São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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"Glauber Pátria Rocha Livre" reduz a importância do cineasta baiano ao tentar associá-lo a um nacionalismo folclórico e redentor

CLONAGEM ESTÉRIL

Ivana Bentes
especial para a Folha

Gilberto Vasconcellos vem se especializando em "fait-divers" cultural, ou seja, tratar com retórica sensacionalista uma série de questões políticas e culturais bem complexas. O que tem o seu atrativo. Pois sempre soará muito espirituoso escrever que "cineasta brasileiro que não é nacionalista ou é uma besta insciente ou um neurótico masoquista -ou senão um agente semiótico da pilhagem colonial". Pelo tom, já deduzimos que Glauber não será apenas o tema do seu livro, mas seu detonador, e Vasconcellos, uma espécie de ventríloquo ou "cavalo" de Glauber.
A retórica glauberiana é mimetizada de cabo a rabo no livro, partes do seu pensamento, crenças, desafetos e intuições são mixadas e assumidas por Gilberto Vasconcellos neste "ensaião", na definição do autor, que dispensa bibliografia, notas, origem das suas fontes e assume que quer fazer "folclore", inserir Glauber no "folclore" do milênio, tirá-lo da "tagarelice póstuma" da mídia, fugir do "anedotário pessoal". Ou seja, nada menos que "legitimar" Glauber, "amplificá-lo" de forma definitiva no imaginário brasileiro, pela prosa legitimadora do seu "porta-voz".
Como folclore, o livro do sociólogo Gilberto Vasconcellos se sustenta: é um misto de teses originais com compilação-diluição do que já foi escrito até agora sobre Glauber Rocha. Temas, questões, análises -precedente que o próprio autor se apressou em desqualificar ou ignorar, anunciando que o morto, Glauber, ainda não tinha sido justiçado intelectualmente e esperava, se deduz, este livro, lançado, "depois de 20 anos de pesquisas", numa data redonda, os 20 anos da morte de Glauber, em 1981.
Não duvidamos que Gilberto Vasconcellos possa trazer uma contribuição na leitura da obra de Glauber, mas fica difícil levar a sério um autor que, desculpem a grosseria, goza com o pau alheio, de forma tão mimética e parasitária e, legitimado pelo gênio do outro, sai todo pimpão anunciando verdades grandiloquentes do tipo "os intelectuais brasileiros não têm a mais vaga idéia de quem são os inimigos do povo" ou insistindo que Glauber foi assassinado culturalmente e que "pagou um preço altíssimo nessa de crítico da viadagem no Brasil, ou seja, o crítico da ópera gay disseminada pela TV, onde ninguém é mais culturalmente responsável por coisa alguma" ou platitudes como "entre o popular e o erudito existe a mediação: a cuca colonizada by Roliudi Globo".
Esse tipo de retórica, esse nível de clichê -"o sujeito livre é descolonizado, o que está com os olhos vendados para o seu país é aquele que se deixa absorver por outra linguagem"-, está na boca de qualquer gerente cultural e mesmo no discurso neopopular e neonacionalista da TV, demonizada por Vasconcellos como o mal supremo. Basta observar a explosão recente do populismo e nacionalismo em programas tipo "Brava Gente", nas novelas, a "folkmídia", para vislumbrar os equívocos possíveis perpetrados em nome do nacionalismo.

Nacionalismo engessado O livro de Gilberto Vasconcellos consegue o feito inverso ao que se propõe, pois, ao eleger o "nacionalismo" glauberiano como o supra-sumo do seu pensamento, aprisiona Glauber numa imagem aquém desse próprio pensamento, infinitamente mais complexo, e que explode, de dentro, certo nacionalismo engessado e "folclórico" em direção ao "cósmico", ao mito (o que já foi mais do que indicado em todos os estudos precedentes sobre a obra de Glauber).
Como bom folclorista, o autor dialoga com sujeitos ocultos e genéricos quando quer desqualificar os que se oporiam ao pensamento glauberiano: "Muitos críticos", os "idiotas", os professores universitários, o intelectual acadêmico uspiano, o cinema paulista, a cultura paulista, a burguesia paulista, enfim o "ser" paulista (aliás, uma obsessão do autor, que traça uma linha ideológica "que vai da Vera Cruz a FHC, ou seja: a castração erótica do mameluco paulista").
Aqui se ancora, fragilmente, em Glauber, ressaltando o que há de mais duvidoso ou simplesmente irrelevante no seu discurso. Ao intelectual paulista, encarnação do "intelectual americanizado no Brasil", o autor contrapõe a "imaginação verdadeira" do tipo popular brasileiro.
Intelectual autêntico para Vasconcellos seria algo próximo do "cego contador de fábulas e lendas". Difícil aceitar tanto maniqueísmo, que não existe em Glauber, diretor de "Terra em Transe", "Di Cavalcanti", "A Idade da Terra", cineasta cujos personagens são do povo, da elite, da classe média, entidades míticas, personagens conceituais sem essa divisão escolar entre uma metafísica rural e o decadentismo urbano (ecos de Euclides da Cunha com os seus "histéricos e neurastênicos" do litoral?). Glauber é um cineasta cosmopolita que, para além do folclore rural brasileiro, leu, curtiu, incorporou e usou nos seus filmes e pensamento a teoria francesa, a psicanálise, o pós-estruturalismo, todo o arsenal teórico universitário francês e latino-americano disponível na época, sem esse purismo extemporâneo que o autor quer lhe enfiar pela obra abaixo.
Vasconcellos vai incorrendo em tudo o que anunciava rejeitar: a fofoca, o irrelevante, as picuinhas, as frases de efeito, o piadismo intelectual, uma espécie de Casseta & Planeta teórico, que só não é mais engraçado porque se leva a sério demais.
Afinal qual a tese do livro de Vasconcellos? Que o eclipse do nacionalismo brasileiro (como se houvesse apenas um!) é a mãe de todas as nossas desgraças. A questão é que o nacionalismo em Glauber explode qualquer idéia de nação em nome de um "nacional-universal", de um campo mítico da nacionalidade, enquanto Vasconcellos insiste num nacionalismo, "pureza" brasileira, encontrado nos rincões do Brasil rural, guardado por Deus Pai, Câmara Cascudo, encarnado politicamente por Getúlio Vargas e Jango e desenvolvido esteticamente por Villa-Lobos e Glauber, entre outros.

Clonagem glauberiana A tese do livro, esse nacionalismo redentor, anunciada, reiterada, como refrão ou slogan, preconiza o seguinte: "A síntese de Vargas e Villa-Lobos engendrou o Cinema Novo revolucionário porque se insurgiu contra a ocupação imperialista, buscando a fonte de resistência em Aleijadinho, Humberto Mauro e Niemeyer, conforme se vê em "Terra em Transe'". Conforme se vê em "Terra em Transe"?
Aliás, o autor se apressa em dizer que não é cinéfilo nem crítico de cinema. Vai procurar discorrer sobre suas teses lançando mão de tudo o que puder ser útil (textos, cartas, depoimentos), com o que concordamos plenamente, sem ater-se à análise dos filmes. Mas, ao final do "ensaião" folclórico, eu já sonhava com algumas das lúcidas, argutas e consistentes análises de filmes de Glauber feitas por críticos como Ismail Xavier ou Jean-Claude Bernardet, sujeitos "ocultos" no texto de Vasconcellos, "acadêmicos uspianos" que o autor simplesmente ignora (isso é folclore!).
Por mais que compartilhe verdadeiramente muitas das preocupações e temas apresentados pelo autor, sua retórica autolegitimadora e a clonagem glauberiana (seja Xuxa, FHC ou Glauber o assunto) tornam tudo estéril. E é preciso dizer que uma série de idéias que foram apresentadas no ensaio de 70 páginas "O Devorador de Mitos", no livro "Cartas ao Mundo - Glauber Rocha", que organizei, aparecem "legitimadas" pelo autor, sem a mais breve alusão (isso é folclore!).
É claro que Vasconcellos tem intuições originais sobre política, conjunturas, saques perdidos no meio dessa retórica automistificadora, mas, quando já estamos entrando na onda gilbertiana, o autor -que num desses momentos originais resgata a figura de Getúlio Vargas e Jango no imaginário político e mítico de Glauber- vem com a síntese folclórico-profética: "A superação da tragédia de Vargas não se concretiza na história, porque em 1964 Getúlio morre de novo com a deposição de João Goulart, de modo que a doutrina nacional trabalhista vai materializar-se esteticamente no Cinema Novo como a utopia inscrita na música de Villa-Lobos". Eis de novo a tese do livro, no estilo "me segura que eu vou ter um saque!".
Há outros momentos de sacações no livro, mas, por mais que se esforce por emular o discurso flamejante de Glauber Rocha e nos apresentar um "balanço" da obra que o inseriria de vez por todas no folclore contemporâneo, Gilberto Vasconcellos cria uma espécie de folclore classe média, ou seja, a repetição e incorporação sem cerimônia de tudo o que foi escrito sobre Glauber para valorizar o seu (do autor) capital simbólico na bolsa de cultura. Afinal também há vantagens em ser identificado com a "grife" Glauber (isso é folclore!).
Vasconcellos cita muito a crítica francesa Sylvie Pierre, pioneira nos estudos que cruzam teoria, biografia e política em Glauber. Seu livro faz uma espécie de reduplicação dos temas e questões do livro de Sylvie ("Glauber Rocha"), lançado na França e no Brasil, mas sempre querendo ter a palavra final e dando rasteiras teóricas infantis nos autores que lhe servem. Por exemplo, quando conclui que: "Para Sylvie Pierre, se Glauber tivesse um irmãozinho homem, não haveria Cinema Novo no Brasil, como se ele tivesse ido ao cinema em busca de irmãos e amigos. (...) A tendência das mulheres que estudam Glauber é considerá-lo sob o prisma psicanalizante, tendo como pano de fundo ora a mãe (caso da paulista Raquel Gerber), cujo útero é identificado ao mar da Bahia, ora o pai (...)". E por aí vai, numa estratégia de ridicularização e redução de outros autores que trataram de Glauber.

Teorias coletivas Para além da retórica e das flores de estilo, tipo "brado retumbante", é muito importante voltar aos temas compilados por Vasconcellos do arsenal de teorias coletivas que vêm sendo pensadas em torno de Glauber. Compartilhamos muitas: a necessidade de tirar Glauber do gueto do cinema, a passagem do primeiro Glauber, dialético (tão bem estudado por Ismail Xavier no livro "Sertão/ Mar"), para o Glauber do fluxo desestruturante, do inconsciente social, em "Terra em Transe" e "A Idade da Terra" (Raquel Gerber); o militarismo revolucionário, o marxismo tropicalizado, o sadismo de massas, a questão do transe, crença e povo (ver o ensaio "O Devorador de Mitos"). A necessidade da criação de uma mitologia de esquerda; a passagem da estética da fome ao sonho e as teorias sobre o cinema latino-americano (José Carlos Avellar) etc.
Há muito o que dizer e pensar a partir de Glauber e, nesse sentido, o livro de Gilberto Vasconcellos (até por seu mimetismo) dá visibilidade a essa língua Glauber, que vai se criando, de forma lenta, mas incontornável -e com a contribuição milionária de todos os erros.


Ivana Bentes é pesquisadora de cinema e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Organizou "Cartas ao Mundo - Glauber Rocha" (Companhia das Letras).


Glauber Pátria Rocha Livre
167 págs., R$ 17,00 de Gilberto Vasconcellos. Editora Senac (r. Rui Barbosa, 377, 1º andar, CEP 01326-010, SP, tel. 0/ xx/11/ 287-7615).



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