São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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Ponto de fuga

Medo

Jorge Coli
especial para a Folha

Já existem algumas críticas propondo o prêmio de pior filme do ano a "Long Time Dead" ("O Jogo dos Espíritos"), de Marcus Adams. Trata-se de um "teen slasher", terror em que adolescentes são assassinados em série. Esse gênero teria surgido com um filme de Mario Bava, de 1971, "Ecologia del Delitto", que teve uma inverossímil quantidade de títulos em italiano e em inglês; no Brasil, se chamou "O Sexo na Sua Forma Mais Violenta"... Mas, se a primeira formulação surgiu na Itália de Bava, ela conheceu desenvolvimento e afirmação dentro do cinema americano, adquirindo características precisas. "O Jogo dos Espíritos" é inglês. Retoma a fórmula consagrada, mas se distancia do clima, anti-séptico, dos "colleges", "high-schools" e colônias de férias americanos, onde essas histórias geralmente se passam.
Os personagens de Adams são mais "clubbers" do que estudantes; flertam com a ilegalidade e vivem sobretudo à noite. O diretor não se importa se a trama é mal construída e afasta tanto proezas estilísticas quanto efeitos especiais. O resultado causa um certo estranhamento se comparado aos códigos que Hollywood estabeleceu para o gênero: talvez daí tenham vindo as críticas demolidoras. "O Jogo dos Espíritos" aguça, porém, os medos das certezas e incertezas futuras, porque nelas a morte, sem data e sem forma, está inscrita. Ele reforça também a orfandade ontológica, tão presente no gênero. Desgarrar-se da família, entrar na idade adulta: momento crucial que leva à liberdade, mas ainda à perda dos refúgios e das proteções, à consciência da vulnerável solidão.

Transfusão - Há sangue exótico escorrendo nas telas. "O Jogo dos Espíritos" é inglês, "Blade 2" foi dirigido por um mexicano, Guillermo del Toro. A história fala de vampiros mais vampiros que os vampiros. Porém o enredo importa pouco. Estão, em primeiro lugar, os climas opressores que se sucedem em cenários sugestivos.
Depois vem seu caráter de paroxismo sentimental. "Blade 2" é uma ópera em que falta apenas o canto. As situações são as do mais intenso melodrama: afetos impossíveis, fatalidades, traições, irmãos que se ignoram e se odeiam, paternidades reconhecidas graças a uma pequena jóia, destinos selados por juramentos terríveis.
Ou seja, é o mesmo universo em que se movia o "Trovatore", "Nabucco" e mais Wagner. As cenas iniciais possuem o tom cientificamente sórdido do "Wozzeck" de Alban Berg; ao morrer, um dos heróis diz as mesmas palavras que a "Traviata" no último ato: "Cessaram os espasmos de dor", ou coisa que o valha. A ação dissolve-se diante das lutas, cujas coreografias são harmoniosas como as de um balé; elas, de fato, interrompem o curso dos acontecimentos para se oferecerem com beleza própria. Em meio a essas tensões altamente estetizadas, não pareceria tão absurdo se os personagens se pusessem a cantar seus desesperos, conflitos e contradições, estirando as vozes nos agudos do soprano ou do tenor.

Fera - Franceses também invadiram, com certo sucesso, o território do fantástico. Retomaram uma história do século 18, ocorrida no sul da França. Uma besta violenta, na região de Gévaudan, atacava seres humanos: alguns, hoje, imaginam ter sido um lince. Em "O Pacto dos Lobos", Cristophe Gans, o diretor, inventa uma relação astuciosa para explicar o mistério, que é, antes de tudo, político. A besta seria o instrumento de conservadores radicais, concentrando a ferocidade de um protofacismo inquietante.

Carniça - Nas bancas de jornal encontra-se à venda "Dia dos Mortos", em DVD "widescreen". É um filme de George Romero, na série iniciada por "A Noite dos Mortos-Vivos". Este último recebeu fortes leituras politizadas: estreou em 1968, com grande impacto. Romero prosseguiu no filão zumbi de esquerda. "Dia dos Mortos" (1985) procede por uma constatação fria e implacável, desdobrando, com lógica, o princípio estabelecido em "A Noite dos Mortos-Vivos". Dessa vez, ele faz cruzar a estúpida histeria militar e os cadáveres que andam.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br


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