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A FILOSOFIA CANIBAL
DA REDAÇÃO
O perspectivismo ameríndio
coloca em questão sujeito e
substância, fundamentos
da ortodoxia filosófica na
tradição ocidental. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, o modo de
pensar a realidade dos índios privilegia a relação, anterior a sujeitos e coisas, que não existem a priori.
De fato, no parentesco, essas "coisas" chamadas cunhado, genro, sogro nunca são em si mesmas, não
existem a priori, mas só ganham
existência na relação -filho, pai, sobrinho são posições em relações que
preexistem aos sujeitos. Domesticada no Ocidente, a relação extrapola
os limites do parentesco no pensamento indígena, e distribui as cartas
da realidade.
A seguir, trechos da primeira parte
da entrevista.
Folha - É correto dizer que, no perspectivismo, sujeitos e coisas não existem por si mesmos, mas sempre a partir da relação em que estão inseridos?
Eduardo Viveiros de Castro - Sem
dúvida. A idéia básica que está por
trás da caracterização do pensamento ameríndio por meio dessa palavra, perspectivismo, que foi raptada
do vocabulário filosófico ocidental, é
que a relação vem antes da substância e, portanto, os sujeitos e os objetos são antes de mais nada efeitos das
relações em que estão localizados e
assim se definem, redefinem, se produzem e se destroem na medida em
que as relações que os constituem
mudam.
Não que não haja substância, pelo
contrário, mas aqui ela é o problema,
e as relações, ao contrário, são aquilo
que é dado. Enquanto que nós, de
certa maneira, na tradição conceitual ocidental, tenderíamos a imaginar as substâncias como dadas, e as
relações como sendo construídas e
adicionadas pelo sujeito, em sua função cognoscente. É como se conhecer, para nós, fosse relacionar, e as
substâncias, ao contrário, fossem
aquilo que já existe, que está dado e
que cabe ao espírito pôr em relação.
O problema ameríndio é justamente
partir dessa relação universal e dela
produzir conceitualmente as coisas.
Folha - Essa relação tem sempre a
mesma forma? É primordialmente humana?
Viveiros de Castro - Não sei se eu
formularia nesses termos. Eu diria
que a humanidade é o nome de uma
relação, que é a relação reflexiva, em
que todo ente vai se perceber a si
mesmo como humano. A humanidade é menos o nome de uma substância e muito mais um tipo de relação que todo ente tem consigo mesmo. Isso é, numa linguagem empolada, algo que os índios formulam de
maneira muito mais direta quando
nos falam, em português, que "todo
bicho é gente".
Significa que toda espécie vê a si
mesma como humana. Significa que
o que é humano é o "se ver", muito
mais do que aquilo que se está vendo. É o pronome reflexivo que define
a humanidade. Ao se ver, todo sujeito vê-se como humano. Nesse sentido a humanidade também é uma relação. Essa é a relação universal por
excelência? Não sei dizer. Acho que é
uma das relações. Diria até que a relação primordial no mundo ameríndio é a de incorporação, ou, para
usar uma linguagem mais concreta,
a relação de predação e de incorporação canibal. O canibalismo como
modo esquemático, o esquema fundamental nesse mundo. Brinco, fazendo um trocadilho, que, se nosso
esquema fundamental de relação sujeito-objeto, na filosofia ocidental, é
a predicação -"A é B"-, no mundo ameríndio, é a predação -"A come B".
Folha - E como isso funciona?
Viveiros de Castro - Toda linguagem conceitual tem um pano de fundo, um solo, de intuição sensível. Está radicada em determinado tipo de
experiência concreta do mundo. O
fundo experiencial básico da cultura
indígena é a intuição da cadeia alimentar e a experiência da necessidade que possui todo organismo, e dramaticamente o animal, de ingerir,
incorporar, de comer para viver. Essa relação de incorporação é uma experiência primordial no pensamento indígena e serve de modelo sensível pra uma quantidade de esquemas mais abstratos.
Assim como se poderia dizer que
um dos esquemas sensíveis da nossa
tradição cultural é o da produção, da
imposição de uma forma. O modelo
do ceramista, do oleiro, do escultor.
No mundo indígena há esquematismos básicos que são de outra ordem.
A questão ali é saber onde você está
no circuito universal da predação. É
como se houvesse três posições lógicas fundamentais: predador, presa e
congênere -aquele que não é nem
predador nem presa. Os que comem
comigo, aqueles que me comem e
aqueles que eu como.
Folha - Por que se privilegia essa forma "predatória" de compreensão do
mundo?
Viveiros de Castro - O modo econômico, digamos, intelectualmente
privilegiado pelos índios é a caça; são
caçadores, não no sentido empírico,
já que a maioria das sociedades indígenas é horticultora, mas seu modo
de estar no mundo é um modo de caçadores.
Um pouco como se pode imaginar
que o mundo antigo ocidental é um
mundo de pastores. O papa é um
bom pastor, Deus é o pastor; esse
modo de conceber essa relação com
o mundo animal é profundamente
radicado em nossa tradição cultural.
No mundo indígena, o equivalente
disso é a atitude do caçador. É um
mundo que tem como fundamental
a necessidade de pensar a presa, caso
contrário você não a pega.
No nosso modelo, o outro é a ovelha, são os cordeiros, o rebanho. Há
uma enorme diferença entre o nosso
mundo de pastores, onde a domesticação, o controle, a vigilância e a boa
administração do rebanho definem
nossas categorias políticas fundamentais (governar é pastorear), e esse outro mundo, o indígena, de caçadores que tentam pensar o que o outro pensa. Essa necessidade intelectual de se colocar no ponto de vista
do outro.
Folha - Por que, tendo escrito os artigos, o sr. achou necessário começar a
trabalhar nesse livro?
Viveiros de Castro - Em "A Inconstância da Alma Selvagem" [Cosacnaify] há dois ensaios que são talvez
os mais importantes, os mais recentes. Um é uma recriação de um artigo publicado seis anos antes, "O
Perspectivismo e os Pronomes Cosmológicos", que é o ensaio onde formulo de maneira esquemática essa
idéia de uma cosmologia pan-ameríndia. A teoria do perspectivismo
ameríndio. O segundo é um ensaio
sobre a organização social indígena.
Na verdade, é uma tentativa de encontrar o correlato sociológico, nas
relações sociais indígenas, da cosmologia do perspectivismo.
O grande esquema sociológico dos
mitos ocidentais é o da paternidade:
Jeová, Cronos, Zeus, Édipo, Prometeu. A tensão crítica que produz o dinamismo do mito é o conflito entre
pais e filhos. No mundo indígena, as
relações de maternidade e paternidade estão presentes, mas as grandes
figuras míticas são aliados matrimoniais: sogros, genros, cunhados. O
herói europeu do mito rouba o fogo
de uma figura paterna. O herói típico
dos mitos ameríndios rouba o fogo
de um sogro animal. Essa diferença
na origem da fonte da cultura humana, entre tomá-la de um deus-pai ou
de um sogro-onça (e lembremos que
os sogros são freqüentemente tios
no parentesco indígena: "meu tio o
iauaretê"), é o que tentei explorar
nesse artigo sobre os correlatos sociológicos do perspectivismo.
Nossa concepção da relação é fundada na idéia de compartilhamento
de algo em comum. O modelo disso
é a relação de fraternidade. Os irmãos são aqueles que se definem
por terem a mesma relação com um
terceiro termo, o pai (ou os pais),
compartilhamento que faz com que
exista uma relação. Todos os homens são irmãos. A sociedade é
uma espécie de grande fraternidade. O laço social é um compartilhamento de uma semelhança fundamental.
No mundo indígena, se pode dizer que todos os homens são cunhados. Eles estão ligados precisamente
por não terem a mesma relação
com aquilo que os relaciona. Só
existe a relação na medida em que
não se está na mesma relação com o
termo de ligação. A relação é fundada por causa das diferenças, e não a
despeito delas. O que vai definir a
troca matrimonial é a idéia de que
um mesmo terceiro, a mulher, é visto de maneiras diametralmente
opostas pelos elementos da relação,
o marido e o irmão. As pessoas se ligam na medida em que ocupam posições diferentes perante outrem.
Se o nosso modelo da relação é a
semelhança, ao ponto de que a diferença é apenas uma falta de semelhança -a identidade é primeira-
, a verdadeira relação para nós, então, é a relação do sujeito consigo
mesmo. Meu irmão já é um "eu-mesmo" de segunda classe, um
"outro eu". Dali para frente, estendem-se relações de terceira classe,
ou de quarta, e assim vai, até se chegar às trevas exteriores da inimizade
e da não-relacionalidade.
Inversamente, no mundo indígena, a identidade é que é uma ausência de diferença, e não a diferença
uma ausência de identidade. A primeira relação é a relação de diferença. Se para nós o cunhado é um irmão de segunda classe ("brother-in-law", "beau-frère"), no mundo
indígena o irmão é que seria um cunhado domesticado, um cunhado
de quem se esvaziou a diferença. A
fraternidade é o fim da relacionalidade, não sua origem.
E você me perguntou como é que
isso levou à idéia de escrever o livro.
Eu escrevi esses dois artigos e senti
necessidade de dar mais materiais
etnográficos, materiais empíricos,
que pudessem fundamentar melhor a tese -você sempre começa a
pensar de maneira um pouco brutal. A segunda coisa foi essa idéia de
tentar reforçar organicamente as relações entre uma determinada cosmologia e uma determinada sociologia. Entre uma determinada concepção das relações do homem com
o mundo e uma determinada concepção das relações dos homens
"entre si", e assim evidenciar a conexão absolutamente fundamental
entre esses dois aspectos.
Porque, se na cosmologia indígena tudo é humano, tudo é social, é a
própria noção de sociedade que
tem que ser repensada, a própria
distinção entre cosmologia e sociologia que tem de ser dissolvida, neste mundo em que todo vínculo é um
vínculo intra-humano e toda diferença é uma diferença social.
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