São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

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Álvaro Vieira Pinto critica o deslumbramento contemporâneo com a tecnologia, livrando-a da condição de panacéia ou de causadora dos males modernos

O computador e o analfabeto

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Conceito de Tecnologia", sem sombra de exagero, -monumental não por ser copioso em número de páginas- é o maior acontecimento editorial brasileiro das últimas décadas, porque versa com engenho e estilo a respeito de uma coisa que pouquíssima gente sabe: tecnologia.
Karl Marx intentou escrever uma história crítica da tecnologia, só que não teve tempo de fazê-lo. Darcy Ribeiro deixou alguma coisa em seu "O Processo Civilizatório" (Cia. das Letras), porém quem abordou a questão da tecnológica do ponto de vista filosófico foi Álvaro Vieira Pinto, uma das mais iluminadas inteligências do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado em 1955 e extinto em 1964, que denunciou o mata-borrão de estrelas e medalhões estrangeiros: "Fulano de tal representa Derrida, sicrano vai de Wittgenstein, aquele outro responde por Adorno"; todavia é difícil encontrar alguém pensando com a sua própria cabeça, sozinho ou acompanhado. "No país subdesenvolvido, o filósofo, como só registra o que foi pensado e dito nos centros metropolitanos, pode ser chamado de tabelião das idéias. A cultura, em conjunto, constitui o cartório dos acontecimentos alheios."
A pergunta foi por ele colocada: o que significa ser filósofo num país pobre e carente de soberania nacional? "No mundo subdesenvolvido e na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente a realidade, precisa ser analfabeto." O paradoxo de um filósofo "analfabeto alfabetizado" não é provocação da parte de um autor que leu tantos livros quanto Hegel ou Mallarmé.
O editor César Benjamin teve a sorte de encontrar as 1.400 páginas datilografadas no Rio de Janeiro. Essas páginas inéditas poderiam ter sido perdidas, e o fato de serem editadas em livro agora é motivo de júbilo para os leitores. Depois da publicação deste livro a cultura brasileira tem de ser repensada em sua totalidade material e espiritual. As reflexões de Álvaro Vieira Pinto sobre a tecnologia, a técnica e a cibernética têm alcance universal. Ele rompe o preconceito de que a filosofia em sua essência é grega e que somente a Europa tem acesso à visão universal do pensamento filosófico.
O autor não demoniza a tecnologia, a "ciência da técnica", como um dispositivo anti-humanista e anti-espiritual, tampouco embarca na mistificação, tão assídua nos dias de hoje, de achar que o computador seja o motor da história, que a técnica ou cibernética decida o destino da humanidade, como se houvesse um juízo final dirigido pelos computadores de Bill Gates.

Ideologia
Hegeliano-marxista, Álvaro Vieira Pinto acredita que a técnica é mediação, e que o homem é o verdadeiro autor de seu destino, e não a tecnologia. Ele nega que estaríamos atualmente vivendo numa prodigiosa "era tecnológica", isso simplesmente porque toda época possui a tecnologia a que pode ter acesso. Esse deslumbramento traz embutida a falsa idéia de que a história é um produto da técnica; trata-se de uma ideologia das nações metropolitanas e imperialistas para deixar embasbacada a periferia do mundo, conforme se observa nos filmes norte-americanos das últimas décadas em que o computador é invariavelmente o principal protagonista dos enredos.
Merece destaque a reflexão sobre a clivagem entre metrópole e colônia, principalmente porque ela desapareceu do mapa mental contemporâneo. Ainda que exerça um raio de ação cada vez mais devastador e abrangente, o imperialismo paradoxalmente tornou-se invisível e inabordável. Acredita-se piamente que é a falta de técnica a causa da fome, de modo que chegou o momento de dar técnica a quem passa fome.
A alienação que traz o pacote tecnológico externo é completada pelo investimento do capital estrangeiro. A transferência de tecnologia é um engano, assim como a importação de tecnologia não leva ao desenvolvimento. "Tão importante quanto elaborar a teoria do atraso do povo pobre é elaborar a da superioridade das nações metropolitanas", escreveu profeticamente Vieira Pinto.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "A Salvação da Lavoura" (Casa Amarela).

O Conceito de Tecnologia
532 págs. (vol. 1) e 796 págs. (vol. 2), R$ 60 (cada) de Álvaro Vieira Pinto. Ed. Contraponto (av. Franklin Roosevelt, 23, sala 1.405, CEP 20021-120, Centro, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/2544-0206).


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