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Álvaro Vieira Pinto critica o deslumbramento contemporâneo com a tecnologia, livrando-a da condição de panacéia ou de causadora dos males modernos
O computador e o analfabeto
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Conceito de Tecnologia",
sem sombra de exagero,
-monumental não por
ser copioso em número de
páginas- é o maior acontecimento
editorial brasileiro das últimas décadas, porque versa com engenho e estilo a respeito de uma coisa que pouquíssima gente sabe: tecnologia.
Karl Marx intentou escrever uma
história crítica da tecnologia, só que
não teve tempo de fazê-lo. Darcy Ribeiro deixou alguma coisa em seu
"O Processo Civilizatório" (Cia. das
Letras), porém quem abordou a
questão da tecnológica do ponto de
vista filosófico foi Álvaro Vieira Pinto, uma das mais iluminadas inteligências do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), fundado
em 1955 e extinto em 1964, que denunciou o mata-borrão de estrelas e
medalhões estrangeiros: "Fulano de
tal representa Derrida, sicrano vai de
Wittgenstein, aquele outro responde
por Adorno"; todavia é difícil encontrar alguém pensando com a sua
própria cabeça, sozinho ou acompanhado. "No país subdesenvolvido, o
filósofo, como só registra o que foi
pensado e dito nos centros metropolitanos, pode ser chamado de tabelião das idéias. A cultura, em conjunto, constitui o cartório dos acontecimentos alheios."
A pergunta foi por ele colocada: o
que significa ser filósofo num país
pobre e carente de soberania nacional? "No mundo subdesenvolvido e
na maior extensão analfabeto, o filósofo, para pensar autenticamente a
realidade, precisa ser analfabeto." O
paradoxo de um filósofo "analfabeto
alfabetizado" não é provocação da
parte de um autor que leu tantos livros quanto Hegel ou Mallarmé.
O editor César Benjamin teve a
sorte de encontrar as 1.400 páginas
datilografadas no Rio de Janeiro. Essas páginas inéditas poderiam ter sido perdidas, e o fato de serem editadas em livro agora é motivo de júbilo
para os leitores. Depois da publicação deste livro a cultura brasileira
tem de ser repensada em sua totalidade material e espiritual. As reflexões de Álvaro Vieira Pinto sobre a
tecnologia, a técnica e a cibernética
têm alcance universal. Ele rompe o
preconceito de que a filosofia em sua
essência é grega e que somente a Europa tem acesso à visão universal do
pensamento filosófico.
O autor não demoniza a tecnologia, a "ciência da técnica", como um
dispositivo anti-humanista e anti-espiritual, tampouco embarca na
mistificação, tão assídua nos dias de
hoje, de achar que o computador seja o motor da história, que a técnica
ou cibernética decida o destino da
humanidade, como se houvesse um
juízo final dirigido pelos computadores de Bill Gates.
Ideologia
Hegeliano-marxista, Álvaro Vieira
Pinto acredita que a técnica é mediação, e que o homem é o verdadeiro
autor de seu destino, e não a tecnologia. Ele nega que estaríamos atualmente vivendo numa prodigiosa
"era tecnológica", isso simplesmente porque toda época possui a tecnologia a que pode ter acesso. Esse deslumbramento traz embutida a falsa
idéia de que a história é um produto
da técnica; trata-se de uma ideologia
das nações metropolitanas e imperialistas para deixar embasbacada a
periferia do mundo, conforme se
observa nos filmes norte-americanos das últimas décadas em que o
computador é invariavelmente o
principal protagonista dos enredos.
Merece destaque a reflexão sobre a
clivagem entre metrópole e colônia,
principalmente porque ela desapareceu do mapa mental contemporâneo. Ainda que exerça um raio de
ação cada vez mais devastador e
abrangente, o imperialismo paradoxalmente tornou-se invisível e inabordável. Acredita-se piamente que
é a falta de técnica a causa da fome,
de modo que chegou o momento de
dar técnica a quem passa fome.
A alienação que traz o pacote tecnológico externo é completada pelo
investimento do capital estrangeiro.
A transferência de tecnologia é um
engano, assim como a importação
de tecnologia não leva ao desenvolvimento. "Tão importante quanto
elaborar a teoria do atraso do povo
pobre é elaborar a da superioridade
das nações metropolitanas", escreveu profeticamente Vieira Pinto.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "A Salvação da Lavoura" (Casa Amarela).
O Conceito de Tecnologia
532 págs. (vol. 1) e 796 págs. (vol. 2), R$ 60
(cada)
de Álvaro Vieira Pinto. Ed. Contraponto (av.
Franklin Roosevelt, 23, sala 1.405, CEP
20021-120, Centro, Rio de Janeiro, RJ, tel.
0/xx/21/2544-0206).
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