São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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Projetos e desenhos de Niemeyer em livro "autobiográfico" mostram a perenidade de sua obra contra os modismos pós-modernos

Arquitetura sem pátria

HUGO SEGAWA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Com a morte de Philip Johnson em janeiro passado aos 98 anos, Oscar Niemeyer (1907) resta como o último grande arquiteto de sua geração.
Foi um jovem Philip Johnson que formulou um respeitoso insulto a um provecto arquiteto, Frank Lloyd Wright (1867-1959), quando disse que este era "o maior arquiteto do século 19". Wright trabalhou até seus 92 anos ouvindo elogios e agravos da crítica. Se ele tivesse morrido logo após suas "prairie houses", já teria garantido um lugar na história da arquitetura com pouco mais de 40 anos de idade. Contemporâneo de Johnson e Niemeyer, Giuseppe Terragni (1904-1941) morreu durante a Segunda Guerra Mundial e ficou na história por algumas poucas e antológicas realizações.
Niemeyer aos 33 anos de idade já teria deixado algum rastro na história com as obras da Pampulha -em cujos edifícios ele ousou introduzir a curva, em contraponto ao ângulo reto pregado por Le Corbusier e pelo racionalismo então corrente na arquitetura.
Sob o crivo da condição pós-moderna, Niemeyer foi considerado um ultrapassado, uma figura para ilustrar as páginas dos livros de história da arquitetura. Sua obra foi considerada irreproduzível, personalista. Mas o tempo colaborou contra a implacabilidade da crítica. A multiplicação de anódinas caixas de vidro mostrou que certas arquiteturas deveriam mesmo ser irreprodutíveis; o espalhafatoso neopersonalismo arquitetural finissecular é uma perversa faceta ante a suave prédica de um Niemeyer firme de convicções modernas e em oposição à camaleônica predisposição pós-moderna de Johnson (seu necrológio foi controvertido).
Niemeyer colecionou nos últimos anos uma série de reconhecimentos internacionais que decorrem de sua condição de herói de uma época. Essas homenagens estão lhe devolvendo um prestígio não gratuito nestes tempos tão midiáticos: Oscar Niemeyer reassumiu um posto no cenário internacional da arquitetura.

Primeira pessoa
"Minha Arquitetura - 1937-2005" não é um balanço de uma longa carreira, mas uma seleção de projetos e obras dentre os quais chama a atenção o volume de realizações propostas no século 21 (várias, todavia, com apresentações limitadas). Traz alguns momentos para a sua poesia, desenhos livres, esculturas e mobiliários.
O título esclarece que se trata de um livro "por" Niemeyer, e não "sobre" Niemeyer, diferindo de quase tudo que se publica no mundo sobre os grandes arquitetos, exceto as poucas autobiografias. Todos os textos estão escritos na primeira pessoa, naquele tom simpático e confessional de "As Curvas do Tempo" (Revan), seu livro de memórias.
Aliás, várias passagens em "Minha Arquitetura" são tributárias da autobiografia -um gênero pelo qual Niemeyer já era enaltecido por Vinicius de Moraes, Jorge Amado ou Ferreira Gullar desde o seu "Minha Experiência em Brasília", de 1961.
Mas nem tudo se repete: em "Minha Arquitetura", Niemeyer surpreende com algumas linhas a mais reivindicando uma maior influência sua na resolução final do projeto do Ministério da Educação e Saúde; noutro trecho, ele joga mais dúvidas no ar a propósito da concepção de Brasília: "pensava, inclusive, que talvez o [Affonso Eduardo] Reidy participasse do concurso" -um episódio nebuloso que jamais será desvendado.
"Meu Método de Trabalho" poderia ser um capítulo especial deste livro, não fosse seu teor ameno se comparado a algumas considerações que o jovem arquiteto escreveu em "Minha Experiência em Brasília" e em textos publicados no final dos anos 1950 -verdadeiros manifestos que mudaram os rumos da arquitetura brasileira e que hoje se encontram perdidos nos alfarrábios.
Apesar dos inúmeros livros publicados sobre Niemeyer a partir dos anos 1950, meu livro de cabeceira sobre o arquiteto é uma edição originalmente preparada pela editora Mondadori em 1975, simplesmente intitulada "Niemeyer". "Minha Arquitetura - 1937-2005" segue, em linhas gerais, a estrutura da bonita edição italiana. O que me agrada no livro de 30 anos atrás é a profusão de croquis de próprio punho -sempre lições de arquitetura- que agora vêm sendo substituídos por "renderings" de computador ou desenhos técnicos para publicação.
Naturalmente, a curva e a tecnologia do concreto seguem como protagonistas do discurso do arquiteto. Mas hoje há de se relativizar essa mensagem de extraordinária significação na primeira metade do século 20. A curva e o concreto não são mais revolucionários -vide o reluzente Museu Guggenheim de Bilbao, de Frank Ghery. Diria também que João Filgueiras Lima, o Lelé, logrou conferir nova consistência às curvas de inspiração niemeyeriana.
Não ousaria dizer, parafraseando a ironia de Philip Johnson, que Oscar Niemeyer é o "maior arquiteto do século 20". Mas graças ao arquiteto brasileiro sabemos que certos valores na arquitetura têm perenidade, não têm pátria e nem idade.


Hugo Segawa é arquiteto, livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. Autor de "Arquiteturas no Brasil -1900-1990" (Edusp, 2002) e "Arquitectura Contemporánea Latinoamericana" (Gustavo Gili, 2005).

Minha Arquitetura
1937-2005
424 págs., R$250 de Oscar Niemeyer. Ed. Revan (av. Paulo de Frontin, 163, CEP 20260-010, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2502-7495).


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