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"Glauber Pátria Rocha Livre" reduz a importância do cineasta baiano ao tentar associá-lo a um nacionalismo folclórico e redentor
CLONAGEM ESTÉRIL
Ivana Bentes
especial para a Folha
Gilberto Vasconcellos vem se especializando em "fait-divers"
cultural, ou seja, tratar com retórica sensacionalista uma série
de questões políticas e culturais bem
complexas. O que tem o seu atrativo.
Pois sempre soará muito espirituoso escrever que "cineasta brasileiro que não é
nacionalista ou é uma besta insciente ou
um neurótico masoquista -ou senão
um agente semiótico da pilhagem colonial". Pelo tom, já deduzimos que Glauber não será apenas o tema do seu livro,
mas seu detonador, e Vasconcellos, uma
espécie de ventríloquo ou "cavalo" de
Glauber.
A retórica glauberiana é mimetizada de
cabo a rabo no livro, partes do seu pensamento, crenças, desafetos e intuições são
mixadas e assumidas por Gilberto Vasconcellos neste "ensaião", na definição
do autor, que dispensa bibliografia, notas, origem das suas fontes e assume que
quer fazer "folclore", inserir Glauber no
"folclore" do milênio, tirá-lo da "tagarelice póstuma" da mídia, fugir do "anedotário pessoal". Ou seja, nada menos que
"legitimar" Glauber, "amplificá-lo" de
forma definitiva no imaginário brasileiro, pela prosa legitimadora do seu "porta-voz".
Como folclore, o livro do sociólogo Gilberto Vasconcellos se sustenta: é um
misto de teses originais com compilação-diluição do que já foi escrito até agora sobre Glauber Rocha. Temas, questões, análises -precedente que o próprio autor se apressou em desqualificar
ou ignorar, anunciando que o morto,
Glauber, ainda não tinha sido justiçado
intelectualmente e esperava, se deduz,
este livro, lançado, "depois de 20 anos de
pesquisas", numa data redonda, os 20
anos da morte de Glauber, em 1981.
Não duvidamos que Gilberto Vasconcellos possa trazer uma contribuição na leitura da obra de Glauber, mas fica difícil
levar a sério um autor que, desculpem a
grosseria, goza com o pau alheio, de forma tão mimética e parasitária e, legitimado pelo gênio do outro, sai todo pimpão anunciando verdades grandiloquentes do tipo "os intelectuais brasileiros
não têm a mais vaga idéia de quem são os
inimigos do povo" ou insistindo que
Glauber foi assassinado culturalmente e
que "pagou um preço altíssimo nessa de
crítico da viadagem no Brasil, ou seja, o
crítico da ópera gay disseminada pela
TV, onde ninguém é mais culturalmente
responsável por coisa alguma" ou platitudes como "entre o popular e o erudito
existe a mediação: a cuca colonizada by
Roliudi Globo".
Esse tipo de retórica, esse nível de clichê -"o sujeito livre é descolonizado, o
que está com os olhos vendados para o
seu país é aquele que se deixa absorver
por outra linguagem"-, está na boca de
qualquer gerente cultural e mesmo no
discurso neopopular e neonacionalista
da TV, demonizada por Vasconcellos
como o mal supremo. Basta observar a
explosão recente do populismo e nacionalismo em programas tipo "Brava Gente", nas novelas, a "folkmídia", para vislumbrar os equívocos possíveis perpetrados em nome do nacionalismo.
Nacionalismo engessado O livro de Gilberto Vasconcellos consegue o feito inverso ao que se propõe, pois, ao eleger o "nacionalismo" glauberiano como
o supra-sumo do seu pensamento, aprisiona Glauber numa imagem aquém
desse próprio pensamento, infinitamente mais complexo, e que explode, de dentro, certo nacionalismo engessado e "folclórico" em direção ao "cósmico", ao mito (o que já foi mais do que indicado em
todos os estudos precedentes sobre a
obra de Glauber).
Como bom folclorista, o autor dialoga
com sujeitos ocultos e genéricos quando
quer desqualificar os que se oporiam ao
pensamento glauberiano: "Muitos críticos", os "idiotas", os professores universitários, o intelectual acadêmico uspiano, o cinema paulista, a
cultura paulista, a burguesia paulista, enfim o "ser"
paulista (aliás, uma obsessão do autor, que traça
uma linha ideológica "que
vai da Vera Cruz a FHC,
ou seja: a castração erótica
do mameluco paulista").
Aqui se ancora, fragilmente, em Glauber, ressaltando o que há de mais duvidoso ou simplesmente irrelevante no seu
discurso. Ao intelectual paulista, encarnação do "intelectual americanizado no
Brasil", o autor contrapõe a "imaginação
verdadeira" do tipo popular brasileiro.
Intelectual autêntico para Vasconcellos seria algo próximo do "cego contador de fábulas e lendas". Difícil aceitar
tanto maniqueísmo, que não existe em
Glauber, diretor de "Terra em Transe",
"Di Cavalcanti", "A Idade da Terra", cineasta cujos personagens são do povo,
da elite, da classe média, entidades míticas, personagens conceituais sem essa
divisão escolar entre uma metafísica rural e o decadentismo urbano (ecos de Euclides da Cunha com os seus "histéricos e
neurastênicos" do litoral?). Glauber é um
cineasta cosmopolita que, para além do
folclore rural brasileiro, leu, curtiu, incorporou e usou nos seus filmes e pensamento a teoria francesa, a psicanálise, o
pós-estruturalismo, todo o arsenal teórico universitário francês e latino-americano disponível na época, sem esse purismo extemporâneo que o autor quer
lhe enfiar pela obra abaixo.
Vasconcellos vai incorrendo em tudo o
que anunciava rejeitar: a fofoca, o irrelevante, as picuinhas, as frases de efeito, o
piadismo intelectual, uma espécie de
Casseta & Planeta teórico, que só não é
mais engraçado porque se leva a sério
demais.
Afinal qual a tese do livro de Vasconcellos? Que o eclipse do nacionalismo brasileiro (como se houvesse apenas um!) é
a mãe de todas as nossas desgraças. A
questão é que o nacionalismo em Glauber explode qualquer idéia de nação em
nome de um "nacional-universal", de
um campo mítico da nacionalidade, enquanto Vasconcellos insiste num nacionalismo, "pureza" brasileira, encontrado
nos rincões do Brasil rural, guardado por
Deus Pai, Câmara Cascudo, encarnado
politicamente por Getúlio Vargas e Jango e desenvolvido esteticamente por Villa-Lobos e Glauber, entre outros.
Clonagem glauberiana A tese do
livro, esse nacionalismo
redentor, anunciada, reiterada, como refrão ou
slogan, preconiza o seguinte: "A síntese de Vargas e Villa-Lobos engendrou o Cinema Novo revolucionário porque se
insurgiu contra a ocupação imperialista,
buscando a fonte de resistência em Aleijadinho, Humberto Mauro e Niemeyer,
conforme se vê em "Terra em Transe'".
Conforme se vê em "Terra em Transe"?
Aliás, o autor se apressa em dizer que
não é cinéfilo nem crítico de cinema. Vai
procurar discorrer sobre suas teses lançando mão de tudo o que puder ser útil
(textos, cartas, depoimentos), com o que
concordamos plenamente, sem ater-se à
análise dos filmes. Mas, ao final do "ensaião" folclórico, eu já sonhava com algumas das lúcidas, argutas e consistentes
análises de filmes de Glauber feitas por
críticos como Ismail Xavier ou Jean-Claude Bernardet, sujeitos "ocultos" no
texto de Vasconcellos, "acadêmicos uspianos" que o autor simplesmente ignora (isso é folclore!).
Por mais que compartilhe verdadeiramente muitas das preocupações e temas
apresentados pelo autor, sua retórica autolegitimadora e a clonagem glauberiana
(seja Xuxa, FHC ou Glauber o assunto)
tornam tudo estéril. E é preciso dizer que
uma série de idéias que foram apresentadas no ensaio de 70 páginas "O Devorador de Mitos", no livro "Cartas ao Mundo - Glauber Rocha", que organizei, aparecem "legitimadas" pelo autor, sem a
mais breve alusão (isso é folclore!).
É claro que Vasconcellos tem intuições
originais sobre política, conjunturas, saques perdidos no meio dessa retórica automistificadora, mas, quando já estamos
entrando na onda gilbertiana, o autor
-que num desses momentos originais
resgata a figura de Getúlio Vargas e Jango no imaginário político e mítico de
Glauber- vem com a síntese folclórico-profética: "A superação da tragédia de
Vargas não se concretiza na história,
porque em 1964 Getúlio morre de novo
com a deposição de João Goulart, de modo que a doutrina nacional trabalhista
vai materializar-se esteticamente no Cinema Novo como a utopia inscrita na
música de Villa-Lobos". Eis de novo a tese do livro, no estilo "me segura que eu
vou ter um saque!".
Há outros momentos de sacações no livro, mas, por mais que se esforce por
emular o discurso flamejante de Glauber
Rocha e nos apresentar um "balanço" da
obra que o inseriria de vez por todas no
folclore contemporâneo, Gilberto Vasconcellos cria uma espécie de folclore
classe média, ou seja, a repetição e incorporação sem cerimônia de tudo o que foi
escrito sobre Glauber para valorizar o
seu (do autor) capital simbólico na bolsa
de cultura. Afinal também há vantagens
em ser identificado com a "grife" Glauber (isso é folclore!).
Vasconcellos cita muito a crítica francesa Sylvie Pierre, pioneira nos estudos
que cruzam teoria, biografia e política
em Glauber. Seu livro faz uma espécie de
reduplicação dos temas e questões do livro de Sylvie ("Glauber Rocha"), lançado
na França e no Brasil, mas sempre querendo ter a palavra final e dando rasteiras
teóricas infantis nos autores que lhe servem. Por exemplo, quando conclui que:
"Para Sylvie Pierre, se Glauber tivesse
um irmãozinho homem, não haveria Cinema Novo no Brasil, como se ele tivesse
ido ao cinema em busca de irmãos e amigos. (...) A tendência das mulheres que
estudam Glauber é considerá-lo sob o
prisma psicanalizante, tendo como pano
de fundo ora a mãe (caso da paulista Raquel Gerber), cujo útero é identificado ao
mar da Bahia, ora o pai (...)". E por aí vai,
numa estratégia de ridicularização e redução de outros autores que trataram de
Glauber.
Teorias coletivas Para além da retórica e das flores de estilo, tipo "brado retumbante", é muito importante voltar
aos temas compilados por Vasconcellos
do arsenal de teorias coletivas que vêm
sendo pensadas em torno de Glauber.
Compartilhamos muitas: a necessidade
de tirar Glauber do gueto do cinema, a
passagem do primeiro Glauber, dialético
(tão bem estudado por Ismail Xavier no
livro "Sertão/ Mar"), para o Glauber do
fluxo desestruturante, do inconsciente
social, em "Terra em Transe" e "A Idade
da Terra" (Raquel Gerber); o militarismo
revolucionário, o marxismo tropicalizado, o sadismo de massas, a questão do
transe, crença e povo (ver o ensaio "O
Devorador de Mitos"). A necessidade da
criação de uma mitologia de esquerda; a
passagem da estética da fome ao sonho e
as teorias sobre o cinema latino-americano (José Carlos Avellar) etc.
Há muito o que dizer e pensar a partir
de Glauber e, nesse sentido, o livro de
Gilberto Vasconcellos (até por seu mimetismo) dá visibilidade a essa língua
Glauber, que vai se criando, de forma
lenta, mas incontornável -e com a contribuição milionária de todos os erros.
Ivana Bentes é pesquisadora de cinema e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Organizou "Cartas ao Mundo - Glauber Rocha"
(Companhia das Letras).
Glauber Pátria Rocha Livre
167 págs., R$ 17,00
de Gilberto Vasconcellos. Editora Senac (r. Rui Barbosa, 377, 1º
andar, CEP 01326-010, SP, tel.
0/ xx/11/ 287-7615).
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