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+ livros
O surgimento de gangues urbanas nos EUA,
tema de obra de Foote Whyte agora traduzida,
pode iluminar sua lógica também no Brasil
As razões da periferia
LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
No coração da "Eastern City"
existe uma área pobre e
degradada, conhecida como Cornerville, habitada
quase que exclusivamente por imigrantes italianos e seus filhos. Para o
resto da cidade, essa é uma área misteriosa, arriscada e deprimente. Cornerville está a alguns minutos a pé da
High street, uma rua elegante, mas o
morador da High street que faz esse
percurso cruza a fronteira entre o familiar e o desconhecido." É dessa
maneira que William Foote Whyte
começa o livro "Sociedade de Esquina", de 1943, que viria a se transformar em um clássico entre os estudos
urbanos e de pesquisa social.
A obra narra o cotidiano de um
bairro pobre de Boston (North End),
em meio ao contexto da Grande Depressão e da Lei Seca, quando se definiam mais claramente os limites da
inserção e da exclusão; o universo do
centro e o da periferia.
Como diz o autor -que na época
era um pesquisador jovem e sem especialização em antropologia ou sociologia-, o texto bem poderia ser
de ficção, caso os personagens não
tivessem estado bem ali, plantados à
sua frente. O livro, na verdade, nasceu de uma "pesquisa participante",
inspirada e animada pelas máximas
de Malinowski, cujo processo de
produção é tão interessante quanto
seus resultados.
"Bill" passa a morar no bairro.
Hospedado em uma casa de família,
sofre vários contratempos e é tratado pela "mama" como um outro filho. Com ele, somos convidados a
encontrar os rapazes "de esquina",
Doc e Chick, que nos apresentam
um mundo dividido entre formados
-os que carregam o futuro, que
avançam- e não-formados -condenados ao passado, que permanecem presos às redes locais.
Imersos em clubes organizados
como expedientes de ascensão social, eles são os "peixes pequenos":
seu grande objetivo, no limite, era
galgar outras posições, perder o sotaque e sair do bairro. Hierarquias e
regras firmes marcam esse universo,
que retraduz novas divisões para o
contexto interno do bairro.
Passos inesperados
E, assim como a vida, também a
pesquisa de Foote Whyte daria passos inesperados. Enquanto o próprio Bill se casa, seus "nativos" crescem, se profissionalizam (ou não) e
interagem com esse mundo feito de
tantas faces. Nelas estão os policiais,
sempre prontos a serem corrompidos; os agentes funerários ligados às
famílias enlutadas; os políticos, que
angariam votos de maneira pouco
ortodoxa; e os gângsteres, personagens emblemáticos desse contexto.
Os mafiosos são os "peixes graúdos" que repõem as mesmas estruturas tradicionais: laços de infância,
referências de vizinhança, rotinas
que implicam jogos, festas e, de vez
em quando, um certo trabalho.
Em um primeiro contato, essa dinâmica pode parecer caótica. No entanto Foote Whyte mostra que o que
de fato se afirma nessa comunidade
é um "mundo organizado". Longe
da idéia da aleatoriedade, tudo parece ter seu lugar e condição. E é essa a
visão dos próprios agentes, que concebem sua sociedade como uma organização hierárquica de partes intimamente entremeadas, na qual se
definem e reconhecem posições e
deveres.
Essa perspectiva inclui não só as
relações sociais que se estabelecem
em Cornerville como, digamos assim, o mudo supranatural, que é
atualizado simbolicamente no calendário de festas e nas crenças
enraizadas no cotidiano da comunidade. Afinal esse sistema está assentado em uma estrutura de relações
pessoais, baseada em obrigações recíprocas e distantes do universo da
lei. Um mundo feito de regras internas, silenciosamente partilhadas.
A leitura de "Sociedade de Esquina" continua a lembrar aqueles filmes "noir", que nasceram para serem vistos em preto-e-branco, com
seus tiras quase sempre corruptos,
rapazes sem fé, garotas de vida fácil...
Todos enquadrados pelo universo
do jogo, do vício e da bebida proibida, mas incentivada.
Gangues no Brasil
No entanto, lido em terras brasileiras, o livro há de ganhar outra interpretação: permite repensar nossas
próprias gangues juvenis e admitir
suas lógicas internas. É um equívoco
supor que as áreas periféricas, por
serem assim definidas, são sempre
carentes de racionalidade. O problema não é a falta de organização, mas
o fracasso de sua própria organização social em se interconectar com a
estrutura da sociedade que está à sua
volta.
Por fim, o estudo leva a refletir sobre o preconceito e o autopreconceito. Em um momento comovente do
livro, Chick, o principal informante,
filosofa sobre seu destino como um
ítalo-americano. O que transparece
é o imenso "gap" que de saída se
apresenta para essa população julgada, acima de tudo, por atributos externos. "Somos menos", diz ele, retomando a lógica perversa da exclusão que coloca à margem tudo o que
é diferente.
"Sociedade de Esquina" chega ao
Brasil com 50 anos de atraso e em clima de comemoração. Afinal a versão brasileira inclui uma fortuna crítica, as respostas do autor e o depoimento comovente de um dos rapazes. Nesse caso, criador e criatura,
autor e personagem, livro e destino
acabam borrados em meio aos novos testemunhos.
Lilia Moritz Schwarcz é professora de antropologia da USP e autora de, entre outros livros, "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras).
Sociedade de Esquina
392 págs., R$ 54,00
de William Foote Whyte. Tradução de Maria
Lúcia de Oliveira. Ed. Jorge Zahar (r. México,
31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).
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