São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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FRONTEIRAS IMAGINÁRIAS


ILUMINISMO GERMINOU O COSMOPOLITISMO LINGUÍSTICO E CULTURAL DA EUROPA ANTERIOR A 1789 E ANUNCIOU A UNIFICAÇÃO MONETÁRIA DO CONTINENTE NO SÉCULO 21


Reprodução
Caricatura francesa representando todos os gêneros teatrais


por Roberto Darnton

O advento do euro traz à tona indagações fundamentais: a nova moeda vai unificar a Europa? O que mantém a Europa unida? Como a Europa pode se manter coesa, como comunidade? Pensamos primeiramente nos conquistadores: César, Carlos Magno, Napoleão, Hitler. Mas os impérios deles ruíram, e a geografia não parou de mudar. A Europa terminava nas florestas germânicas, numa época, e nos Urais, em outra. Ela não tinha fronteiras naturais nem mesmo no seu lado ocidental, onde os britânicos, quando partem para a França de carro, ainda dizem que estão indo à Europa.
A Europa é, na realidade, um estado mental. Ela começou como mito, com o rapto de Europa, filha de Agenor, em Tiro, e evoluiu para transformar-se num modo de vida fundamentado no sentimento de fazer parte de uma civilização comum. Essa mentalidade coletiva se desenvolveu por meio do próprio processo civilizador, a experiência compartilhada de viver sob a lei romana, a religião cristã e a cultura secular desenvolvida durante o Iluminismo.
Essa cultura comum se desfez no século 19, quando a Europa se dividiu em Estados-nações, mas seus princípios resistiram. Tendo sido formulados por filósofos de toda parte, desde Kant, em Königsberg, até Filangieri, em Nápoles, foram proclamados, em 1789, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: "Os homens nascem e permanecem livres e com igualdade de direitos... Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência contra a opressão". Eles foram reafirmados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948. Eles ainda formam os alicerces da Europa que se reergueu no final do século 20.
A célebre "boutade" de Kissinger, quando perguntou "se eu quiser ligar para a Europa, que número devo discar?", não toca na questão fundamental, porque a Europa corresponde a um conjunto de símbolos e a um sistema de valores. O euro é um deles, mas seu valor vai flutuar de maneira errática, enquanto os valores do Iluminismo estão profundamente enraizados no passado.
Que passado? O passado de quem? A Europa passou os últimos dois séculos se despedaçando, e ainda hoje suas extremidades continuam a se desfazer -casos da Irlanda, da Rússia e dos Bálcãs. Muitos fatores contribuíram para sua dissolução, entre eles as revoluções industriais e as lutas de classe. Mas a força mais destrutiva, a única capaz de mobilizar as massas e atirá-las umas contra as outras, foi o nacionalismo. O quarto de século de guerra que teve início em 1792 [início da era das guerras francesas revolucionárias (1792-1804) e napoleônicas (1804-1815)] pôs fim à Europa como modo de vida e modo de pensamento compartilhado por todos da elite educada.
Assim, para entrar em contato com seu passado comum, os europeus precisam dar um grande salto para trás, passando sobre os séculos 20 e 19, e voltar a olhar a dimensão européia da vida na era do Iluminismo.
Não que alguém queira reviver o século 18. Naquela época, a imensa maioria dos europeus vivia na miséria. A maioria que vivia a leste do rio Elba [que corta todo o norte da Alemanha e termina na República Tcheca" era formada por servos; entre os do lado oeste, a maioria vivia num estado de servidão intelectual, sem saber ler ou afirmar a maturidade intelectual ("Mündigkeit") que Kant identificava com o Iluminismo.
O próprio Iluminismo foi um movimento complexo, repleto de contradições e contracorrentes. Ele nunca contou com a fidelidade da maioria da elite e não pode ser visto como representante do todo da vida intelectual no século 18. Mas propagou os valores que estão na base da Comunidade Européia hoje e o fez de uma maneira que oferece uma alternativa ao nacionalismo -ou seja, desenvolveu um modo de existência pan-europeu, conhecido, na época, como cosmopolitismo.
Uma parte grande do moderno senso do eu deriva tanto da identificação com a nação que mal conseguimos imaginar o cosmopolitismo como modo de vida. O século 18 nos ensina alguma coisa sobre essa experiência. Consideremos o príncipe Eugênio de Savóia (1663-1736), por exemplo. Franco-italiano que lutou pela Áustria, ele reunia três línguas em sua assinatura: Eugenio von Savoie. Frederico 2º, da Prússia, dizia falar francês com cavalheiros e alemão com cavalos, enquanto George 1º falava alemão com seus súditos britânicos. A nacionalidade significava pouco para esses monarcas ou para qualquer outra pessoa que comandasse tropas ou dirigisse a diplomacia no século 18. A guerra fazia parte do jogo do equilíbrio de poder -era questão de cercos e campanhas sazonais, visando à captura de posições estratégicas, muito mais que à conquista de nações.
Era um jogo real jogado em nome de dinastias, como se pode ver pelas guerras de sucessão espanhola (1701-1714), polonesa (1733-1738) ou austríaca (1740-1748). Os Exércitos não possuíam uniformes ou bandeiras comuns. Os soldados da infantaria incluíam uma grande parcela de estrangeiros, e os oficiais se identificavam mais com seus colegas nas fileiras inimigas do que com os homens que comandavam. Quando eram capturados, frequentemente eram trocados por prisioneiros do mesmo escalão do outro lado e devolvidos ao final do verão, quando os combates cessavam e começava a temporada de ópera.


A EUROPA PASSOU OS ÚLTIMOS DOIS SÉCULOS SE DESPEDAÇANDO, E AINDA HOJE SUAS EXTREMIDADES CONTINUAM A SE DESFAZER -CASOS DA IRLANDA, DA RÚSSIA E DOS BÁLCÃS


É claro que os soldados frequentemente sofriam: após a batalha de Malplaquet (1709) [em que o general inglês Malbrough derrotou as tropas francesas], o mais sangrento confronto antes de Borodino [1812, 75 mil baixas, batalha que ocorreu durante a campanha russa de Napoleão", 34 mil homens ficaram espalhados por uma área de dez milhas quadradas, mortos ou feridos. Mas eles não lutaram por uma causa nem para aniquilar um inimigo, e os civis em alguns momentos torciam para o lado oposto. Voltaire (1694-1778) parabenizou Frederico 2º por ter derrotado os franceses em Rossbach [1757, batalha da Guerra dos Sete Anos em que o Exército prussiano surpreendeu os franco-alemães], e Sterne, em sua "Viagem Sentimental" [1768, ed. Nova Fronteira", observou: "Eu deixara Londres (com destino a Paris) de maneira tão precipitada que nem sequer me ocorreu que estávamos em guerra com a França".
Os primeiros indícios de sentimento nacional podem ser detectados na Grã-Bretanha e na França durante a Guerra dos Sete Anos [1756-1763, disputada pela aliança entre Áustria, França, Saxônia, Suécia e Rússia contra Inglaterra, Prússia e Hanover a partir da tentativa austríaca de retomar a Silésia da Prússia", mas Samuel Johnson expressou um ponto de vista muito comum quando, em seu "Dictionary" (1747-1755), definiu "patriotismo" como "o último refúgio dos patifes".
Entre 1648, quando a Paz de Westfália [término da Guerra dos 30 Anos, 1618-1648" marcou o fim da religião como fator crucial nas relações internacionais, e 1792, quando a explosão das guerras revolucionárias assinalou o início de guerras entre nações, houve um interlúdio ideológico na história da guerra.
Durante esse período de relativa civilidade, as pessoas mais civilizadas se enxergavam como européias e não se preocupavam com fronteiras nacionais, tanto que nem sequer portavam passaportes. Elas faziam grandes viagens que as levavam de Londres a Paris ou Roma -ou então até Viena ou outros pontos mais ao norte, passando por Amsterdã. Ao longo do caminho, paravam em castelos e mansões onde recebiam a hospitalidade de outras "pessoas de classe" que falavam a mesma língua, o francês, e compartilhavam com elas o mesmo código de conduta. Tratava-se de dominar não apenas a arte da conversa mas também a linguagem corporal: como sentar-se sobre um cavalo, caminhar por um jardim, entrar numa sala, tomar um lugar à mesa (nada fácil, quando se estava usando uma espada), erguer um cálice de vinho (pela haste e usando dois dedos, não três) e tomar chá (em alguns ambientes refinados, usava-se beber o chá do pires, não da xícara).
O cosmopolitismo fazia parte desse código social. Diferenciava as pessoas de classe das massas que não tomavam banho e cujo horizonte mental não ultrapassava o território que podia ser visto desde a torre de sua igreja -vem daí o uso dos termos "l'esprit de clocher" [espírito de campanário] e "campanellismo" para designar pessoas de mente bitolada.
O cosmopolita abrangia a Europa toda em sua visão do mundo, às vezes até mesmo a humanidade toda. O termo podia ser usado pejorativamente, conforme indicado pelo dicionário da Academia Francesa: "Cosmopolita: alguém que não adota nenhuma pátria. Um cosmopolita não é um bom cidadão". Mesmo a "Encyclopédie" observava que "às vezes se usa esse termo em tom jocoso, para indicar um homem que não tem residência fixa ou que não é estrangeiro em parte nenhuma". Aventureiros como Casanova, Cagliostro e Mesmer conferiram má fama ao termo, pois fizeram grandes viagens nas quais sobreviveram de sua astúcia e da credulidade ingênua de suas vítimas. Tendo percorrido a Europa a pé, em sua juventude, na companhia desses "chevaliers d'industrie", Rousseau (1712-1778) condenou o cosmopolita, em "O Contrato Social" (1762), como alguém que "faz de conta que ama o mundo inteiro para poder ter o direito de não amar ninguém". Contrastando com ele nesse ponto, assim como em tantos outros, Voltaire personificava o cosmopolitismo de tipo positivo. Sua mansão em Ferney, na fronteira entre França e Genebra, era a parada mais grandiosa em toda a grande tour. Ladeado por bustos de Locke e Newton, ele recebia visitantes vindos de todos os pontos do continente -e pelo menos 300 da Grã-Bretanha-, peregrinos seculares com fome de uma refeição ou de um "bon mot", tanto assim que ele se descrevia como "o estalajadeiro da Europa". Ele foi descrito, por outros, como o "rei não coroado da Europa", porque exercia um tipo novo de poder: a capacidade de influenciar a opinião pública em escala européia.

Cruzada contra a intolerância
O reinado de Voltaire era, na realidade, uma república, a República das Letras. Ela se estendia por toda a parte e estava aberta a todos ou, pelo menos, a todos que tivessem alguma ligação com a literatura. Com "Nouvelles de la République des Lettres" ("Notícias da República das Letras", 1684-1687), de Pierre Bayle, ela assumiu uma cor que a distinguia de sua antepassada, a "Gelehrtenrepublik" do século 16. Sob Bayle, promovia o uso crítico da razão. Sob Voltaire, engajou-se na cruzada contra "a infâmia" -ou seja, contra a intolerância e a injustiça, de modo geral, e, mais especificamente, contra os abusos da Igreja Católica. Assim, na década de 1760, a República das Letras foi identificada com o Iluminismo.
Ela possuía suas instituições: os cafés, as lojas maçônicas, os salões e as academias, dezenas delas, estendendo-se até São Petersburgo e interligadas por redes de correspondência. Escritores localizados nos pontos de irradiação do sistema -como Samuel Formey, secretário da Academia de Berlim- difundiam mensagens em escala muito grande e numa velocidade espantosa (as cartas às vezes chegavam mais rapidamente, no século 18, do que chegam hoje).
O próprio Voltaire comandava uma das redes mais poderosas de todos os tempos e a usava para mexer seus pauzinhos por toda a parte na Europa. Doses bem medidas de humor espirituoso suscitavam risos em todos os salões de Paris e todas as cortes da Alemanha. Denúncias cuidadosamente orquestradas de atrocidades -os assassinatos judiciais de Calas, La Barre, Lally-Tollendal e Montbailli- transformavam o riso em indignação. E apelos diretos aos grandes -Frederico, o Grande, e Catarina, a Grande (com quem Voltaire trocou 187 cartas)- às vezes davam resultados diretos.
Esse tipo de Iluminismo funcionava de cima para baixo, mas não podia dar certo em níveis inferiores se não tivesse alguma afinidade com a cultura geral dos europeus bem educados -cultura no sentido mais amplo do termo, como uma maneira de ser no mundo.
Como Norbert Elias, Voltaire compreendia essa cultura como um processo civilizador que operava em escala européia: "Os europeus são o que os gregos foram no passado. Eles travam guerras entre eles, mas, em meio a essas disputas, conservam tanta cortesia, tanto decoro, que, quando um francês, um inglês e um alemão se encontram, a impressão que se tem é que nasceram na mesma cidade".
A cortesia estava no cerne da atração exercida pelo Iluminismo sobre o grande público. Hume (1711-1776), Lessing (1729-1781), Beccaria (1738-1794), quase todos os filósofos, excetuando Rousseau, identificavam a cortesia com a vitória sobre a superstição e a barbárie. Para eles, o cristianismo não era apenas irracional -também era vulgar. Era derivado do mundo tosco dos antigos hebreus. Nenhum cavalheiro poderia levá-lo a sério. Era uma ofensa ao bom gosto.
O apelo ao bom gosto, um termo-chave nos tratados e também na correspondência dos filósofos, complementava o apelo à razão. Essa estratégia dupla fazia do Iluminismo uma força considerável na Europa do século 18, porque, nessa época, o cavalheiro começava a tomar o lugar do aristocrata como tipo social ideal. Havia lugar para ambos no código de conduta polido, e ambos nutriam a demanda do novo comércio de artigos de luxo. Senhoras de Londres, Estocolmo e Budapeste imitavam as bonecas enviadas todos os meses pelos estilistas da rua Saint Honoré para inteirar-se das últimas tendências da moda.
Os paladares eram educados em toda parte, graças aos tratados sobre a nova arte da gastronomia e os novos pratos e produtos, tais como as pralinas (originárias da mesa do duque de Praslin) e a maionese (criada pelo chef do duque de Richelieu, durante o cerco ao Forte Mahon). Novos tipos de mobília -a cômoda, a secretária-, novos penteados, objetos de porcelana, artes decorativas de toda espécie, tudo isso unia as elites mistas da Europa numa cultura material comum.
As elites também falavam uma língua comum. O francês tomou o lugar do latim pela primeira vez, como língua franca da diplomacia, no Tratado de Rastadt [1714, um dos acordos que pôs fim à guerra de sucessão espanhola". Em 1774, até mesmo os russos e os turcos usaram o francês quando chegaram a um acordo sobre o texto do tratado. Professores particulares franceses disseminavam a língua entre os ricos por toda parte, desde São Petersburgo até Nápoles, enquanto os pobres, até mesmo na França, permaneciam divididos por inúmeros dialetos mutuamente incompreensíveis.
Quando Edward Gibbon [1737-1794, historiador inglês, autor de "Declínio e Queda do Império Romano" (Cia. das Letras)" era estudante, em Lausanne, lhe pareceu natural começar a escrever a história em francês -"porque penso em francês", explicou. A mesma razão levou Pushkin (1799-1837) a escrever seus primeiros poemas em francês, que ele chamava de "a língua da Europa". Em 1743, Frederico 2º, que aperfeiçoou seu francês com Voltaire, ordenou à Academia de Ciências, em Berlim, que publicasse suas transações em francês, "la langue universelle". Em 1782, quando a Academia promoveu seu famoso concurso de redações sobre a universalidade da língua francesa, a Europa já estava afrancesada.
O cosmopolitismo linguístico significava que a publicação e a venda de livros operavam em escala européia. As editoras publicavam livros em francês em gráficas situadas em Londres, Amsterdã, Hamburgo, Dresden, Genebra e muitas outras cidades fora da França. Os melhores jornais em francês -"La Gazette d'Amsterdam", "La Gazette de Leyde", "Le Courrier de l'Europe"- também eram produzidos fora da França. Se ler esses jornais resultava no que Benedict Anderson chama de "comunidade imaginada", essa comunidade era muito mais européia do que nacionalista. Os leitores de Voltaire provavelmente ecoavam seu próprio sentimento: "Pertenço à Europa".
Todos os meios de comunicação contribuíam para essa consciência coletiva, até mesmo o boca a boca. A arte da conversa tinha sido aperfeiçoada nos salões parisienses do século 17. Ela era vista como modelo de conversa elegante a ser seguido nos círculos elegantes em toda a parte, como explicou Caraccioli em "Paris, le Modèle des Nations Étrangères, ou l'Europe Française". No livro, um marquês francês exclama: "Italianos, ingleses, alemães, espanhóis, poloneses, russos, suecos, portugueses -todos vocês são meus irmãos".
A fraternidade já era um fenômeno de alcance europeu muito antes de a Revolução incorporá-la à cultura nacional da França. Evidentemente ela não se estendia para abaixo da elite: apenas os cavalheiros se viam como estando unidos num modo de vida comum, e sua participação numa cultura européia não excluía sua participação, como cidadãos, numa comunidade local, com cultura expressa em idioma próprio.
A identidade, no século 18, era algo segmentário: um cavalheiro fazia parte de uma família, de um organismo corporativo, de uma cidade ou região, de um país e, por fim, da Europa. Qual segmento era prioritário, em sua cabeça, era algo que variava de uma pessoa a outra. O fidalgo ocidental não pode ser exatamente equacionado com a civilização ocidental.
No entanto as elites em todo o Ocidente estavam se abrindo e expandindo. Os novos ricos ficavam lado a lado com a elite mais tradicional nas lojas, onde uma nova cultura do consumidor começava a deitar raízes. Mesmo os artesãos de vez em quando compravam relógios e usavam espadas. Mesmo as criadas possuíam vários vestidos, muitas vezes feitos de chita e tingidos de cores fortes, diferentemente das pesadas roupas de lã marrom ou preta usadas pelos empregados domésticos no século 17. As pessoas comuns consumiam os novos produtos de luxo importados do exterior: café, chá preto, chocolate, açúcar e tabaco. As que integravam as camadas médias da sociedade gastavam um pouco de sua nova riqueza e de seu novo tempo livre nos cafés, instituições abertas a qualquer pessoa que conseguisse pagar a conta.
Criado em Constantinopla, em 1560, o café, como estabelecimento, proliferou em todas as cidades européias, a partir de meados do século 17. Em Londres, surgiu em 1660. Em 1663, a cidade já possuía 82 cafés e, em 1734, 551. Devido à liberdade de discurso que promoviam, ficaram sendo conhecidos como "universidades da tagarelice". Além disso, serviam como centro de discussão de idéias políticas, já que, além de bebida, forneciam jornais e panfletos. O primeiro diário londrino começou a ser publicado em 1702, muito depois do primeiro jornal diário editado na Alemanha (Leipzig, 1660), mas muito antes do primeiro francês (Paris, 1777). A palavra impressa, as discussões e o café se uniam para gerar, em toda a Europa, uma força nova e poderosa: a opinião pública. E a opinião pública se radicalizou em todas as grandes cidades.


O SÉCULO 18 PODE SERVIR PARA NOS LEMBRAR DE QUE A NAÇÃO NEM SEMPRE FOI UMA UNIDADE FUNDAMENTAL DA EXISTÊNCIA E QUE OS PRINCÍPIOS DO ILUMINISMO CONTINUAM VIVOS HOJE


Ela assumia muitas formas e vinha de muitas fontes, mas convergia em torno de uma idéia que encontrava ressonância em toda a parte: a felicidade. Os europeus passaram a acreditar que, em lugar de suportar a vida para poderem conquistar um lugar no paraíso, após sua morte, deveriam gozar a vida ainda na terra. As economias em expansão colocaram os novos bens de consumo ao alcance dos bolsos de muitas pessoas da classe média. Até mesmo os camponeses começavam a desfrutar condições melhores: a "pequena idade do gelo" do século 17 foi seguida por um clima mais quente; novos alimentos -nabos, batatas, beterrabas- reduziram a incidência de fome crônica e generalizada, e a expectativa de vida deve ter aumentado cerca de dez anos entre 1700 e 1800. É claro que as idéias não nasciam do solo, como se fossem nabos, mas a melhora nas condições de vida e o clima geral mais leve transformaram o Iluminismo em algo pensável pelo grande público.
Entre a elite, as idéias de felicidade tinham surgido a partir de ousadas experiências de pensamento conduzidas pelos "espíritos fortes" e os "libertinos" dos séculos 16 e 17. Nas obras de Giordano Bruno (1548-1600), René Descartes (1596-1650) e Baruch Spinoza (1632-1677), o mundo natural era visto como uma ordem racional e fonte de potencial prazer, muito mais do que como um vale de lágrimas. Além do amor livre, o libertinismo passou a ser identificado com o livre pensamento.
O maior amante do século incorporava ambos os princípios e os exibia no palco em "Don Juan" (1665), de Molière (1622-1673). É verdade que Molière castigava seu herói com o fogo do inferno, mas o castigo parecia menos convincente na versão da história composta por Mozart (1756-1791), uma ópera bufa. E, quando Goldoni [1707-1793, dramaturgo italiano" a retrabalhou, ele fez Don Juan morrer de causas naturais -atingido por um raio, em lugar de ser abatido pela ira divina.
Em 1776 a felicidade deixou de ser privilégio da aristocracia. Tornou-se direito do homem, proclamada ao mundo na declaração da independência americana: "Vida, liberdade e a busca da felicidade". Felicidade, em lugar de propriedade. A substituição de um termo por outro abriu o caminho para o direito de acesso igual às boas coisas da vida. A Constituição francesa de 1793 reafirmou os direitos de 1789, "igualdade, liberdade, segurança, propriedade", mas os subordinou ao princípio enunciado em seu primeiro artigo: "O objetivo da sociedade é a felicidade comum". Do bem-estar social ao socialismo, a distância não era grande, e ela foi coberta entre 1793 e 1848 [período de movimentos revolucionários que começaram em Paris e se alastraram para todos os grandes centros europeus".
É claro que hoje, na era do euro, 1848 nos parece o passado longínquo. Será que a era do Iluminismo tem alguma relevância para a situação em que se encontra a Europa em 2002? Não diretamente, mas o século 18 pode servir para nos lembrar de que a nação nem sempre foi uma unidade fundamental da existência e que os princípios do Iluminismo continuam vivos hoje. O que mais podemos evocar se quisermos protestar contra a tortura, a intolerância, a discriminação, a censura, os abusos e as injustiças de todos os tipos? Esse argumento, entretanto, parece ser vulnerável a duas objeções.
Em primeiro lugar, o caráter elitista do Iluminismo pode prejudicar o engajamento com seus valores. Se a República das Letras não era democrática, por que celebrar seu cosmopolitismo, anunciando-o como inspiração para uma Europa democrática? Resposta: a Europa aristocrática e afrancesada do século 18 não constitui um modelo para a comunidade européia de hoje. Ela apenas mostra que, no passado, os europeus já se sentiram unidos por um modo de vida comum. Mas não poderia esse senso de participação numa civilização compartilhada espalhar-se para todos os segmentos da sociedade? Não poderia o inglês, hoje, atuar como língua franca, tão bem quanto fazia o francês, dois séculos atrás? Não é necessário que elimine outras línguas. Entre os extremos do cosmopolitismo e do "campanellismo" há lugar para muitas outras variedades de cultura. O elitismo serviu de estratégia para Voltaire em sua luta contra "a infâmia", mas havia outras estratégias disponíveis na época, algumas delas democráticas, algumas revolucionárias, como provaram os franceses em 1789.
Em segundo lugar, o Iluminismo pode ser acusado de eurocentrismo ou, o que é pior, de perpetrar a hegemonia cultural, disfarçada de universalismo. Resposta: o Iluminismo de fato coincidiu com a segunda era das descobertas, e exploradores iluminados, como James Cook, ampliaram os impérios europeus. Mas filósofos como o francês Raynal protestaram contra a opressão das populações coloniais e, especialmente, contra a escravatura. Em vários casos, os colonizados voltaram os princípios europeus contra seus senhores e encontraram princípios congruentes em suas próprias tradições.
A rejeição dos direitos humanos em nome dos chamados "valores asiáticos" vem sendo usada para atender aos interesses dos ditadores asiáticos, e os defensores da democracia na Ásia recorreram à herança iluminista da Europa, sem comprometer seu engajamento com seus valores próprios.
O presidente sul-coreano, Kim Dae Jung, adotou essa posição quando aceitou o Prêmio Nobel da Paz, em dezembro de 2000: "Na Ásia, muitos antes do Ocidente, o respeito pela dignidade humana já estava inscrito nos sistemas de pensamento, e tradições intelectuais que defendiam o conceito do "demos" criaram raízes. "O povo é o céu, a vontade do povo é a vontade do céu, trate o povo com reverência, como tratas o céu." Esse já era um dos conceitos centrais do pensamento político da China e da Coréia, 3.000 anos atrás. O budismo surgiria na Índia, cinco séculos mais tarde, pregando a importância suprema da dignidade e dos direitos do ser humano.
Também houve ideologias e instituições governantes que colocaram a pessoa em primeiro lugar. Mencius, discípulo de Confúcio, disse: "O rei é filho do céu. O céu o enviou para servir ao povo com um reinado justo. Se ele falhar, se oprimir o povo, o povo terá o direito, em nome do céu, de retirá-lo do poder". E isso foi 2.000 anos antes de John Locke expor a teoria do contrato social e da soberania cívica".
Compreender a origem histórica dos princípios não é negar sua validez. Chamar a atenção para sua dimensão cultural não significa relativizá-los até torná-los sem importância. Pelo contrário: os europeus podem sentir-se encorajados pelo fato de que a Europa já existia, como entidade cultural, muito antes de tornar-se uma zona monetária. Se eles derem ouvidos a sua história, encontrarão bases para defender os direitos humanos.
Não é que a história ensine lições, mas que ela mostra como o processo civilizador exigiu uma luta contra o barbarismo. Essa luta ainda continua, e os europeus ainda têm razões para gritar "abaixo a infâmia!".

Robert Darnton é professor de história na Universidade Princeton (EUA) e autor de, entre outros, "Edição e Sedição" (Companhia das Letras). Este texto foi publicado no "New York Review of Books".
Tradução de Clara Allain.


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