São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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O surgimento de gangues urbanas nos EUA, tema de obra de Foote Whyte agora traduzida, pode iluminar sua lógica também no Brasil

As razões da periferia

LILIA MORITZ SCHWARCZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

No coração da "Eastern City" existe uma área pobre e degradada, conhecida como Cornerville, habitada quase que exclusivamente por imigrantes italianos e seus filhos. Para o resto da cidade, essa é uma área misteriosa, arriscada e deprimente. Cornerville está a alguns minutos a pé da High street, uma rua elegante, mas o morador da High street que faz esse percurso cruza a fronteira entre o familiar e o desconhecido." É dessa maneira que William Foote Whyte começa o livro "Sociedade de Esquina", de 1943, que viria a se transformar em um clássico entre os estudos urbanos e de pesquisa social.
A obra narra o cotidiano de um bairro pobre de Boston (North End), em meio ao contexto da Grande Depressão e da Lei Seca, quando se definiam mais claramente os limites da inserção e da exclusão; o universo do centro e o da periferia.
Como diz o autor -que na época era um pesquisador jovem e sem especialização em antropologia ou sociologia-, o texto bem poderia ser de ficção, caso os personagens não tivessem estado bem ali, plantados à sua frente. O livro, na verdade, nasceu de uma "pesquisa participante", inspirada e animada pelas máximas de Malinowski, cujo processo de produção é tão interessante quanto seus resultados.
"Bill" passa a morar no bairro. Hospedado em uma casa de família, sofre vários contratempos e é tratado pela "mama" como um outro filho. Com ele, somos convidados a encontrar os rapazes "de esquina", Doc e Chick, que nos apresentam um mundo dividido entre formados -os que carregam o futuro, que avançam- e não-formados -condenados ao passado, que permanecem presos às redes locais.
Imersos em clubes organizados como expedientes de ascensão social, eles são os "peixes pequenos": seu grande objetivo, no limite, era galgar outras posições, perder o sotaque e sair do bairro. Hierarquias e regras firmes marcam esse universo, que retraduz novas divisões para o contexto interno do bairro.

Passos inesperados
E, assim como a vida, também a pesquisa de Foote Whyte daria passos inesperados. Enquanto o próprio Bill se casa, seus "nativos" crescem, se profissionalizam (ou não) e interagem com esse mundo feito de tantas faces. Nelas estão os policiais, sempre prontos a serem corrompidos; os agentes funerários ligados às famílias enlutadas; os políticos, que angariam votos de maneira pouco ortodoxa; e os gângsteres, personagens emblemáticos desse contexto.
Os mafiosos são os "peixes graúdos" que repõem as mesmas estruturas tradicionais: laços de infância, referências de vizinhança, rotinas que implicam jogos, festas e, de vez em quando, um certo trabalho.
Em um primeiro contato, essa dinâmica pode parecer caótica. No entanto Foote Whyte mostra que o que de fato se afirma nessa comunidade é um "mundo organizado". Longe da idéia da aleatoriedade, tudo parece ter seu lugar e condição. E é essa a visão dos próprios agentes, que concebem sua sociedade como uma organização hierárquica de partes intimamente entremeadas, na qual se definem e reconhecem posições e deveres.
Essa perspectiva inclui não só as relações sociais que se estabelecem em Cornerville como, digamos assim, o mudo supranatural, que é atualizado simbolicamente no calendário de festas e nas crenças enraizadas no cotidiano da comunidade. Afinal esse sistema está assentado em uma estrutura de relações pessoais, baseada em obrigações recíprocas e distantes do universo da lei. Um mundo feito de regras internas, silenciosamente partilhadas.
A leitura de "Sociedade de Esquina" continua a lembrar aqueles filmes "noir", que nasceram para serem vistos em preto-e-branco, com seus tiras quase sempre corruptos, rapazes sem fé, garotas de vida fácil... Todos enquadrados pelo universo do jogo, do vício e da bebida proibida, mas incentivada.

Gangues no Brasil
No entanto, lido em terras brasileiras, o livro há de ganhar outra interpretação: permite repensar nossas próprias gangues juvenis e admitir suas lógicas internas. É um equívoco supor que as áreas periféricas, por serem assim definidas, são sempre carentes de racionalidade. O problema não é a falta de organização, mas o fracasso de sua própria organização social em se interconectar com a estrutura da sociedade que está à sua volta.
Por fim, o estudo leva a refletir sobre o preconceito e o autopreconceito. Em um momento comovente do livro, Chick, o principal informante, filosofa sobre seu destino como um ítalo-americano. O que transparece é o imenso "gap" que de saída se apresenta para essa população julgada, acima de tudo, por atributos externos. "Somos menos", diz ele, retomando a lógica perversa da exclusão que coloca à margem tudo o que é diferente.
"Sociedade de Esquina" chega ao Brasil com 50 anos de atraso e em clima de comemoração. Afinal a versão brasileira inclui uma fortuna crítica, as respostas do autor e o depoimento comovente de um dos rapazes. Nesse caso, criador e criatura, autor e personagem, livro e destino acabam borrados em meio aos novos testemunhos.


Lilia Moritz Schwarcz é professora de antropologia da USP e autora de, entre outros livros, "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras).

Sociedade de Esquina
392 págs., R$ 54,00
de William Foote Whyte. Tradução de Maria Lúcia de Oliveira. Ed. Jorge Zahar (r. México, 31, CEP 20031-144, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2240-0226).


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