São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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CASAMENTO SEM BANQUETE



SONHO DE AMPLIAÇÃO DA UNIÃO EUROPÉIA APÓS A QUEDA DO MURO DE BERLIM ESBARRA HOJE NO POPULISMO ANTIIMIGRAÇÃO


Reuters
Manifestantes protestam contra a União Européia durante a Cúpula de Sevilha, que ocorreu na Espanha no mês passado


por Timothy Garton Ash

Imagine uma festa de casamento que é adiada por 15 anos pela mesquinharia e a má vontade do noivo. Quem pode sentir qualquer prazer nela, quando finalmente acontece? É o que está ocorrendo agora com a reunificação da Europa: o casamento das partes oriental e ocidental do continente, durante décadas separadas pelos muros e as cercas de arame farpado da Guerra Fria. Até mesmo o nome da festa já virou uma chatice. Já não é mais a reunificação da Europa ou, como também dizíamos, a cura dela -é apenas a "ampliação da União Européia". Bocejo, bocejo e desligar a televisão. A Cúpula de Sevilha [Conselho Europeu de Sevilha, em que foram discutidas políticas de imigração e asilo", reunida nos dias 21 e 22 de junho, reafirmou o compromisso da UE de abarcar dez Estados novos até o final de 2004, meros 15 anos após a queda do Muro de Berlim. Ao mesmo tempo, ela adiou as negociações financeiras mais difíceis para até depois das eleições legislativas alemãs, que terão lugar em setembro. E, em Sevilha, os líderes da UE se mostraram mais interessados em impedir a entrada de pessoas do que em chamá-las para entrar. Não estavam interessados em dar as boas-vindas a outros europeus, mas em perseguir imigrantes ilegais. É esse o tópico quente numa Europa agitada pelo populismo antiimigração. Alguns leitores, que, inevitavelmente, já devem ter mais de 30 anos, talvez ainda se recordem daquele verão vertiginoso de 13 anos atrás, em 1989, quando o comunismo estava sendo desmontado pacificamente, por meio de "refoluções" (um misto de reforma com revolução) de estilo novo na Polônia e na Hungria, e o mundo estava repleto de esperança. "O retorno à Europa" era o grande slogan dos centro-europeus na época. O que foi que deu errado? Fomos nós. Nós, os europeus ocidentais. Para começo de conversa, muitos europeus ocidentais nunca chegaram realmente a considerar aqueles "países distantes sobre os quais sabemos tão pouco" como parte da Europa. Outros, especialmente os franceses, não queriam que esses países entrassem para nosso clube de ricos, liderado pela França. Um importante empresário francês chegou a resumir (reservadamente) sua atitude em relação à ampliação da UE em direção ao Leste nas seguintes palavras: "É preciso falar sobre isso sempre, mas nunca pensar".

Desequilíbrio
Então [o premiê alemão à época] Helmut Kohl e [o presidente francês à época] François Mitterrand decidiram que, em primeiro lugar, a Europa Ocidental precisava criar sua própria união monetária. Ótima idéia e que, até agora, está mostrando ser muito mais bem-sucedida do que previam muitos céticos (entre os quais eu me incluo), mas será que foi a prioridade certa numa época em que acabavam de chegar ao fim 41 anos de divisão da Europa em Leste e Oeste? Não foi.
Agora os líderes da UE finalmente concordaram em que é preciso proceder à ampliação, mas ninguém se propõe a pagar por ela. Os contribuintes líquidos para o orçamento da UE, sobretudo a Alemanha, não querem saber de pagar 1 euro a mais, e os beneficiários líquidos dele, tais como a Espanha, não querem saber de receber 1 euro a menos. A soma líquida que a UE se propõe a transferir a seus dez novos membros entre 2004 e 2006 é de 25 bilhões de euros.
A título de comparação, os Estados Unidos, sob o plano Marshall, transferiram o equivalente a 97 bilhões de euros (pelo câmbio atual) à Europa Ocidental entre 1948 e 1951, e, na década de 1990, a Alemanha Ocidental transferiu para a Alemanha Oriental cerca de 600 bilhões de euros (devo essas estatísticas ao "International Herald Tribune", que recentemente concluiu uma ótima série em três partes sobre esse tema). É essa a grande solidariedade de europeus para com europeus.
Pelos planos atuais, os novos Estados-membro, a maioria dos quais é pobre pelos padrões da UE, vão receber apenas metade da soma per capita recebida por países como Espanha, Portugal, Grécia e Irlanda para obras infra-estruturais, como pontes e estradas. Enquanto isso, os fazendeiros poloneses vão receber apenas um quarto dos subsídios diretos ganhos por seus colegas franceses, embora ambos tenham de competir futuramente no mesmo mercado único. É um absurdo, um insulto. O que deveria acontecer é que todos os fazendeiros da UE deveriam receber só um quarto do que recebem hoje, já que a Política Agrícola Comum (PAC) é o escândalo que se arrasta há mais tempo no mundo desenvolvido, forçando a alta dos preços dos alimentos que comemos e colocando os agricultores do mundo em desenvolvimento numa situação de desvantagem ainda maior. Mas a França e os outros beneficiários da PAC não o tolerariam. Em nome da Europa, claro. Até agora, escrevi como se fosse certo que a ampliação em direção ao Leste, com todos os seus desapontamentos, vá seguir adiante em 2004. Mas nem sequer isso está certo. A Irlanda terá que promover outro referendo sobre o Tratado de Nice [que resultou de uma cúpula da UE ocorrida em dezembro de 2000 sobre a expansão da UE, e deve ser aprovado por todos os 15 membros da UE e pelo Parlamento Europeu até o final de 2002], ao qual já disse "não" em certa ocasião. A Grécia declarou que vai bloquear a ampliação, a menos que Chipre seja incluído nela, embora não esteja claro como se pode incorporar à UE um país dividido. Os populistas contrários à imigração, desde Haider até Le Pen, aumentam a oposição interna. O mais preocupante, porém, é a ascensão da hostilidade em relação à UE no interior dos próprios países candidatos a membros. Em seis dos dez países marcados para serem os primeiros a ingressar no bloco, menos de 50% das pessoas entrevistadas numa sondagem de opinião recente disseram que fazer parte da UE seria uma coisa boa para seu país. Na Polônia, a maior e mais importante candidata, foram apenas 51% dos entrevistados que responderam assim. "Ontem foi Moscou -amanhã será Bruxelas", diz o bando crescente de "eurocéticos" poloneses. É injusto, é claro, já que a Polônia jamais optou por fazer parte do bloco soviético, enquanto seus governos democraticamente eleitos vêm batendo à porta de Bruxelas desde 1989. Mas é compreensível que as pessoas se sintam assim quando os emissários de Bruxelas impõem 80 mil páginas de regras e regulamentos a seu país, muitas das quais terão o efeito de criar obstáculos a uma economia de mercado que, com essa exceção, é nova e dinâmica. A perspectiva mais espantosa e deprimente é que, em última análise, a própria Polônia possa rejeitar seu ingresso na UE, num referendo. Essa hipótese pode soar pouco provável, mas não é impensável. A Constituição polonesa prevê que um referendo sobre uma questão de importância maior, como essa, requer uma maioria simples -de um número de eleitores que precisa representar mais de 50% do total nacional. Nas últimas eleições parlamentares, apenas 46% dos eleitores foram votar. Assim, tudo o que os adversários da inclusão na UE precisarão fazer será dizer "fique em casa, tome mais uma cervejinha". Acho que não é isso que vai acabar acontecendo. Acho que a ampliação vai acabar por acontecer em 2004 ou 2005 -com um atraso escandaloso, mas antes tarde do que nunca. No entanto o fato de simplesmente enfrentarmos tal possibilidade demonstra até que ponto decaímos. Quando eu viajava entre um lado e outro da Cortina de Ferro nos maus velhos dias da Guerra Fria, concluí que a Europa se dividia entre as pessoas do lado ocidental, que tinham a Europa, e as do lado oriental, que acreditavam nela.

"Essência platônica"
Nunca me esquecerei de quando percorri os corredores do Parlamento polonês, pouco após as históricas eleições polonesas de 1989, na companhia do historiador e líder do Solidariedade Bronislaw Geremek. De repente ele parou e, com paixão, me disse: "Sabe, para mim a Europa é uma espécie de essência platônica".
Tivesse a reunificação da Europa acontecido há dez anos, uma enorme carga positiva de entusiasmo e idealismo como esse teria entrado no projeto europeu, vinda do Leste liberado. Ainda tenho a esperança de que um pouco dela o faça, vinda de grandes europeus como meu velho amigo Bronislaw Geremek. Mas, se e quando conseguir entrar, a maioria dos novos membros terá concluído que a Europa, na realidade, diz respeito a pechinchar atrás de portas fechadas para embolsar alguns milhões de euros a mais para os interesses nacionais especiais de cada um. É essa a lição que teremos passado aos novos membros nesses 15 anos de disputas mesquinhas e destituídas de visão.

Timothy Garton Ash é diretor do Centro de Estudos Europeus no St. Anthony's College, na Universidade de Oxford (Reino Unido). É autor de "Nós, o Povo" (Companhia das Letras) e "History of the Present" (Penguin), entre outros.
Tradução de Clara Allain.


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