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+ brasil 502 d.C.
D. Quixote aceita o mundo como ele é, essencialmente injusto, sem pensar que essa injustiça possa ser corrigível de uma vez por todas
O quixotismo do Quixote
Evaldo Cabral de Mello
Como toda obra-prima, o "Dom
Quixote" tem comportado
quantidade de interpretações ou,
como hoje se prefere dizer, de leituras. Não sendo cervantista, não tenho
o conhecimento para passá-las em revista, mas como historiador prefiro ler a
obra de Cervantes, à maneira do que outros já fizeram, como uma crítica do projeto imperial de Castela. O quixotismo
do Quixote é a parábola individual do
quixotismo da Espanha na Europa. Como indicou J.H. Elliott, a noção de que as
exigências econômicas deveriam prevalecer ou ao menos condicionar as prioridades políticas da monarquia era algo
que não passava absolutamente pela cabeça dos espanhóis do Século de Ouro. A
Espanha tinha objetivos políticos e religiosos que deviam ser perseguidos, independentemente dos recursos de que dispusesse.
Desse propósito inflexível, que hoje teríamos na conta de irracional, deriva
aquele ar de desespero, aquele clima fantasmagórico em que González de Cellorigo detectaria uma sociedade de "enfeitiçados, vivendo fora da ordem natural
das coisas". É curioso, aliás, que a biografia do conde-duque de Olivares, principal ministro de Felipe 4º, descreva o percurso oposto ao de d. Quixote. Ao passo
que o cavaleiro manchego recobra a saúde mental na hora da morte, Olivares
enlouquece uma vez alijado do poder.
O quixotismo de d. Quixote é a ética do
esforço inútil. Como no poema, o homem vive entre a inutilidade do fazer e a
inutilidade do não-fazer. Ora, independentemente das implicações morais da
passividade em termos da cultura ocidental, cabe observar que a inação é algo
ainda mais penoso do que a ação, inútil
ou não, devido ao fato de que ela exige as
técnicas refinadas da vadiagem. E vadiagem não é o lazer. O lazer, e o esporte em
primeiro lugar, são invenções do Ocidente que dão uma aparência de ócio ao
que, na realidade, não passa de outra forma de ativismo.
Observem, por exemplo, o autêntico
ocioso numa das suas mais importantes
variedades, o ocioso de botequim. Quando o seu dia for meticulosamente inventariado, veremos que trabalho insano
não terá feito na tentativa de gastar seu
tempo em não fazer nada. Quem não for
capaz de semelhante proeza, que se contente, como a maioria dos mortais, com
o esforço inútil, desde que plenamente
consciente da sua inutilidade.
Que todo esforço é necessariamente
ilusório, sabe, por exemplo, o verdadeiro
homem de Estado, embora só o confesse
quando houver deixado o poder ou, antes, quando o poder o houver deixado.
Só a fauna dos políticos ignora esse fato,
e é inclusive por isso que eles não são homens de Estado, mas meros políticos.
Daí a inanidade dos "blue-prints" programáticos que confecciona a ingenuidade dos cientistas políticos ou a esperteza dos assessores ambiciosos. Mandar
significa normalmente responder a problemas que se colocam a quem manda,
não a problemas que o detentor do mando propõe-se a resolver, da mesma maneira pela qual d. Quixote não inventa
suas aventuras, mas sai pelos caminhos
da Mancha sabendo que elas estão aí, ao
alcance de quem as deseje correr.
Atendo-nos a nossos vizinhos ilustres,
sabia-o Bolívar ao lamentar certa vez que
querer construir algo de sólido na América Latina era o mesmo que lavrar o
oceano. Sabia-o Franklin Delano Roosevelt, ao observar que a tristeza estampada nos retratos de Lincoln vinha da consciência de não poder realizar tudo o que
desejava. É compreensível que esse pessimismo seja particularmente vivo entre
os homens de Estado, pois sendo o esforço necessariamente inútil, o é sobremaneira o objetivo de alcançar e de manter
o poder. Entre os estadistas do século 20,
foi De Gaulle que compreendeu mais
agudamente a ironia inerente ao exercício do poder.
Em "Le Fil de l'Epée", uma reflexão sobre o mando que escreveu na mocidade
de capitão do Exército, é visível o tom
pessimista em que só se tem visto a influência de Nietzsche. Sabe-se que a procura da "grandeza" era o conceito fundamental do gaulismo, ou, antes, a "grandeza da França", a quem ele serviu como
a outra Dulcinéia. Ora, a grandeza é precisamente definida, naquele ensaio de
juventude, como algo que consiste "em
sustentar uma grande querela". Repare-se bem: sustentá-la apenas, não vencê-la.
D. Quixote não teria formulado melhor
sua postura.
O próprio De Gaulle deu-se conta perfeitamente do seu parentesco espiritual
com o personagem cervantino. Quando
o poder já o havia definitivamente abandonado na esteira do referendo de 1969,
ele recebeu André Malraux, seu ex-ministro da Cultura, no refúgio de Colombey-les-Deux-Eglises em Champagne.
Malraux deixou em "Les Chênes qu'On
Abat" um relato da longa conversação de
domingo no gabinete, na mesa do almoço e durante o "tour du proprétaire".
Observando-lhe Malraux que ele, De
Gaulle, era muito popular na Espanha,
retorquiu vivamente o general tratar-se
de algo natural, de vez que, afinal de contas, os espanhóis é que haviam inventado
o d. Quixote. Ao que se pode aduzir que,
necessitando, como todo d. Quixote, de
um Sancho Pança, isto é, de sua lição cotidiana de bom senso, De Gaulle escolheu Georges Pompidou para primeiro-ministro, embora à cabeça do cavaleiro
manchego não pudesse ocorrer que o escudeiro viesse jamais substituir-se a ele,
como ocorreria na França após a renúncia do general.
A ética quixotesca está toda resumida
naquele trecho da obra em que d. Quixote confessa a Sancho não saber o que realizava à custa de tantos trabalhos e de
tantas penas. Não se tratava, contudo, de
decepção do utopista, pois é essencial
não confundir quixotismo e utopismo.
Nosso herói não abandonou sua rotina
acanhada de fidalgo manchego para fazer um mundo melhor; muito menos
inspirava-o um projeto para o homem
ou para a sociedade. Ele saiu em nome
do ideal de emendar injustiças e punir
delitos cometidos contra os mais fracos,
como mandava a ética cavalheiresca, não
para impedir que, no futuro, eles voltassem a ser praticados. O utopista, em comum com o racionalista, tem sempre
um programa muito preciso; e d. Quixote tem um ideal, mas não tem projeto algum, o que é algo de eminentemente
saudável numa época como a nossa, em
que há demasiados projetos e poucos
ideais.
Casuísta da aventura D. Quixote
não tem projeto, só tem ideal, o que é algo bem diferente. Daí que, ao sair por
três vezes da sua aldeia, não leve consigo
nenhum plano concreto, nenhum objetivo definido, apenas a vaga intenção de
topar com ocasiões em que conquiste a
fama imorredoura, que o recomende inclusive, consideração, aliás, toda pragmática, ao amor de Dulcinéia. Forçando
um pouco o vocábulo, poder-se-ia dizer
que d. Quixote é um casuísta da aventura. Ora, como ocorre aos casuístas e por
mais paradoxal que possa parecer, em se
tratando do fidalgo da Mancha, ele é um
realista ou, se quiserem, um cético a respeito da natureza humana e da sociedade, ceticismo que, por via de regra, é a
precondição do conservadorismo, não
do reacionarismo, que na sua indigência
mental é apenas isso, um reflexo negativo e mais nada.
O herói de Cervantes está plenamente
consciente de que a época que lhe tocou
viver é o Século de Ferro, não o Século de
Ouro, designação dada muito depois à
sua época e com a qual ele certamente
não concordaria. D. Quixote aceita o
mundo como ele é, essencialmente injusto, sem pensar que essa injustiça possa ser corrigível de uma vez por todas,
mediante a implantação de um mundo
concebido pela reta razão, sendo apenas
punível caso a caso, pontualmente, numa volta de caminho ou uma pousada de
beira de estrada. É bem revelador o episódio dos galeotes, que d. Quixote arranca aos esbirros do rei. Consumada sua liberação, eis que voltam a ser presos pouco adiante, pois obviamente seu benfeitor não cogitara de sua segurança. O ato
quixotesco esgota-se em si mesmo, não
aspira ao futuro ou à permanência no
tempo.
Que os politicamente corretos não se
apressem, contudo, em acusar d. Quixote de reacionário. As utopias, no sentido em que as entendemos atualmente, só
passaram a florescer muito depois dele, a
partir do racionalismo das Luzes. Até então, elas enxergavam a felicidade humana ou em situações fora do espaço, donde a etimologia do vocábulo, ou no passado, numa Idade de Ouro que existira e
que por fás ou nefas cabia restaurar. As
utopias pós-iluministas situam a felicidade humana no futuro, em um mundo
ainda a ser construído de acordo com as
exigências da razão, donde poder-se dizer que, "stricto sensu", a Europa da Idade Média e da Idade Moderna não conheceu revoluções, ao menos como o vocábulo passou a ser usado a partir da primeira delas, a Revolução Francesa.
O emprego da palavra "revolução" para descrever fenômenos políticos foi originalmente feito na acepção cíclica que
ela possuía ali de onde provinha, isto é,
da astronomia, em que descrevia os movimentos regulares dos astros. Na segunda metade do século 17, revolução queria
dizer apenas as alterações ocorridas no
corpo político, não conotando nenhum
juízo de valor.
Estranheza Golpe de Estado é outro
vocábulo da época cujo significado inicial também nos escapa atualmente. Falando rigorosamente, golpe de Estado
não é a derrubada de uma determinada
situação política, quando dizemos, por
exemplo, que se fez um golpe de Estado
em tal ou qual país. Golpe de Estado era
apenas a mudança política realizada não
de fora para dentro do aparato estatal,
mas exclusivamente no seu interior, como, por exemplo, o golpe de 1937 no
Brasil, no qual o mesmo presidente da
República aboliu a Constituição existente e ampliou seus poderes, proclamando
a ditadura, outra palavra que só veio a
adquirir sua acepção sinistra no decorrer
do século 20. Na Roma clássica, a ditadura era apenas o regime provisório dotado
de competências excepcionais com que
lidar com uma situação extraordinária.
Quando designamos por revolução as
grandes transformações políticas da história européia anteriores a 1789 tampouco estamos empregando o vocábulo com
rigor ou, ao menos, no sentido em que
era entendido, de vez que aquelas transformações foram vividas pelos que as
promoveram como autênticas restaurações. Os holandeses que no século 16 se
revoltaram contra o domínio espanhol
não se propunham a criar um Estado novo ou uma sociedade nova, tão-somente
restauraram os direitos e franquias de
que haviam gozado desde o tempo dos
duques de Borgonha.
Por muito tempo, eles relutaram em
enxergar no sistema político das Províncias Unidas dos Países Baixos aquilo em
que ele se havia transformado, isto é, um
regime republicano. As duas revoluções
inglesas do século 17 não foram tampouco levadas a cabo para estabelecer um
novo Estado, mas para, em nome da antiga Constituição, real ou presumida,
tanto faz, da Inglaterra resistir ao novo
Estado que lhe propunham os reis
Stuart.
A própria revolução das colônias britânicas da Costa Oeste da América do Norte reivindicava direitos, como, por exemplo, o de representação em nível imperial, tradicionalmente reconhecidos aos
demais súditos da monarquia inglesa. A
ideologia dos Pais Fundadores dos Estados Unidos foi importada, por assim dizer, do debate político da mãe-pátria.
Nossa pobre Independência, que os otimistas designam por revolução da Independência, foi levada a cabo no pressuposto de que certos direitos preexistentes, como entre outros, os direitos dinásticos do regente d. Pedro, seriam escrupulosamente respeitados. A forma que
tomou nossa emancipação política não
visou tanto a garantir os direitos do cidadão, mas a assegurar os direitos da dinastia a esta parte da América.
Só a incompreensão do caráter de novidade radical que teve no seu tempo a
Revolução Francesa explica a má vontade com que a obra de um Edmund Burke, por exemplo, é ainda encarada. A noção de que uma transformação política
pudesse fazer tábula rasa de todo o passado de uma nação várias vezes secular
ou de que estivesse ao alcance de um punhado de homens criar do nada um sistema político e uma organização social
totalmente novos continham algo de demencial para o comum dos mortais dos
fins do século 18. Burke apenas formulou
com ceticismo e sofisticação intelectual
esse sentimento de estranheza.
Dois sistemas de crenças Ademais, cumpre não confundir quixotismo
e messianismo, visceralmente incompatíveis. Malgrado todo o arcaísmo do seu
ideal de cavalaria, d. Quixote tem em comum com os homens do Renascimento
a característica de viver entre duas épocas, como que sentado precariamente
entre dois tamboretes ou, como diria Ortega, entre dois sistemas de crenças e, por
conseguinte, num vácuo de convicções
últimas. D. Quixote habita assim uma
terra de ninguém, entre o messianismo e
a antecipação do fim dos tempos, de um
lado, e, de outro, a utopia moderna de
uma sociedade justa a ser alcançada não
pela ação casual, como era a sua, mas pela substituição sistemática do que existe
pelo que deve existir.
No Renascimento, com efeito, já não se
acredita tanto na proximidade dos fins
dos tempos, ao contrário da Idade Média, e, por outro lado, ainda não vigem
socialmente, embora possam existir em
cabeças fantásticas, os projetos de sociedade justa na terra.
Se há necessidade de cavaleiros andantes, é porque a justiça d'El Rei não tem a
eficácia que cabe esperar dela numa sociedade em que a função do monarca reside basicamente em administrar justiça.
Numa época como a nossa, em que se espera sobretudo do Estado a felicidade
material dos cidadãos, cumpre não esquecer que, até o século 18 ou, doutrinariamente, até a formulação da teoria da
separação dos poderes, a principal missão do rei, encarnação do poder público,
é a de dispensador da justiça. Daí expressões tais como a de justo preço, guerra
justa, boa moeda. Mesmo as competências legislativas e executivas que ele enfeixa são essencialmente exercidas nesse
objetivo de fazer justiça, assegurando a
tranquilidade dos vassalos, cuja felicidade era encarada tão-somente na perspectiva de conservá-los em paz, no gozo das
suas vidas e bens.
Nós mesmos temos na história medieval portuguesa, que pertence tanto a nós
como brasileiros quanto aos portugueses, o caso extremo de d. Pedro 1º, cuja
exasperação justiceira, tão bem pintada
por Fernão Lopes na crônica do seu reinado, viria a custar-lhe o sobrenome de o
Cru -Pedro, o Cru-, com que ficaria
conhecido. Somente a partir de meados
do século 17, com o regime republicano
na Holanda, com as doutrinas mercantilistas e com a política econômica de Colbert, é que surgirá na Europa essa noção
insólita para a época, segundo a qual cabe a El Rei ou ao Estado promover a riqueza da nação, pressuposto sob o qual
ainda vivemos hoje, embora ele tenha assumido formas muito mais sofisticadas.
Donde a repulsa com que, ao tornar-se
independente, foi a Holanda acolhida
pelos outros países europeus. Como se
não lhe bastasse ser república em meio a
tantas monarquias, ela se apresentava
como a primeira nação a propor-se não a
salvação da alma dos seus cidadãos, embora houvesse feito do calvinismo religião do Estado, nem a glória da dinastia,
de vez que o príncipe de Orange ainda
não gozava do status de monarca, mas a
prosperidade material do país, algo então de verdadeiramente escandaloso.
Evaldo Cabral de Mello é historiador, autor de,
entre outros, "O Negócio do Brasil" (Topbooks). Escreve mensalmente na seção "Brasil 502 d.C.".
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