São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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+(c)omportamento

Escrito em forma de e-mails, "As Garotas de Riad" se tornou um best-seller no Oriente Médio ao descrever as tribulações de quatro garotas da alta sociedade e mostrar o choque de culturas

Bridget Jones árabe

ROULA KHALAF

É possível que a maioria dos adolescentes do mundo não apenas pense, sonhe ou se angustie em seu primeiro namoro, mas que também tenha um, provavelmente seguido de outro e talvez alguns mais. Na Arábia Saudita você pode sonhar e se preocupar, mas poderá muito bem acabar tendo só um namoro, especialmente se for mulher, e provavelmente sua participação será pouco mais que secundária.
Os casamentos em geral são arranjados, e não é raro um casal se encontrar pela primeira vez depois de seus pais concordarem com a união. Grande parte da vida social saudita parece ser construída em torno da idéia de que meninas e meninos não devem se conhecer, nem mesmo para se prepararem para o casamento. Não há cinemas, concertos ou festas para ir. Os rapazes solteiros, considerados perturbadores, não podem ir aos shopping centers às quintas, a "noite familiar" e a mais agitada da semana, e devem comer em áreas separadas dos restaurantes.
A determinação e a tecnologia, porém, estão facilitando um pouco a vida dos jovens sauditas. A televisão por satélite os bombardeia com imagens do modo de vida de outros povos. Os telefones celulares e bate-papos na internet tornaram menos difícil conhecer o outro, depois de as famílias acertarem os planos de casamento.
Nesse choque de séculos, entra um romance que resume tudo. Escrito como uma série de e-mails, "As Garotas de Riad" registra as tribulações de quatro garotas da alta sociedade. Elas usam roupas caras de grife, salpicam suas frases com gírias americanas, fazem referências ao seriado "Sex and the City" e às vezes bebem champanhe. Mas, debaixo disso tudo, continuam vivendo em seu mundo saudita, abafado pela severa interpretação do islamismo, que nega a expressão dos sentimentos mais naturais.
Embora os estilos de vida de Sadeem, Gamrah, Mashael e Lamees sejam mais elitistas e muito mais liberais do que os de muitas outras sauditas, sua experiência é essencialmente a da juventude local.

Mercado negro
"As Garotas de Riad" foi escrito por Rajaa al Sanie, uma estudante de odontologia pertencente a uma família de profissionais e que viveu a maior parte de sua vida em Riad, tendo freqüentado a Universidade Rei Saud. Uma espécie de "Diário de Bridget Jones" árabe, o romance ganhou popularidade em todo o mundo árabe e é um best-seller nas feiras de livros do Oriente Médio. Publicado em Beirute em setembro passado, foi oficialmente proibido de circular na Arábia Saudita até março passado, uma proibição que gerou ainda mais interesse.
Na própria Arábia Saudita já circularam dezenas de milhares de exemplares, obtidos na web ou no mercado negro. Ele é lido por homens e mulheres, seu impacto foi discutido nos jornais e na TV, e Rajaa se tornou uma celebridade.
Numa troca de e-mails comigo, Rajaa insiste em que "As Garotas de Riad" não se baseia em sua vida ou nas de suas amigas, mas em histórias que ela ouviu. "Sinto desapontá-lo, mas não encontrei o verdadeiro amor", diz. Ela começou a escrevê-lo seis anos atrás como passatempo e pretende escrever outros romances enquanto continua, nos EUA, sua pós-graduação em odontologia.

Homossexualidade
No livro, três das garotas têm relacionamentos que dão muito errado, frustrados por famílias conservadoras e homens conservadores. As garotas se reúnem (às vezes levando um namorado) na casa de Um Nuwayyer, uma vizinha amiga que compartilha seus segredos e as aconselha. O filho de Um Nuwayyer é gay. Seu marido a deixou com sua segunda mulher, depois de espancar o filho.
A homossexualidade é apenas um dos tabus que a autora discute no livro. Outro é a hostilidade que até os menos conservadores na sociedade sunita wahabita sentem pela minoria muçulmana xiita.
Lamees se recusa a ouvir o conselho de sua irmã e faz amizade com Ali, um xiita.
Mas o caso termina quando a polícia religiosa os encontra juntos num café. "Pobre Ali. Era um bom rapaz e, francamente, se não fosse xiita, ela o teria amado", diz a narradora, que é retratada como uma amiga das quatro garotas.
Talvez seja mais chocante o fato de Rajaa ousar mostrar que as garotas sauditas são ávidas para conhecer rapazes, apesar das barreiras sociais opressivas. "Na entrada do shopping, as garotas seguiram um grupo de rapazes que hesitavam diante dos seguranças. Os garotos derrotados se dispersaram, exceto um, que andou na direção de Mashael. Ele achou que ela e Lamees eram garotas corajosas em busca de aventura. Perguntou se poderia entrar com elas como um membro da família, em troca de mil riais. Mashael ficou chocada com a ousadia, mas logo concordou."
Engraçado e trágico, tolo e sério, o livro é escrito numa mistura de árabe coloquial e clássico. Alguns o consideram um melodrama barato. Outros dizem que é um estudo revelador de uma das sociedades mais fechadas do mundo.
Rajaa não pretendia que fosse uma mensagem social ou política. "Detesto quando as pessoas acham que tentei passar uma mensagem. No mundo árabe, a maioria dos textos é carregada de motivos ou mensagens políticas que os transforma em propaganda, e odeio que meu livro seja classificado como tal. Deixo que o leitor tire suas próprias conclusões."
Talvez. Mas muitos sauditas vêem no livro um grito emocionado pelo fim da interferência religiosa na vida das pessoas. "O livro expôs a sociedade", disse-me um saudita que é fã de Rajaa. "Ele diz que você não pode impedir as pessoas de amar, que os telefones e a web facilitaram isso, que os pais podem deixar as garotas na porta das universidades, mas elas podem ser apanhadas por rapazes."
Rajaa diz que não esperava que seu livro, que será publicado em inglês no fim deste ano, causasse uma reação tão furiosa. Mas o mais surpreendente é que ele provocou um debate, em vez de uma reação religiosa violenta. É verdade que Rajaa foi vilipendiada por textos conservadores nos bate-papos na internet, mas não houve uma condenação oficial de sua obra.
Quatro anos atrás haveria um enorme escândalo e ela talvez tivesse sido presa.
De certa maneira, "As Garotas de Riad" reflete a mudança dos tempos. É em parte a luta entre as forças religiosas que levaram a Arábia Saudita à xenofobia cultural e as vozes mais liberais que desejaram libertar a sociedade nos últimos anos.
Até os atentados de 11 de setembro de 2001, a família real Al Saud deu aos clérigos virtualmente liberdade total para controlar a sociedade saudita, enquanto seus próprios membros tratavam de governar o reino e viver suas vidas, muitas vezes com ostentação. Mas, ao descobrir que essa política gerou jovens fanáticos, o governo vem tentando, lentamente e às vezes com hesitação, cercear os poderes do clero.
Em agosto passado, a ascensão do rei Abdullah -que, aos 82 anos, parece querer regulamentos sociais mais brandos- reforçou essa tendência. Seu ministro do Trabalho e íntimo assessor, Ghazi al Gosaibi, um poeta com vários livros proibidos na Arábia Saudita, aprovou a obra de Rajaa com um comentário impresso na contracapa: "Este livro merece ser lido -espero muito dessa romancista". Os islâmicos ficaram furiosos com o fato de que uma figura tão próxima do rei manifestasse essa opinião.

Quebrando tabus
Um ativista islâmico proeminente, Mohsen al Awaji, usou o apoio de Al Gosaibi ao livro para fazer uma crítica escorchante ao ministro num artigo publicado na web. Al Awaji foi punido severamente e preso por um curto período, uma reação exagerada que causa decepção.
O governo está conduzindo a descontração social -quer patrocinar mais eventos culturais, e hoje há mais permissão para livros, incluindo alguns que discutem crenças religiosas além do wahabismo. Mas filmes e concertos ainda são proibidos, e as mulheres ainda não podem dirigir carros (as que os possuem têm de estar sozinhas, geralmente com um motorista estrangeiro).
Apesar de Rajaa insistir que não é sua intenção mudar nada disso, ela deu uma pequena contribuição à guerra de libertação dos jovens sauditas. "Todos ficam surpresos com minha ousadia por escrever isso e me acusam de quebrar tabus que não costumamos discutir em nossa sociedade com tal franqueza", escreve a narradora em "As Garotas de Riad".
"Mas tudo não precisa ter um início? Talvez eu encontre alguns seguidores da minha causa hoje, talvez não, mas duvido que encontrarei muitos opositores daqui a meio século."


ROULA KHALAF é editor para o Oriente Médio do "Financial Times", onde saiu este texto.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


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