São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A FILOSOFIA CANIBAL

DA REDAÇÃO

O perspectivismo ameríndio coloca em questão sujeito e substância, fundamentos da ortodoxia filosófica na tradição ocidental. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, o modo de pensar a realidade dos índios privilegia a relação, anterior a sujeitos e coisas, que não existem a priori.
De fato, no parentesco, essas "coisas" chamadas cunhado, genro, sogro nunca são em si mesmas, não existem a priori, mas só ganham existência na relação -filho, pai, sobrinho são posições em relações que preexistem aos sujeitos. Domesticada no Ocidente, a relação extrapola os limites do parentesco no pensamento indígena, e distribui as cartas da realidade.
A seguir, trechos da primeira parte da entrevista.
 
Folha - É correto dizer que, no perspectivismo, sujeitos e coisas não existem por si mesmos, mas sempre a partir da relação em que estão inseridos?
Eduardo Viveiros de Castro -
Sem dúvida. A idéia básica que está por trás da caracterização do pensamento ameríndio por meio dessa palavra, perspectivismo, que foi raptada do vocabulário filosófico ocidental, é que a relação vem antes da substância e, portanto, os sujeitos e os objetos são antes de mais nada efeitos das relações em que estão localizados e assim se definem, redefinem, se produzem e se destroem na medida em que as relações que os constituem mudam.
Não que não haja substância, pelo contrário, mas aqui ela é o problema, e as relações, ao contrário, são aquilo que é dado. Enquanto que nós, de certa maneira, na tradição conceitual ocidental, tenderíamos a imaginar as substâncias como dadas, e as relações como sendo construídas e adicionadas pelo sujeito, em sua função cognoscente. É como se conhecer, para nós, fosse relacionar, e as substâncias, ao contrário, fossem aquilo que já existe, que está dado e que cabe ao espírito pôr em relação. O problema ameríndio é justamente partir dessa relação universal e dela produzir conceitualmente as coisas.

Folha - Essa relação tem sempre a mesma forma? É primordialmente humana?
Viveiros de Castro -
Não sei se eu formularia nesses termos. Eu diria que a humanidade é o nome de uma relação, que é a relação reflexiva, em que todo ente vai se perceber a si mesmo como humano. A humanidade é menos o nome de uma substância e muito mais um tipo de relação que todo ente tem consigo mesmo. Isso é, numa linguagem empolada, algo que os índios formulam de maneira muito mais direta quando nos falam, em português, que "todo bicho é gente".
Significa que toda espécie vê a si mesma como humana. Significa que o que é humano é o "se ver", muito mais do que aquilo que se está vendo. É o pronome reflexivo que define a humanidade. Ao se ver, todo sujeito vê-se como humano. Nesse sentido a humanidade também é uma relação. Essa é a relação universal por excelência? Não sei dizer. Acho que é uma das relações. Diria até que a relação primordial no mundo ameríndio é a de incorporação, ou, para usar uma linguagem mais concreta, a relação de predação e de incorporação canibal. O canibalismo como modo esquemático, o esquema fundamental nesse mundo. Brinco, fazendo um trocadilho, que, se nosso esquema fundamental de relação sujeito-objeto, na filosofia ocidental, é a predicação -"A é B"-, no mundo ameríndio, é a predação -"A come B".

Folha - E como isso funciona?
Viveiros de Castro -
Toda linguagem conceitual tem um pano de fundo, um solo, de intuição sensível. Está radicada em determinado tipo de experiência concreta do mundo. O fundo experiencial básico da cultura indígena é a intuição da cadeia alimentar e a experiência da necessidade que possui todo organismo, e dramaticamente o animal, de ingerir, incorporar, de comer para viver. Essa relação de incorporação é uma experiência primordial no pensamento indígena e serve de modelo sensível pra uma quantidade de esquemas mais abstratos.
Assim como se poderia dizer que um dos esquemas sensíveis da nossa tradição cultural é o da produção, da imposição de uma forma. O modelo do ceramista, do oleiro, do escultor. No mundo indígena há esquematismos básicos que são de outra ordem. A questão ali é saber onde você está no circuito universal da predação. É como se houvesse três posições lógicas fundamentais: predador, presa e congênere -aquele que não é nem predador nem presa. Os que comem comigo, aqueles que me comem e aqueles que eu como.

Folha - Por que se privilegia essa forma "predatória" de compreensão do mundo?
Viveiros de Castro -
O modo econômico, digamos, intelectualmente privilegiado pelos índios é a caça; são caçadores, não no sentido empírico, já que a maioria das sociedades indígenas é horticultora, mas seu modo de estar no mundo é um modo de caçadores.
Um pouco como se pode imaginar que o mundo antigo ocidental é um mundo de pastores. O papa é um bom pastor, Deus é o pastor; esse modo de conceber essa relação com o mundo animal é profundamente radicado em nossa tradição cultural. No mundo indígena, o equivalente disso é a atitude do caçador. É um mundo que tem como fundamental a necessidade de pensar a presa, caso contrário você não a pega.
No nosso modelo, o outro é a ovelha, são os cordeiros, o rebanho. Há uma enorme diferença entre o nosso mundo de pastores, onde a domesticação, o controle, a vigilância e a boa administração do rebanho definem nossas categorias políticas fundamentais (governar é pastorear), e esse outro mundo, o indígena, de caçadores que tentam pensar o que o outro pensa. Essa necessidade intelectual de se colocar no ponto de vista do outro.

Folha - Por que, tendo escrito os artigos, o sr. achou necessário começar a trabalhar nesse livro?
Viveiros de Castro -
Em "A Inconstância da Alma Selvagem" [Cosacnaify] há dois ensaios que são talvez os mais importantes, os mais recentes. Um é uma recriação de um artigo publicado seis anos antes, "O Perspectivismo e os Pronomes Cosmológicos", que é o ensaio onde formulo de maneira esquemática essa idéia de uma cosmologia pan-ameríndia. A teoria do perspectivismo ameríndio. O segundo é um ensaio sobre a organização social indígena. Na verdade, é uma tentativa de encontrar o correlato sociológico, nas relações sociais indígenas, da cosmologia do perspectivismo.
O grande esquema sociológico dos mitos ocidentais é o da paternidade: Jeová, Cronos, Zeus, Édipo, Prometeu. A tensão crítica que produz o dinamismo do mito é o conflito entre pais e filhos. No mundo indígena, as relações de maternidade e paternidade estão presentes, mas as grandes figuras míticas são aliados matrimoniais: sogros, genros, cunhados. O herói europeu do mito rouba o fogo de uma figura paterna. O herói típico dos mitos ameríndios rouba o fogo de um sogro animal. Essa diferença na origem da fonte da cultura humana, entre tomá-la de um deus-pai ou de um sogro-onça (e lembremos que os sogros são freqüentemente tios no parentesco indígena: "meu tio o iauaretê"), é o que tentei explorar nesse artigo sobre os correlatos sociológicos do perspectivismo.
Nossa concepção da relação é fundada na idéia de compartilhamento de algo em comum. O modelo disso é a relação de fraternidade. Os irmãos são aqueles que se definem por terem a mesma relação com um terceiro termo, o pai (ou os pais), compartilhamento que faz com que exista uma relação. Todos os homens são irmãos. A sociedade é uma espécie de grande fraternidade. O laço social é um compartilhamento de uma semelhança fundamental.
No mundo indígena, se pode dizer que todos os homens são cunhados. Eles estão ligados precisamente por não terem a mesma relação com aquilo que os relaciona. Só existe a relação na medida em que não se está na mesma relação com o termo de ligação. A relação é fundada por causa das diferenças, e não a despeito delas. O que vai definir a troca matrimonial é a idéia de que um mesmo terceiro, a mulher, é visto de maneiras diametralmente opostas pelos elementos da relação, o marido e o irmão. As pessoas se ligam na medida em que ocupam posições diferentes perante outrem.
Se o nosso modelo da relação é a semelhança, ao ponto de que a diferença é apenas uma falta de semelhança -a identidade é primeira- , a verdadeira relação para nós, então, é a relação do sujeito consigo mesmo. Meu irmão já é um "eu-mesmo" de segunda classe, um "outro eu". Dali para frente, estendem-se relações de terceira classe, ou de quarta, e assim vai, até se chegar às trevas exteriores da inimizade e da não-relacionalidade.
Inversamente, no mundo indígena, a identidade é que é uma ausência de diferença, e não a diferença uma ausência de identidade. A primeira relação é a relação de diferença. Se para nós o cunhado é um irmão de segunda classe ("brother-in-law", "beau-frère"), no mundo indígena o irmão é que seria um cunhado domesticado, um cunhado de quem se esvaziou a diferença. A fraternidade é o fim da relacionalidade, não sua origem.
E você me perguntou como é que isso levou à idéia de escrever o livro. Eu escrevi esses dois artigos e senti necessidade de dar mais materiais etnográficos, materiais empíricos, que pudessem fundamentar melhor a tese -você sempre começa a pensar de maneira um pouco brutal. A segunda coisa foi essa idéia de tentar reforçar organicamente as relações entre uma determinada cosmologia e uma determinada sociologia. Entre uma determinada concepção das relações do homem com o mundo e uma determinada concepção das relações dos homens "entre si", e assim evidenciar a conexão absolutamente fundamental entre esses dois aspectos.
Porque, se na cosmologia indígena tudo é humano, tudo é social, é a própria noção de sociedade que tem que ser repensada, a própria distinção entre cosmologia e sociologia que tem de ser dissolvida, neste mundo em que todo vínculo é um vínculo intra-humano e toda diferença é uma diferença social.


Texto Anterior: Um texto sem fim
Próximo Texto: O legado de deus
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.