São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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+ brasil 503 d.C.

Luiz Costa Lima

O gênero das multidões


Obra coletiva que está saindo na Itália pretende ser o estudo mais amplo já publicado sobre o romance, abrangendo suas realizações na Europa, Ásia e América Latina, além de sua relação com o cinema


No fim do ano passado, saiu na Itália o primeiro de cinco volumes de obra exclusivamente dedicada ao romance. Quando a série "Il Romanzo" (ed. Einaudi) estiver concluída, será a indagação mais ampla já dedicada ao gênero. Além de sua incidência européia (com destaques para o romance medieval, o protomoderno e as variantes do moderno), ainda é considerada sua presença oriental (chinesa e japonesa), latino-americana e sua relação com o cinema (no caso latino-americano, é lamentável que a autora, embora cite Alencar, apenas considere o romance hispânico do século 19, o que lhe permite formular a tese da correspondência entre "Eros" e "polis" -"o desejo pessoal como motor tanto dos projetos pessoais quanto dos patrióticos"-, que a simples leitura de Machado de Assis desmentiria). Embora lamentando que a corda tenha arrebentado para o nosso lado, é inevitável que, em uma obra coletiva, os textos não tenham o mesmo nível. Contudo, no caso do primeiro volume da série, "La Cultura del Romanzo", o saldo é altamente positivo. Diria mesmo que este livro apresenta ensaios desde já de leitura obrigatória para quem se tenha por especialista no campo. Entre os textos decisivos se incluem, no mínimo, as colaborações de Jack Goody ("Da Oralidade à Escrita -Reflexões Antropológicas sobre o Narrar"), de Walter Siti ("O Romance sob Acusação"), de Sergio Givone ("Dizer as Emoções - A Construção do Romance Moderno") e de seu editor, Franco Moretti ("O Século Sério"). Na impossibilidade de me aproximar da riqueza das 880 páginas do volume publicado, indico sua divisão interna: ele compreende quatro seções -"o romance se espacializa", "narração e mentalidade", "gente que escreve, gente que lê", "recontar a modernidade"-, cada uma ainda abrangendo abordagens complementares, com a leitura de obras particulares, na última das quais -"Experimentos com a Forma, 1900-1950"- José Luiz Passos apresenta o "Macunaíma". Dentro das seções referidas, há pelo menos três núcleos de tematização extraordinária: (a) as vicissitudes experimentadas pelo sujeito, (b) o controle e a censura a que o gênero foi submetido, (c) a importância transcultural da questão da narrativa. Não podendo tratá-los em separado, procurarei abrangê-los sinteticamente.

Dupla dimensão
O primeiro tema encontra seus maiores apoios nos textos de Givone e Moretti. Sergio Givone considera as vicissitudes do sujeito a partir do primeiro romance moderno, o "Dom Quixote". "Quanto mais o mundo se faz para ele [..." miragem, tanto mais aparece verossímil e carregado de muitos segredos escondidos e vice-versa, quanto mais o sublime e o extraordinário inquietam, tanto mais ele [..." se extravia em sua êxtase de fantasias." Ao duplo sentido em que o "Quixote" se enraíza correspondem as duas dimensões que o gênero assumirá (a dimensão fantástica do que em inglês guardará o nome de "romance" e a dimensão realista da "novel", a dominar a partir do século 18). Dupla dimensão que Givone e outros colaboradores associarão seja à problemática social, seja à do indivíduo consigo mesmo. Dimensão social: o romance é o gênero por excelência da burguesia. Como responsável pelo "século sério", a burguesia proporá, nos termos de Auerbach, recordados e desenvolvidos por Moretti, a "imitação séria da vida". Esta, para se cumprir, suporá a descoberta de uma via narrativa média entre o sério e o cômico (Diderot), que evitará as aventuras extremas e implicará a reiteração de acidentes comuns; ou seja, a dominância do cotidiano. O romancista então explora "uma espécie de neutralidade narrativa" (Moretti). Mas tal opção, em que Defoe será pioneiro e Jane Austen, grande exploradora, abrindo a via para o realismo, não impugna a retomada da ambiguidade cervantina. Como não perceber que Emma Bovary, substituindo gigantes e Amadizes por um sentimentalismo de colégio de freiras, é um Quixote de saias? O desvio pela fantasia perturbava a "imitação séria" e, ao mesmo tempo, era estimulada pela produção em escala industrial de sonhos a bom preço. Ou seja, era mesmo na condição de gênero da burguesia que o romance se abria para a matéria do consumo -o consumo de sonhos baratos. Em suma, o "Quixote" e "Robinson Crusoe" [de Defoe] são figuras paradigmáticas de uma contradição entranhada no próprio gênero.

O caminho do teatro
A essa contradição acrescenta-se outra: ela concerne ao próprio ideal do homem burguês. O caso exemplar então se desloca para o "Wilhelm Meister", de Goethe: "Que me apraz saber fabricar um bom ferro se meu interior está cheio de escórias?", pergunta-se Wilhelm. No entanto não é no segredo da consciência, mas sim no mundo, que se decide o destino do homem. O mundo é a peça capital, reflete o personagem, porque, ao passo que o nobre nasce nobre, ao burguês cabe tornar-se reconhecido pelo que faça.
Diante do impasse, como poderá Wilhelm pretender o seu "desenvolvimento harmonioso"? Não, ele está reservado ao nobre. Resta-lhe o caminho do teatro. A ficção afirmada não afirma, pois, o sujeito, mas implica a sua desintegração. Daí a proximidade do personagem de Goethe com o homem do subsolo de Dostoiévski. A consciência se converte em doença, a "hipertrofia da consciência". Em suma, a "seriedade burguesa" acentua os fatores que internamente a desagregam. A descoberta do cotidiano se converte em revelação de sujeitos atarefados e progressivamente desintegrados.
O breve esboço acima projeta uma sombra sobre os dois outros núcleos destacados: controle e censura, função transcultural da narrativa. Enxugo ao máximo a síntese. Goody observa que, ao contrário do que se costuma supor, as sociedades iletradas não são abundantes de narrativas.
Assim se dá por motivo que importa, no Ocidente, para o caráter relativamente recente do romance: a desconfiança comum quanto à "fiction". "A difusão da literatura", escreve Goody, "não cancela a desconfiança quanto à ficção". Sua frase pode ser tomada como epígrafe para uma extensa demonstração: "A narração sempre foi uma atividade ambígua, que comportava o "narrar histórias" no sentido de coisas não verdadeiras, se não de verdadeiras mentiras". Daí a demora com que o romance entra em cena. Daí os mecanismos de censura, a exemplo da proibição pelo rei espanhol, em 1553, de que as colônias importassem livros de cavalaria e que os índios as lessem.
E os mecanismos de controle. Seu primeiro exemplo é dado pelo próprio Quixote, enlouquecido por crer na veracidade das aventuras de seus fantásticos heróis. Mecanismos de controle -não a proibição pura e simples, imposta pela censura- que atravessam o Setecentos e o Oitocentos -o "século sério", como Moretti bem o chama. Seria o caso de então perguntar: estamos hoje livres do controle ou não sabemos reconhecê-lo? Mas isso já seria outra história.

Onde encomendar
"La Cultura del Romanzo" (62 euros), primeiro volume da série "Il Romanzo", pode ser encomendado na livraria Italiana (av. São Luís, 192, loja 18, CEP 01046-913, SP, tel. 0/xx/11/3259-8915). O segundo volume da série ("Le Forme", 67 euros) também já está disponível para venda.

Luiz Costa Lima é ensaísta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), autor de "Vida e Mímesis" (ed. 34) e "Mímesis - Desafio ao Pensamento" (Civilização Brasileira), entre outros. Escreve regularmente na seção "Brasil 503 d.C.".


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