São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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+ brasil 502 d.C.

D. Quixote aceita o mundo como ele é, essencialmente injusto, sem pensar que essa injustiça possa ser corrigível de uma vez por todas

O quixotismo do Quixote

Evaldo Cabral de Mello

Como toda obra-prima, o "Dom Quixote" tem comportado quantidade de interpretações ou, como hoje se prefere dizer, de leituras. Não sendo cervantista, não tenho o conhecimento para passá-las em revista, mas como historiador prefiro ler a obra de Cervantes, à maneira do que outros já fizeram, como uma crítica do projeto imperial de Castela. O quixotismo do Quixote é a parábola individual do quixotismo da Espanha na Europa. Como indicou J.H. Elliott, a noção de que as exigências econômicas deveriam prevalecer ou ao menos condicionar as prioridades políticas da monarquia era algo que não passava absolutamente pela cabeça dos espanhóis do Século de Ouro. A Espanha tinha objetivos políticos e religiosos que deviam ser perseguidos, independentemente dos recursos de que dispusesse.
Desse propósito inflexível, que hoje teríamos na conta de irracional, deriva aquele ar de desespero, aquele clima fantasmagórico em que González de Cellorigo detectaria uma sociedade de "enfeitiçados, vivendo fora da ordem natural das coisas". É curioso, aliás, que a biografia do conde-duque de Olivares, principal ministro de Felipe 4º, descreva o percurso oposto ao de d. Quixote. Ao passo que o cavaleiro manchego recobra a saúde mental na hora da morte, Olivares enlouquece uma vez alijado do poder.
O quixotismo de d. Quixote é a ética do esforço inútil. Como no poema, o homem vive entre a inutilidade do fazer e a inutilidade do não-fazer. Ora, independentemente das implicações morais da passividade em termos da cultura ocidental, cabe observar que a inação é algo ainda mais penoso do que a ação, inútil ou não, devido ao fato de que ela exige as técnicas refinadas da vadiagem. E vadiagem não é o lazer. O lazer, e o esporte em primeiro lugar, são invenções do Ocidente que dão uma aparência de ócio ao que, na realidade, não passa de outra forma de ativismo.
Observem, por exemplo, o autêntico ocioso numa das suas mais importantes variedades, o ocioso de botequim. Quando o seu dia for meticulosamente inventariado, veremos que trabalho insano não terá feito na tentativa de gastar seu tempo em não fazer nada. Quem não for capaz de semelhante proeza, que se contente, como a maioria dos mortais, com o esforço inútil, desde que plenamente consciente da sua inutilidade.
Que todo esforço é necessariamente ilusório, sabe, por exemplo, o verdadeiro homem de Estado, embora só o confesse quando houver deixado o poder ou, antes, quando o poder o houver deixado. Só a fauna dos políticos ignora esse fato, e é inclusive por isso que eles não são homens de Estado, mas meros políticos.
Daí a inanidade dos "blue-prints" programáticos que confecciona a ingenuidade dos cientistas políticos ou a esperteza dos assessores ambiciosos. Mandar significa normalmente responder a problemas que se colocam a quem manda, não a problemas que o detentor do mando propõe-se a resolver, da mesma maneira pela qual d. Quixote não inventa suas aventuras, mas sai pelos caminhos da Mancha sabendo que elas estão aí, ao alcance de quem as deseje correr.
Atendo-nos a nossos vizinhos ilustres, sabia-o Bolívar ao lamentar certa vez que querer construir algo de sólido na América Latina era o mesmo que lavrar o oceano. Sabia-o Franklin Delano Roosevelt, ao observar que a tristeza estampada nos retratos de Lincoln vinha da consciência de não poder realizar tudo o que desejava. É compreensível que esse pessimismo seja particularmente vivo entre os homens de Estado, pois sendo o esforço necessariamente inútil, o é sobremaneira o objetivo de alcançar e de manter o poder. Entre os estadistas do século 20, foi De Gaulle que compreendeu mais agudamente a ironia inerente ao exercício do poder.
Em "Le Fil de l'Epée", uma reflexão sobre o mando que escreveu na mocidade de capitão do Exército, é visível o tom pessimista em que só se tem visto a influência de Nietzsche. Sabe-se que a procura da "grandeza" era o conceito fundamental do gaulismo, ou, antes, a "grandeza da França", a quem ele serviu como a outra Dulcinéia. Ora, a grandeza é precisamente definida, naquele ensaio de juventude, como algo que consiste "em sustentar uma grande querela". Repare-se bem: sustentá-la apenas, não vencê-la. D. Quixote não teria formulado melhor sua postura.
O próprio De Gaulle deu-se conta perfeitamente do seu parentesco espiritual com o personagem cervantino. Quando o poder já o havia definitivamente abandonado na esteira do referendo de 1969, ele recebeu André Malraux, seu ex-ministro da Cultura, no refúgio de Colombey-les-Deux-Eglises em Champagne. Malraux deixou em "Les Chênes qu'On Abat" um relato da longa conversação de domingo no gabinete, na mesa do almoço e durante o "tour du proprétaire".
Observando-lhe Malraux que ele, De Gaulle, era muito popular na Espanha, retorquiu vivamente o general tratar-se de algo natural, de vez que, afinal de contas, os espanhóis é que haviam inventado o d. Quixote. Ao que se pode aduzir que, necessitando, como todo d. Quixote, de um Sancho Pança, isto é, de sua lição cotidiana de bom senso, De Gaulle escolheu Georges Pompidou para primeiro-ministro, embora à cabeça do cavaleiro manchego não pudesse ocorrer que o escudeiro viesse jamais substituir-se a ele, como ocorreria na França após a renúncia do general.
A ética quixotesca está toda resumida naquele trecho da obra em que d. Quixote confessa a Sancho não saber o que realizava à custa de tantos trabalhos e de tantas penas. Não se tratava, contudo, de decepção do utopista, pois é essencial não confundir quixotismo e utopismo. Nosso herói não abandonou sua rotina acanhada de fidalgo manchego para fazer um mundo melhor; muito menos inspirava-o um projeto para o homem ou para a sociedade. Ele saiu em nome do ideal de emendar injustiças e punir delitos cometidos contra os mais fracos, como mandava a ética cavalheiresca, não para impedir que, no futuro, eles voltassem a ser praticados. O utopista, em comum com o racionalista, tem sempre um programa muito preciso; e d. Quixote tem um ideal, mas não tem projeto algum, o que é algo de eminentemente saudável numa época como a nossa, em que há demasiados projetos e poucos ideais.

Casuísta da aventura D. Quixote não tem projeto, só tem ideal, o que é algo bem diferente. Daí que, ao sair por três vezes da sua aldeia, não leve consigo nenhum plano concreto, nenhum objetivo definido, apenas a vaga intenção de topar com ocasiões em que conquiste a fama imorredoura, que o recomende inclusive, consideração, aliás, toda pragmática, ao amor de Dulcinéia. Forçando um pouco o vocábulo, poder-se-ia dizer que d. Quixote é um casuísta da aventura. Ora, como ocorre aos casuístas e por mais paradoxal que possa parecer, em se tratando do fidalgo da Mancha, ele é um realista ou, se quiserem, um cético a respeito da natureza humana e da sociedade, ceticismo que, por via de regra, é a precondição do conservadorismo, não do reacionarismo, que na sua indigência mental é apenas isso, um reflexo negativo e mais nada.
O herói de Cervantes está plenamente consciente de que a época que lhe tocou viver é o Século de Ferro, não o Século de Ouro, designação dada muito depois à sua época e com a qual ele certamente não concordaria. D. Quixote aceita o mundo como ele é, essencialmente injusto, sem pensar que essa injustiça possa ser corrigível de uma vez por todas, mediante a implantação de um mundo concebido pela reta razão, sendo apenas punível caso a caso, pontualmente, numa volta de caminho ou uma pousada de beira de estrada. É bem revelador o episódio dos galeotes, que d. Quixote arranca aos esbirros do rei. Consumada sua liberação, eis que voltam a ser presos pouco adiante, pois obviamente seu benfeitor não cogitara de sua segurança. O ato quixotesco esgota-se em si mesmo, não aspira ao futuro ou à permanência no tempo.
Que os politicamente corretos não se apressem, contudo, em acusar d. Quixote de reacionário. As utopias, no sentido em que as entendemos atualmente, só passaram a florescer muito depois dele, a partir do racionalismo das Luzes. Até então, elas enxergavam a felicidade humana ou em situações fora do espaço, donde a etimologia do vocábulo, ou no passado, numa Idade de Ouro que existira e que por fás ou nefas cabia restaurar. As utopias pós-iluministas situam a felicidade humana no futuro, em um mundo ainda a ser construído de acordo com as exigências da razão, donde poder-se dizer que, "stricto sensu", a Europa da Idade Média e da Idade Moderna não conheceu revoluções, ao menos como o vocábulo passou a ser usado a partir da primeira delas, a Revolução Francesa.
O emprego da palavra "revolução" para descrever fenômenos políticos foi originalmente feito na acepção cíclica que ela possuía ali de onde provinha, isto é, da astronomia, em que descrevia os movimentos regulares dos astros. Na segunda metade do século 17, revolução queria dizer apenas as alterações ocorridas no corpo político, não conotando nenhum juízo de valor.

Estranheza Golpe de Estado é outro vocábulo da época cujo significado inicial também nos escapa atualmente. Falando rigorosamente, golpe de Estado não é a derrubada de uma determinada situação política, quando dizemos, por exemplo, que se fez um golpe de Estado em tal ou qual país. Golpe de Estado era apenas a mudança política realizada não de fora para dentro do aparato estatal, mas exclusivamente no seu interior, como, por exemplo, o golpe de 1937 no Brasil, no qual o mesmo presidente da República aboliu a Constituição existente e ampliou seus poderes, proclamando a ditadura, outra palavra que só veio a adquirir sua acepção sinistra no decorrer do século 20. Na Roma clássica, a ditadura era apenas o regime provisório dotado de competências excepcionais com que lidar com uma situação extraordinária.
Quando designamos por revolução as grandes transformações políticas da história européia anteriores a 1789 tampouco estamos empregando o vocábulo com rigor ou, ao menos, no sentido em que era entendido, de vez que aquelas transformações foram vividas pelos que as promoveram como autênticas restaurações. Os holandeses que no século 16 se revoltaram contra o domínio espanhol não se propunham a criar um Estado novo ou uma sociedade nova, tão-somente restauraram os direitos e franquias de que haviam gozado desde o tempo dos duques de Borgonha.
Por muito tempo, eles relutaram em enxergar no sistema político das Províncias Unidas dos Países Baixos aquilo em que ele se havia transformado, isto é, um regime republicano. As duas revoluções inglesas do século 17 não foram tampouco levadas a cabo para estabelecer um novo Estado, mas para, em nome da antiga Constituição, real ou presumida, tanto faz, da Inglaterra resistir ao novo Estado que lhe propunham os reis Stuart.
A própria revolução das colônias britânicas da Costa Oeste da América do Norte reivindicava direitos, como, por exemplo, o de representação em nível imperial, tradicionalmente reconhecidos aos demais súditos da monarquia inglesa. A ideologia dos Pais Fundadores dos Estados Unidos foi importada, por assim dizer, do debate político da mãe-pátria. Nossa pobre Independência, que os otimistas designam por revolução da Independência, foi levada a cabo no pressuposto de que certos direitos preexistentes, como entre outros, os direitos dinásticos do regente d. Pedro, seriam escrupulosamente respeitados. A forma que tomou nossa emancipação política não visou tanto a garantir os direitos do cidadão, mas a assegurar os direitos da dinastia a esta parte da América.
Só a incompreensão do caráter de novidade radical que teve no seu tempo a Revolução Francesa explica a má vontade com que a obra de um Edmund Burke, por exemplo, é ainda encarada. A noção de que uma transformação política pudesse fazer tábula rasa de todo o passado de uma nação várias vezes secular ou de que estivesse ao alcance de um punhado de homens criar do nada um sistema político e uma organização social totalmente novos continham algo de demencial para o comum dos mortais dos fins do século 18. Burke apenas formulou com ceticismo e sofisticação intelectual esse sentimento de estranheza.

Dois sistemas de crenças Ademais, cumpre não confundir quixotismo e messianismo, visceralmente incompatíveis. Malgrado todo o arcaísmo do seu ideal de cavalaria, d. Quixote tem em comum com os homens do Renascimento a característica de viver entre duas épocas, como que sentado precariamente entre dois tamboretes ou, como diria Ortega, entre dois sistemas de crenças e, por conseguinte, num vácuo de convicções últimas. D. Quixote habita assim uma terra de ninguém, entre o messianismo e a antecipação do fim dos tempos, de um lado, e, de outro, a utopia moderna de uma sociedade justa a ser alcançada não pela ação casual, como era a sua, mas pela substituição sistemática do que existe pelo que deve existir.
No Renascimento, com efeito, já não se acredita tanto na proximidade dos fins dos tempos, ao contrário da Idade Média, e, por outro lado, ainda não vigem socialmente, embora possam existir em cabeças fantásticas, os projetos de sociedade justa na terra.
Se há necessidade de cavaleiros andantes, é porque a justiça d'El Rei não tem a eficácia que cabe esperar dela numa sociedade em que a função do monarca reside basicamente em administrar justiça. Numa época como a nossa, em que se espera sobretudo do Estado a felicidade material dos cidadãos, cumpre não esquecer que, até o século 18 ou, doutrinariamente, até a formulação da teoria da separação dos poderes, a principal missão do rei, encarnação do poder público, é a de dispensador da justiça. Daí expressões tais como a de justo preço, guerra justa, boa moeda. Mesmo as competências legislativas e executivas que ele enfeixa são essencialmente exercidas nesse objetivo de fazer justiça, assegurando a tranquilidade dos vassalos, cuja felicidade era encarada tão-somente na perspectiva de conservá-los em paz, no gozo das suas vidas e bens.
Nós mesmos temos na história medieval portuguesa, que pertence tanto a nós como brasileiros quanto aos portugueses, o caso extremo de d. Pedro 1º, cuja exasperação justiceira, tão bem pintada por Fernão Lopes na crônica do seu reinado, viria a custar-lhe o sobrenome de o Cru -Pedro, o Cru-, com que ficaria conhecido. Somente a partir de meados do século 17, com o regime republicano na Holanda, com as doutrinas mercantilistas e com a política econômica de Colbert, é que surgirá na Europa essa noção insólita para a época, segundo a qual cabe a El Rei ou ao Estado promover a riqueza da nação, pressuposto sob o qual ainda vivemos hoje, embora ele tenha assumido formas muito mais sofisticadas.
Donde a repulsa com que, ao tornar-se independente, foi a Holanda acolhida pelos outros países europeus. Como se não lhe bastasse ser república em meio a tantas monarquias, ela se apresentava como a primeira nação a propor-se não a salvação da alma dos seus cidadãos, embora houvesse feito do calvinismo religião do Estado, nem a glória da dinastia, de vez que o príncipe de Orange ainda não gozava do status de monarca, mas a prosperidade material do país, algo então de verdadeiramente escandaloso.


Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de, entre outros, "O Negócio do Brasil" (Topbooks). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".


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