São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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Ponto de fuga

Sexo escarlate

A autocensura do cinema norte-americano não lhe permite explorar muito os descalabros do sexo. Menos puritanos, os europeus não hesitam diante de nada. Alguns filmes, apresentados no recente Festival de Cinema do Rio de Janeiro, constroem-se à volta de coitos não simulados que, por sinal, se esvaziam de poderes eróticos. Há dois mais espetaculares: "Intimidade", de Patrice Chéreau, e "A Diva Escarlate", de Asia Argento.
O primeiro absorve-se numa invencível atração física que se reduz a si mesma. Limita seu alcance para concentrar-se. Espécie de pornô-cabeça claustrofóbico, assume um tom de angústia intelectualizada.
O segundo é mais errático, mais complexo certamente, muito mais cru e brutal, embora Asia Argento tenha preferido não evidenciar os órgãos sexuais. Filha e atriz fetiche de Dario Argento, ela dirige seu primeiro longa-metragem, misturando ficção e autobiografia. Atira-se sem amarras ao encarnar a protagonista. Narra as tribulações de uma atriz que aspira a se transformar em diretora. Perto dele, os filmes de seu pai, recheados por crimes violentos, afiguram-se como obra de esteta precioso e delicado.
Comparar pai e filha, na verdade, é descabido: se existem semelhanças, elas são superficiais. Com ironia e humor, sempre de uma ótica feminina, Asia Argento interroga desejo e sentimentos. Episódios "trash" sucedem-se, entre cumplicidade e resistência, narcisismo e ódio de si. Resulta isolamento, solidão, desconsolo, tão cerrados que é quase como se o espectador pudesse tocá-los.
Giallo - Há muito tempo não é distribuído no Brasil um filme de Dario Argento. Desde "Terror na Ópera", talvez, que data de 1987. Triste estado de coisas, que não garante a chegada de sua última obra aos nossos cinemas. O título é intrigante e poético, pelo sentido e pelas aliterações: "Nonhosonno" (Nãotenhosono), escrito assim, tudo junto, dando a impressão de reter uma galáxia de angústias dentro das sílabas que se sucedem.
Não possui a amplidão espacial, solene e luxuosa, de "Profondo Rosso", obra-prima de Argento, datada de 1975. Negligencia detalhes; há mesmo, na internet, uma página que enumera pequenos equívocos. Além disso, Argento retoma seu próprio universo, cristalizado em "Profondo Rosso": cantilenas, traumas infantis, bonecos assassinos e o cenário da cidade de Turim. Há zombaria consigo mesmo, humor voltado para dentro. Mas o filme ergue uma força inquietante que habita tudo isso, dissolvendo nela própria esses pretensos defeitos, mostrando que o diretor não se alimenta nunca de convenções. Pode, desse modo, empregá-las pelo prazer de mostrá-las vazias.
A primeira meia hora do filme é centrada na mais implacável, onírica e horrenda viagem de trem, como se feita por um Hitchcock enlouquecido. A sequência do balé, que contém longo "travelling" sobre uma passadeira, eclode como uma flor do mal. A trama, cujas viravoltas foram criticadas, sustenta-se pela própria inverossimilhança. É a irmã genial daquelas que cada um pode fabricar nas noites aflitivas de insônia.
Olé - "La Comunidad", comédia e thriller espanhol de Alex de la Iglesia, também apresentado no Festival do Rio, retoma Hitchcock na fronteira da paródia, mas sem ultrapassá-la, graças ao seu rigor próprio de construção. Explora antes o pastiche e a reciclagem, com humor negro explosivo, sentido do ritmo, grandes atores.
Via Láctea - Uma apresentação reuniu Céline Imbert, Fernando Lopes e Cláudio Cruz, o "Prelúdio e Morte de Isolda", o "Concerto para Piano e Orquestra nš 1" de Liszt, o "Concerto para Violino" de Tchaikovsky. A Orquestra Sinfônica Petrobrás, uma das melhores do Brasil, vibrava sob a regência de Roberto Tibiriçá. O público, na sala Cecília Meirelles do Rio, era levado pela beleza emocionada, pela formidável musicalidade desses artistas brasileiros.

E-mail: jorgecoli@uol.com.br


Jorge Coli é historiador da arte.



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