São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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O democratismo totalitário pós-moderno

Juan José Saer

Uma coisa é certa: quando se trata de definir a pós-modernidade, são raros os conceitos rigorosamente estéticos entre seus defensores. Em compensação pululam as considerações históricas, sociológicas, políticas, jornalísticas, culturais, e a justificativa principal da atitude pós-moderna resultaria de um diagnóstico inapelável: a morte das vanguardas.
Outras proposições que caracterizam o pós-modernismo são o argumento quantitativo aplicado à difusão e à recepção da obra de arte e a reivindicação, como antítese das vanguardas, de uma suposta diversidade cultural, representativa do autêntico gosto das massas em oposição ao elitismo vanguardista. Há pouco tempo, um ataque contra Pierre Boulez e a música contemporânea se baseou no argumento de que a produção dessa música era escassa e dirigida a um punhado de fanáticos e, por outro lado, que a verdadeira contemporaneidade incluía tudo o mais, numa lista heteróclita que incluía Ravel e a salsa, Francis Poulenc e a canção popular francesa, Richard Strauss e John Coltrane etc.
Esse argumento contra a vanguarda musical poderia ser reduzido a um sofisma economicista: considerando o custo da experimentação musical, em instalações sonoras, computadores, pessoal etc., as poucas horas de criação anual e o escasso público elitista interessado nelas, essa música seria pouco competitiva e, portanto, antieconômica.
O pós-modernismo considera as vanguardas um movimento dogmático e, com a restauração de certo conformismo estético, parece dizer mais ou menos o seguinte: uma vez que as obrigações impostas pelas vanguardas já não têm vigência, decidimos recuperar nossa liberdade. O pós-modernismo é como um senhor divorciado que, não se sentindo mais obrigado a ser fiel a uma mulher exigente, se lança sem reparos a frequentar prostitutas. Como um buraco negro, seu vácuo teórico absorveu vertiginosamente os academismos e os ressentimentos que haviam sido proscritos pelo desenvolvimento das vanguardas ao longo do século 20. E, se somos obrigados a nos referir ao pós-modernismo por meio de metáforas e comparações, é justamente porque se trata de um fenômeno inapreensível do ponto de vista conceitual. Sua essência misteriosa só é reconhecível por suas recusas e seus efeitos.
Sua oposição às vanguardas não é artística, mas supostamente ética, política, cultural: à imensa tirania das vanguardas, opõe o democratismo pós-moderno. Em seu oco relativismo, os contrários, quando não se reconciliam, existem em um plano de igualdade, de tal maneira que, em sua opinião, Paulo Coelho e Guimarães Rosa são igualmente romancistas, e, dentro da lógica democratista que faz do público a instância decisiva do processo criador, a supremacia cabe ao mais votado, ou seja, na crua linguagem economicista prevalecente hoje em dia, ao mais vendido. A prioridade na arte do valor de troca sobre o valor de uso define com suficiente clareza a concepção pós-moderna.

Frouxo consenso Por volta de 1840, Charles Fourier já afirmava que a civilização, etapa a que chegou a sociedade moderna, é apenas a última forma, insidiosa e onipresente, que assume a barbárie. Inversamente o democratismo sustenta hoje que nossa sociedade encarna o melhor dos mundos possíveis.
A tendência pós-moderna é um epifenômeno da ideologia ultraliberal, que, em meados dos anos 70, financiou certos historiadores para incitá-los a denegrir a Revolução Francesa ou os movimentos terceiro-mundistas, que não por terem se extraviado em estratégias equivocadas deixaram de ter razão, como agora volta a evidenciar a dita globalização. Os ideólogos do ultraliberalismo pretenderam durante alguns anos que havíamos chegado ao fim da história. O democratismo pós-moderno é a expressão dessa ideologia transposta à cultura.
Apesar de sua reivindicação da liberdade na arte, o pós-modernismo está estreitamente ligado à ideologia oficial dos ultraliberais. Seu democratismo -que não tem nada a ver com a democracia, cujas exigências e responsabilidades éticas e sociais são inconciliáveis com o liberalismo selvagem- contenta-se em reivindicar as mais frouxas e vagas categorias do consenso, para o qual imediatamente se exclui do debate toda tentação de ruptura.
Assim, por exemplo, tal como o público -leia-se o cliente- é o juiz supremo da pertinência artística, o academicismo se apresenta como um novo classicismo, e o discurso artístico se confunde com os valores da opinião, de modo que, no caso da literatura, os romancistas já não precisam buscar novos caminhos formais ou uma visão inédita do mundo para exercer sua arte, bastando-lhes limitar-se a reproduzir a ideologia, os valores e a situação social, étnica ou cultural de seu público.
Nesse sentido, os gêneros cumprem o mesmo papel que a embalagem invariável de uma marca de café: sua finalidade é permitir ao cliente identificar com clareza o produto que está procurando. A famosa emancipação pós-moderna da tirania das vanguardas não passa da liberalização ultraliberal do comércio, que busca eliminar todas as barreiras que possam atrapalhar a concorrência mais selvagem. Essa concorrência, por outro lado, não se atém a nenhum código; as regras mundiais do comércio só beneficiam aqueles que já gozam de uma posição privilegiada no mercado.
No pós-modernismo, o artista deixa de ser o artesão em que o transformara a era industrial para tornar-se uma espécie de microempresário. Não há mais movimentos literários reunidos em torno a uma filosofia ou a uma estética, como o romantismo, o expressionismo, o surrealismo etc., mas apenas empreendedores isolados que fornecem sua mercadoria de acordo com as demandas do mercado -o que mais se vende no momento ou o que melhor fixa e perpetua a marca desse ou daquele autor- e que produzem vários produtos diferentes, de acordo com o destinatário, como, por exemplo, os jornais ou as coleções especializadas em diversos gêneros (histórico, policial, erótico etc.), e até trabalham sem assinar, como roteiristas, adaptadores ou escritores fantasmas que vendem matéria-prima literária a todos aqueles que, sem saber escrever, também querem produzir literatura.
O que não impede, se a demanda de trabalho superar sua capacidade de produção, que se contrate pessoal extra para realizá-lo em seu lugar.
É obvio que esse estado de coisas, próprio da sociedade mercantil, é anterior à voga pós-moderna: o que acontece, simplesmente, é que o pós-modernismo de fato legitima coisas antes consideradas aviltantes para a atividade literária, como o endeusamento do público, a rejeição à obscuridade e à complexidade formal.

Atitude demagógica Na realidade, cada vez que uma suposta teoria exalta o público e exige seu respeito por parte do artista, o mais provável é que se trate, apenas, não de uma alegação estética, mas de uma atitude demagógica tendente a justificar alguma inconfessável deturpação. Porque, de fato, por mais que finja libertar o público da tirania das vanguardas instaurando uma liberdade estética que decrete a definitiva abolição, na glaciação final da história, da querela entre clássicos e modernos, a propaganda pós-moderna não passa de uma tentativa de normalização.
Não foi a primeira nem a única do século 20: stalinismo, nazismo e capitalismo colaboraram, cada qual a seu tempo e a seu modo, para a condenação das vanguardas. Também essas ideologias pretenderam encarnar o gosto de uma maioria - proletariado, povo alemão, público- e decretaram a abolição da experimentação, da pesquisa formal, da liberdade de pensamento estética, filosófica e política, quando essa liberdade não coincidia com os desígnios de hegemonia dos Estados que encarnavam essas ideologias. Nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra Mundial, o processo de normalização é evidente.


No pós-modernismo, o artista deixa de ser o artesão em que o transformara a era industrial para tornar-se uma espécie de microempresário


Depois da brilhante eclosão vanguardista durante a Revolução Russa de 1917, a grotesca planificação pseudoartística do realismo socialista veio para acabar com todo intento de diversidade filosófica e estética; com sua infame elucubração sobre a arte degenerada, os nazistas pretenderam condenar as mais importantes criações artísticas, científicas e filosóficas do primeiro terço do século. Pelos mesmos anos da década de 30, um complicado sistema de censura transformou o cinema norte-americano em um dócil instrumento de propaganda, fazendo-o adquirir hábitos que até hoje, 30 anos depois de se libertar desses códigos, a indústria de Hollywood, apesar de sua pretensa soltura política, moral e sexual, foi incapaz de superar. Sabe-se que um dos personagens mais sinistros do establishment estadunidense, Edgard Hoover, diretor do FBI, almoçava todos os meses com os produtores das grandes empresas cinematográficas.
Esses atos terroristas disfarçados de teorias estéticas também eram pós-modernos: vinham combater tudo o que pudesse haver de novo na arte e no pensamento, invocando uma suposta orientação reclamada pela maioria, e restaurar valores pretensamente populares, baseados na tradição, na clareza, na mensagem positiva, no folclore. Contra o dodecafonismo, os nazistas invocavam Beethoven, Wagner, Richard Strauss mas também as marchas militares e as canções populares, assim como hoje os pós-modernos misturam Ravel, a música repetitiva norte-americana e a salsa para se opor à música contemporânea.
Os burocratas de Stálin raciocinavam do mesmo modo: os propagandistas do regime tentavam anexar Tchecov, Tolstói, Cervantes ou Balzac, misturando-se com eles no mesmo saco, enquanto Mandelstam, Essenin e Dostoiévski eram postos em outro, que era mandado para os campos ou para o silêncio. Já no cinema de Hollywood, as leis do teatro de bulevar e os valores e a forma do melodrama imperaram em seus produtos de maneira excludente, até banir deles toda realidade, apesar da caricatura de realismo imposta pelas exigências da propaganda: o pretexto, naturalmente, era o gosto do público, e podemos ver nessa instrumentalização do cinema norte-americano pelo poder político uma das primeiras expressões do democratismo pós-moderno.
No democratismo não se proíbe nada ou quase nada: esmaga-se qualquer aceno de independência a partir de uma posição de predomínio econômico, informativo, institucional. A arte é marginalizada, e, para os produtos industriais, a publicidade maciça e onipresente e a comunicação empresarial dirigida à mídia, em que já está sugerido de antemão o que se deve dizer do produto, tornam toda crítica supérflua.

"Exceção cultural" O conflito entre certos países europeus e os ultraliberais da Organização Mundial do Comércio a propósito da chamada "exceção cultural" revela claramente o fundo do problema. Com a mais pura lógica pós-moderna, os "economicistas" atuais (que, diga-se de passagem, durante a Guerra Fria tachavam os comunistas de insensíveis materialistas, atribuindo a si mesmos o monopólio dos valores espirituais) proferem suas reivindicações: no espaço mercantil, as distinções são supérfluas, e não faz sentido exigir uma exceção para os objetos culturais, uma vez que são uma mercadoria como outra qualquer.
Os pós-modernos querem transportar para o plano artístico propriamente dito a inutilidade de estabelecer distinções apropriadas. Implicitamente, para eles, voltando ao exemplo utilizado acima, Paulo Coelho e Guimarães Rosa são igualmente romancistas. Essa identificação notoriamente inadequada talvez não seja uma grosseira tentativa de nivelamento, mas apenas um sintoma de impotência: a sumária alegação que contém, em favor de uma maioria fantasmagórica chamada público, revelaria neles a carência dos conceitos necessários para apreender as evidentes diferenças.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Sergio Molina.


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