passado orgulhoso dos caipiras e bandeirantes, ora para a locomotiva do progresso do país. Em 1918, "Urupês", de Monteiro Lobato, criaria o tipo ideal do caipira, que logo se tornaria o melancólico e pobre Jeca Tatu, que, por sua vez, "no afã da mobilização nacionalista", nas palavras do historiador Nicolau Sevcenko, "acabaria adquirindo características simpáticas e o seu estado de penúria seria atribuído a administrações incompetentes". Antes vergonha, agora orgulho da paulistanidade, o paulista de raiz encontrará no espetáculo dramático-musical de Afonso Arinos, "O Contratador de Diamantes", sua consagração espiritual.


De um lado, o maravilhoso mundo dos MBAs; de outro, os pobres também avançaram à mendicância


Enquanto a burguesia idealizava sua identidade nas cadeiras do Teatro Municipal, os imigrantes e migrantes trabalhavam, aproveitando-se de um período de desenvolvimento do qual não estavam excluídas péssimas condições de vida em bairros "novos", insalubres, vítimas de alagamentos constantes e doenças. Os presos viviam sob a violência extrema da polícia (que à época era reconhecida pela elite "como uma das melhores do mundo"), trancafiados em prisões que recebiam epítetos significativos como "geladeiras" ou "postos da morte". Em 1919, presos enviaram uma carta ao redator do jornal "O Estado de São Paulo", recolhida por Sevcenko, em que relatavam estar "detidos inopinadamente (...) recolhidos às dezenas em prisões que não comportam nem a metade desse número e o nosso leito é o chão duro". Mas no afã modernizante trazido pelo café e pelas crises do capitalismo internacional, que então nos favoreciam, caberá aos modernistas dos anos 20 criar o mito do progresso, da cidade cosmopolita e aberta destinada a guiar o Brasil ao futuro, prenunciando o desejo de criação de um Estado forte e "científico" a partir de São Paulo. Já estávamos prontos para fazer jus ao nosso lema ideal: "Non Ducor, Duco" (não sou conduzido, conduzo). Em latim, o orgulho dos paulistanos, cantado em verso pelo poeta Guilherme de Almeida, dava a versão erudita da máxima modernizadora da "locomotiva do Brasil". Daí para o brasão desse novo Estado pujante -e derrotado em 1932- foi um pulo: "Pro Brasilia Fiant Eximia" (Pelo Brasil Façam-se Grandes Coisas). Nascia então o arrogante espírito "gente que faz" e que confia no progresso. Progresso que não poderia dispensar seu aspecto científico e prospectivo. Desde os anos 20, se imaginava a criação da universidade moderna (que ocorrerá quando da fundação da USP na década seguinte) e do ensino do "novo homem".

Novo cosmopolitismo
Quando os novos ventos futuristas reapareceram depois da Segunda Guerra, com o sonho modernizante dos anos 50, o caminho para os trilhos da locomotiva já estava dado e parecia ter vindo para ficar. Assim, o cenário que, décadas depois, e com uma ditadura de 21 anos no meio, serviria para que as elites intelectuais criassem seus novos partidos, como o PSDB e o PT, já estava erguido. Com a globalização, uma nova onda de "cosmopolitismo" de fachada surgiu nos anos 90 para dinamitar o novo espírito moderno paulista. Aderindo sem pestanejar ao regime globalitário que jogou o Estado (e, especialmente, a cidade) na "privatização" e "flexibilização" da barbárie, a "elite" política, intelectual e financeira bem-pensante garantiu sua hegemonia e repôs, de novo, a modernização exclusiva para si. De um lado, o maravilhoso mundo dos MBAs, das batatas fritas importadas, da música tecno, dos celulares que tiram fotos para o blog nosso de cada dia e das conferências sobre marketing ou sobre o fim da história criavam o novo mito paulistano da "pós-modernidade" na mesma medida em que o Estado empobrecia.

Espírito devasso
De outro lado, os pobres também puderam avançar em direção à mendicância, à "terceirização" (sem as "regalias do passado" moderno) ou ao assalto a mão armada. E dentro das prisões de segurança cada vez mais "máxima", herdeiras sofisticadas dos postos da morte dos anos 20, puderam racionalizar sua ação para dentro do mundo que os excluiu. Nesse novo cenário, se não há mais locomotiva, para que serviria São Paulo e seu orgulho bandeirante-modernista? Parodiando Satã, nosso velho conhecido, o "espírito paulista" é, mais do que nunca, devasso, insípido e, sobretudo, cada vez mais pobre. Neste Estado, quem conduz quem? Quando ricos fazem contrabando de roupas caras ou pagam com o caixa dois de suas empresas e, bancos, o caixa dois da corrupção do Estado (que nem na República Velha foi tão "paulista"), quando os traficantes de verdade (os que possuem os aviões ou as fazendas onde eles pousam, empresas de transportes, falam inglês, trocam dólares, têm contas em paraísos fiscais e, juntamente com seus filhos, são os consumidores principais) não aparecem nos noticiários policiais, mas nas colunas sociais da São Paulo pós-moderna, quem pode se surpreender que o partido mais forte seja o da marginalidade? Hoje, como na época do "Macário", nada é o que parece ser.
FRANCISCO ALAMBERT é professor de história social da arte e história contemporânea na USP e autor, com Polyana Canhête, de "Bienais de São Paulo" (ed. Boitempo).


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